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  • Postado por editora em em 28/04/2022 - 09:38

    A relação entre liberdade de expressão e democracia é inquestionável. Os termos dessa relação são controversos. Neste livro, Owen Fiss se posiciona sobre uma pergunta fundamental: afinal, a que serve a liberdade de expressão em uma democracia? A clareza de seus argumentos ensina que problemas contemporâneos urgentes de liberdade de expressão podem e devem ser tratados com profundidade e coerência.

    Esta obra, organizada por Clarissa Piterman Gross e Ronaldo Porto Macedo Junior, com prefácio de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto, apresenta, de forma clara e acessível para o grande público e em momento mais que oportuno, um debate acerca dos propósitos da liberdade de expressão relevante para diversas questões contemporâneas relacionadas à qualidade da democracia e trata de um tema fundamental para a democracia contemporânea: o papel do Estado na garantia das liberdades de expressão e de imprensa.

    Confira a introdução da obra a seguir: 

    A liberdade de expressão está entre nossos mais estimados direitos, porém ela tem sido o foco de constantes polêmicas. Durante a maior parte deste século, a liberdade de expressão esteve sujeita a inúmeras batalhas judiciais e dividiu profundamente a Suprema Corte. Com efeito, o caso Pentagon Papers, do início dos anos 1970, foi um dos episódios mais contenciosos da história da Suprema Corte, envolvendo uma disputa entre o Attorney General dos Estados Unidos e dois jornais altamente respeitados, o New York Times e o Washington Post, e deixando os juízes em conflito uns com os outros. A liberdade de expressão também foi intensamente debatida em círculos políticos, nos campi da nação e mesmo em torno de mesas de jantar — em contextos que variam desde o julgamento de Sacco e Vanzetti em 1921 à cruzada anticomunista dos anos 1950.

    Para alguns observadores, as controvérsias atuais sobre a liberdade de expressão podem não parecer especialmente relevantes; elas podem até mesmo ser um pouco cansativas. As questões podem ter mudado — ao invés da subversão e da alegada ameaça comunista, nós estamos agora preocupados com tópicos como discurso de ódio (hate speech)* - * a expressão “hate speech” no original será sempre traduzida como “discurso de ódio”. (N. do R.)e financiamento de campanha — mas as divisões e paixões que elas suscitam são todas bastante familiares. Eu acredito, contudo, que tal perspectiva sobre as controvérsias atuais em torno da liberdade de expressão — vendo-as como nada além de uma repetição do passado — é equivocada. Alguma coisa muito mais profunda e muito mais significativa está acontecendo. Nós estamos sendo convidados, ou mesmo intimados, a reexaminar a natureza do Estado moderno e verificar se ele possui algum papel na preservação das nossas liberdades mais básicas.

    Os debates do passado foram baseados na visão de que o Estado era um inimigo natural da liberdade. Era o Estado que estava procurando silenciar o orador (speaker) individual e era o Estado que deveria ser controlado. Há muita sabedoria nesta visão, mas ela representa apenas meia verdade. Certamente, o Estado pode ser um opressor, mas ele pode ser também uma fonte de liberdade. Por meio da consideração de uma ampla variedade de controvérsias sobre liberdade de expressão nas manchetes atuais — discurso de ódio, pornografia, financiamento de campanha, financiamento público das artes e o esforço para ganhar acesso aos meios de comunicação de massa —, eu procurarei explicar por que a tradicional presunção contra o Estado é enganosa e como o Estado poderia se tornar o amigo, ao invés do inimigo, da liberdade.

    Essa visão — inquietante para alguns — está calcada em várias premissas. Uma é o impacto que a concentração de poder privado tem sobre a nossa liberdade; algumas vezes o Estado é necessário apenas para contrapor essas forças. Fundamentalmente, essa visão é predicada em uma teoria da Primeira Emenda e de sua garantia de liberdade de expressão que enfatiza valores sociais ao invés de valores individualistas. A liberdade que o Estado pode ser chamado a promover é uma liberdade pública. Apesar de alguns verem a Primeira Emenda como uma proteção ao interesse individual de autoexpressão, uma teoria muito mais plausível, formulada inicialmente por Alexander Meiklejohn1 e agora abraçada por todo o espectro político, de Robert Bork a Willam Brennan, vê a Primeira Emenda como uma proteção da soberania popular. A intenção da lei é ampliar os termos da discussão pública de forma a possibilitar que cidadãos comuns tomem conhecimento das questões à sua frente e dos argumentos de todos os lados, e, então, persigam seus objetivos com liberdade e plenitude. Uma distinção, portanto, é traçada entre uma teoria libertária e uma teoria democrática da expressão, sendo esta última a que impulsiona meu questionamento sobre os caminhos por meio dos quais o Estado pode potencializar nossa liberdade.

    A visão libertária — de que a Primeira Emenda é uma proteção da autoexpressão — faz um apelo para o éthos individualista que tanto domina nossa cultura popular e nossa cultura política. A liberdade de expressão é vista como análoga à liberdade de religião, que também é protegida pela Primeira Emenda. Todavia, essa teoria não consegue explicar por que os interesses daqueles que produzem o discurso deveriam ter prioridade sobre os interesses dos indivíduos objeto do discurso, ou dos indivíduos que devem escutar o discurso, quando esses dois conjuntos de interesses conflitam. Ela também não consegue explicar por que o direito de liberdade de expressão deveria ser estendido para várias instituições e organizações — CBS, NAACP, ACLU, First National Bank of Boston, Pacific Gas & Electric, Turner Broadcast System, VFW — que são rotineiramente protegidas pela Primeira Emenda, apesar do fato de essas entidades não representarem o interesse individual de autoexpressão. O discurso é tão valorizado pela Constituição, eu sustento, não porque ele é uma forma de autoexpressão ou autorrealização, mas porque ele é essencial para a autodeterminação coletiva. A democracia permite que as pessoas escolham a forma de vida que desejam viver e pressupõe que essa escolha seja feita em um contexto no qual o debate público seja, para usar a agora famosa fórmula do Juiz Brennan, “desinibido, robusto e amplamente aberto”. No original, uninhibited, robust, and wide open. (N. do T.).

    Em algumas instâncias, instrumentos do Estado tentarão inibir o debate livre e aberto, e a Primeira Emenda é o mecanismo testadoe aprovado que impede e previne tais abusos do poder estatal. Em outras instâncias, contudo, o Estado pode ter que agir para promover a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos — distribuir megafones — para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes, simplesmente não há outra forma. O ônus deste livro é explorar quando tais exercícios do poder estatal para alocar e regular são necessários, e como eles podem ser reconciliados com, ou mesmo sustentados por, a Primeira Emenda.

     

    A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública

    Autor: Owen M. Fiss

  • Postado por editora em em 28/04/2022 - 09:20

    Em 1950, o imigrante letão Herberts Cukurs, então proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, foi acusado de ter cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. O "caso Cukurs" logo se tornou conhecido no Brasil e no exterior e mobilizou governos, entidades judaicas e não judaicas, parlamentares e opinião pública. Percorrendo documentos inéditos, disponíveis no Brasil e no exterior, este livro examina a complexa construção do histórico "caso Cukurs", sobretudo a posição das autoridades brasileiras diante dele.

    Confira a seguir o prefácio de Fabio Koifman, professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde leciona nas graduações de história e de relações internacionais.

    UMA DAS HISTÓRIAS QUE ME RECORDO de ouvir em casa durante minha juventude era a que meu pai contava relacionada a uma tarde na qual ele e um grupo de amigos foram à Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro “andar de pedalinhos”. Os pedalinhos eram pequenas embarcações para dois passageiros que, por meio do acionamento de pedais, faziam girar um conjunto de pás que produziam movimento sob a água. De acordo com o relato, sem saber ao certo como, logo que o grupo chegou ao píer um senhor estrangeiro que cuidava da atração os recebeu e rapidamente os identificou como judeus. Em seguida, apontou para eles uma jovem moça que estava em companhia dele, informando que ela também era judia. Durante o passeio, parte do grupo acabou atravessando uma parte do espelho d’água repleto de folhagens que se prenderam ao sistema que produzia o movimento da pequena embarcação, fazendo com que os pedalinhos ficassem parados, sem a possibilidade de movimento, a uma distância razoável da margem. Como outra parte dos membros do grupo não sofreu o mesmo contratempo, alguns dos jovens alertaram o responsável para o fato, esperando que ele tratasse de resgatá-los. A mesma situação ocorria eventualmente com outros usuários e, fazendo uso de um pequeno barco, aquele senhor prontamente se dirigia ao local e soltava os pedalinhos presos nas plantas submersas. O tempo foi passando e, para a surpresa do grupo, o “homem dos pedalinhos” ignorou a desagradável situação dos que permaneciam imóveis em um canto um pouco mais remoto da lagoa sem poder se mexer e não providenciou o resgate.

    Na ausência de ajuda, os jovens buscaram então, eles mesmos, se desprender, e depois de algum esforço obtiveram sucesso sem compreender a razão de terem sido negligenciados. Aborrecidos com o ocorrido, decidiram nunca mais voltar ao lugar. Tempos depois, acreditaram ter lido nos jornais a razão do estranho comportamento do homem e compreendido o tratamento que ele destinou ao grupo: aquele era Herberts Cukurs, um “criminoso de guerra nazista”. Não há dúvida de que a situação pudesse ter decorrido da maneira que foi por mero acaso ou coincidência. Mas em que contexto estavam esses jovens para compreender os atos de um homem acusado de ter sido um cruel assassino?

    Na virada dos anos 1940 para 1950, entre os jovens da comunidade israelita do Rio de Janeiro, o genocídio de que foram vítimas os judeus – que passaria nas décadas seguintes a ser conhecido em português como Holocausto e em hebraico como Shoah (calamidade) – não era considerado um “assunto de criança” ou de jovens adolescentes na faixa de idade deles. Mas foi muitas vezes evidenciado por notícias do desaparecimento de avós, tios e primos que, diferentemente dos pais que imigraram para o Brasil, haviam permanecido na Europa. Depois da Segunda Guerra Mundial, a chegada de alguns parentes ou de pessoas circulando nos espaços comunitários, mesmo que não dividindo com os demais suas histórias e memórias – conforme o mais usual –, menos ainda com os jovens, tinham suas experiências em muitos casos denunciadas pelos estranhos números tatuados nos braços, trazendo para um pouco mais perto ou tornando um pouco mais claras as conversas dos adultos eventualmente escutadas pela metade. A descrição do Holocausto para os mais jovens, de modo geral, era reduzida à informação de que parte da família acabou morta, contabilizada entre os milhões que foram assassinados pelos nazistas.

    Com a revelação de que estaria ali tão próximo na Lagoa Rodrigo de Freitas um homem apontado como um dos responsáveis pela tragédia, era natural que o fato produzisse a reação que suscitou entre alguns dos judeus residentes na cidade. Para o público, assim como para o grupo deixado à deriva nos pedalinhos naquele dia, as versões que apareciam nos jornais já esclareciam e materializavam a figura de um criminoso de guerra.

    Um tema tão sensível e carregado de emoções como esse se prestava e se presta a atrair o público e vender publicações – a incidência do rosto de Hitler em bancas de jornal supera a de Jesus, sendo os dois rostos os mais recorrentes nas capas de revistas, em especial, as que exploram curiosidades –, não necessariamente zelosas com a precisão histórica dos fatos. Já o enfrentamento do assunto por um historiador de ofício, de modo diferente, requer extremo cuidado, boa metodologia, minuciosa e criteriosa pesquisa, complementados por esforço contínuo de estabelecer o necessário distanciamento pessoal e emocional do objeto de estudo. Muitas são as tensões, tentações e os potenciais desvios e influências quando se enfrenta temáticas dessa natureza e complexidade.

    Com tanto interesse do público no assunto, alguns jornalistas se ocuparam dos temas relacionados ao nazismo ou da presença de nazistas no Brasil.

    Não somente eles, como também parte dos historiadores – no mais das vezes, não em textos acadêmicos, mas em entrevistas concedidas aos meios de comunicação – deixou-se seduzir pelo canto da sereia dos holofotes da mídia e lançou mão de um viés denunciativo que, não raro, parece transformar o pesquisador em uma espécie de justiceiro e a História em um tribunal.

    O tema do pós-Segunda Guerra Mundial e a atribuída fuga de expressivo número de criminosos nazistas para o Brasil, talvez pela recorrência com que surgiu também na literatura ficcional e no cinema, não atraiu por muito tempo os historiadores de ofício e acadêmicos. Nas últimas décadas, quando abordado, o objeto atraiu uma prática historiográfica considerada menor, a chamada história denunciativa. Talvez por esse motivo, o tema não tenha feito produzir um número significativo de trabalhos acadêmicos. O risco de terem seus nomes associados à história denunciativa possivelmente desestimulou e afugentou potenciais investigadores que cogitaram debruçar em pesquisas dentro desse assunto.

    Do mesmo modo, enfrentar matéria a respeito da qual a opinião pública já possuía tantas certezas construídas por mitos – como o de que o então governo brasileiro teria atuado premeditadamente no sentido de receber e esconder no país criminosos de guerra nazistas foragidos – demanda trabalho dobrado por parte do pesquisador. Primeiro, é necessário demonstrar as inconsistências e a falta de lastro das versões ficcionais construídas que se repetiram e passaram a constituir o senso comum. A partir disso, efetivamente, narrar e explicar o que, efetivamente, as evidências apontam. Um tema absolutamente inédito ou pouco conhecido não demandaria esse duplo esforço. Tampouco encontraria a resistência de parte do público, que muitas vezes prefere acreditar na versão que lhe parece mais lógica e palatável, mesmo quando essa não possui amparo na investigação de natureza acadêmica.

    Por essa razão, é com entusiasmo que os estudiosos da história do Brasil desse período e demais interessados no tema recebem o trabalho de Bruno Leal, fruto de uma brilhante tese de doutorado em história. Com muita perseverança, disposição, seriedade, rigor e fôlego, o autor encarou o que foi necessário enfrentar em termos de pesquisa documental e fontes. Com um texto objetivo e uma narrativa que não buscou atalhos menos pedregosos nem produziu digressões, apresenta um livro no qual relata, interpreta e explica exclusivamente o que as evidências coletadas em extensa pesquisa respaldam.

    A criatividade é, sem dúvida, uma qualidade humana, do mesmo modo que o são a honestidade intelectual e o rigor científico. O leitor merece sempre ser informado de maneira clara se seus olhos percorrem obras que misturam realidade com ficção ou se, de fato, está lendo um texto historiográfico.

    O presente livro é trabalho de historiador... e dos bons.

     

    O homem dos pedalinhos: Herberts Cukurs - a história de um alegado nazista no Brasil do pós-guerra

    Autor: Bruno Leal Pastor De Carvalho

  • Postado por editora em em 10/02/2022 - 13:31

    Dentro das celebrações do centenário da Semana de Arte Moderna de 22, lançamos a segunda edição do livro Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo, da professora Angela de Castro Gomes.

    Confira um trecho da introdução da obra a seguir:

    Este trabalho insere-se em um conjunto muito amplo e diversificado de estudos voltados para o acompanhamento da atuação dos intelectuais brasileiros nas primeiras décadas do século, destacando sua relevância na proposição e implementação de projetos de “Brasil moderno”. O tema de fundo em todos eles — a questão dos marcos culturais da identidade nacional — vem sendo tratado tanto no âmbito da história e das ciências sociais, quanto no da crítica literária e da medicina social.1 A amplitude de tal composição é reveladora não só da importância que o tema da cultura ganhou nas últimas duas décadas, especialmente para a historiografia, como do reconhecimento da necessidade de se trabalhar com novos atores, como os intelectuais, para se compreender os rumos dos complexos processos de transformação social.
    No caso deste estudo, procurou-se privilegiar os intelectuais cariocas, entendidos como os que viviam e teciam suas redes de sociabilidade na cidade do Rio de Janeiro, permanecendo-se fiel ao período das primeiras décadas do século, mas nelas destacando os anos 1930, menos explorados que os “frenéticos” anos 1910 e 1920.
    A contribuição que se busca trazer, portanto, diz respeito menos ao espaço e aos atores sob análise, e mais à abordagem escolhida. Ela procura captar a ambiência social, política e cultural da cidade, para então mapear a dinâmica de articulação de seus vários grupos de intelectuais, reunidos em lugares de sociabilidade por eles legitimados, para o debate e a propagação de ideias, indissociáveis de formas de intervenção na sociedade. Ou seja, a pesquisa está situada na interseção da história política e cultural, que é sempre social, assumindo uma vertente teórico-metodológica que, na França, vem recebendo a designação de “história de intelectuais”.
    Tal approach procura uma estratégia de análise distinta de outras, também integrantes do campo da história cultural, como a “história das ideias” e o estudo das trajetórias de conceitos, bem como a “história da leitura” ou a “análise de discursos”, sejam estes tomados como recursos de poder, sejam tratados no âmbito da linguística.
    Como se vê, o campo é rico e multifacetado, permitindo especificidades e interseções. A opção pela “história de intelectuais” não buscou, portanto, um aprisionamento conceitual, fundando-se na crença de ser uma possibilidade útil para o exercício de um tipo de análise histórico-sociológica. Tal análise, sem abandonar o interesse pelo conteúdo e forma da produção dos intelectuais, concentra sua atenção na lógica de constituição de seus grupos, postulando a interdependência entre a formação de redes organizacionais e os tipos de sensibilidade aí desenvolvidos, o que necessariamente iluminaria o desenho e as características de quaisquer projetos culturais.
    Esta abordagem seria segura e profícua para o historiador, por permitir uma aproximação das obras dos intelectuais, através do privilegiamento das condições sociais em que foram produzidas, enquanto constitutivas de um certo campo político-cultural. Sendo mais precisa, não se trata fundamentalmente de uma contextualização histórica, muito frequente e proveitosa, mas do reconhecimento da existência de um campo intelectual com vinculações amplas, porém com uma autonomia relativa que precisa ser reconhecida e conhecida. Isto poderia ser alcançado com uma investigação que acompanhasse as trajetórias de indivíduos e grupos; que caracterizasse seus esforços de reunião e de demarcação de identidades em determinados momentos; e que associasse tais eventos às características-projetos de sua produção intelectual.
    Por essa razão, a opção pela abordagem acaba por enfatizar — como objeto e fonte, simultaneamente —, o trabalho com periódicos, correspondências, casas editoras, cafés, livrarias e associações culturais, enfim, com diversificados “lugares de sociabilidade” onde os intelectuais se organizariam, mais ou menos formalmente, para construir e divulgar suas propostas. Pelo mesmo fato, tais pesquisas enfrentam sempre questões polêmicas, pelas quais os intelectuais, ao mesmo tempo, inserem-se no campo cultural mais abrangente do qual são contemporâneos, e nele procuram demarcar fronteiras capazes de lhes assegurar identidades individuais e coletivas. De maneira mais operacional, a abordagem procura mapear as ideias, valores e comportamentos que alicerçam a formação de grupos intelectuais, objetivando compreender as genealogias que inventam, os formatos organizacionais que elegem e as características estéticas e políticas de seus projetos.
    Como neste estudo se escolheu trabalhar com os intelectuais cariocas ao longo das primeiras décadas do século XX, o ponto de partida necessário foi a problematização dos conceitos de modernidade e modernismo, conforme o que vem sendo feito por estudos recentes nas ciências sociais e na literatura. sensual, eles tendem a apontar para as conjunções e disjunções existentes entre os dois termos em momentos e espaços diferenciados e, como desdobramento, para a multiplicidade de modernidades e modernismos que podem ser pensados. Isto é, para a possibilidade de uma variedade de projetos de modernização que se expressariam por numerosas, mas não arbitrárias, estéticas modernistas.
    Dessa forma, as assinaladas relações entre intelectuais, nacionalismo e modernismo ganham renovado interesse, por abandonarem completamente a premissa de um certo modelo de nação moderna que pudesse ser utilizado como parâmetro para todo o campo político-intelectual do país. Como decorrência, tornam- se objeto de reflexões questões como a da própria centralidade que os modernistas paulistas atribuíram a si mesmos e a da duração da memória que construíram sobre seu papel de vanguarda intelectual hegemônica.
    Se esta experiência foi, sem qualquer sombra de dúvida, fundamental para a construção de uma nova concepção de arte e cultura no país, seu impacto vem sendo reinterpretado, mais como um efeito das iniciativas agressivas e contestatórias de que lançaram mão naquele
    momento do que do próprio caráter formal de inovação que seus trabalhos apresentavam. O que se assinala, portanto, é que a “estratégia do escândalo”, a que recorreram os “paulistas” da Semana, foi recebida pelo público como um sinal de mudança radical, afirmando-se como um paradigma de modernismo e modernidade nacionais. Tal paradigma seria retomado e consolidado, cuidadosamente, pelo trabalho de muitos intelectuais, entre os quais os próprios modernistas paulistas e vários críticos literários atuantes nas décadas de 1950 e 1960, que estabeleceram uma história-memória do movimento modernista para todo o país.
    Em vinculação com esse tipo análise, cresceu o interesse pela pesquisa de “outros” projetos de modernidade, assim como pela problematização de categorias como “pré” e “pós”-modernismo. No caso dos estudos sobre o “pré-modernismo”, tem-se operado um recuo à produção cultural da virada do século XX, destacando-se a construção de circuitos alternativos para o debate e circulação de ideias, em especial no Rio de Janeiro. Tais experimentos, marcados pela recusa ao já estabelecido em termos artísticos, bem como pela aceitação de novas práticas comunicativas e uso de tecnologias, impactavam tanto as formas quanto os conteúdos do que se desejava transmitir a um público urbano, crescente e diversificado.
    Neste sentido preciso é que se pontua que a modernidade cultural brasileira não poderia ser pensada como restrita a uma súbita e original descoberta, devendo ser analisada de forma processual e em íntima conexão com as ambiências urbanas e regionais que demarcavam as trajetórias individuais e coletivas dos intelectuais do país.
    O intelectual e, no caso, o intelectual-artista, que experimentava uma especialização e profissionalização acentuadas, precisaria ser pensado sempre como um doublé de teórico da cultura e de produtor de arte, inaugurando formas de expressão e refletindo sobre as funções e desdobramentos sociais que tais formas guardariam. O esforço de inovação e a consciência explicitada desse esforço eram, inclusive, muito grandes nesses inícios do século XX. Suas relações com o aparecimento de um público e de meios de comunicação “de massa” são evidentes, donde a importância de ações que estreitassem esses vínculos, quer através do uso de “outras” linguagens (como a caricatura, a propaganda, o rádio e até o cinema), quer através do “ensino” da arte, que não deveria ser monopólio de escolas, academias ou júris de salões. Esse novo público abria perspectivas para uma gradual libertação de estilos e práticas, como a do mecenato, apontando para a criação de um mercado maior e mais aberto, com as presenças de editores e marchands, bem como para uma dinâmica entre mecenato e mercado de arte, até então não experimentada.
    Diante de tantas transformações, não é casual a existência de polêmicas que ora aproximassem ora distanciassem os intelectuais, situando-os em “grupos” que se reorganizavam continuamente com o passar dos anos e dos eventos estéticos e políticos. Unindo ou opondo lideranças e/ou instituições, tais disputas estão longe de ser indicadores de meras vaidades individuais ou coletivas, ou de competições “regionais”. Elas exprimem, em sua duração e sofisticação, a intensidade e a dificuldade das questões então enfrentadas pelo país, em busca de uma modernidade sentida como necessária e iminente no período do entreguerras.
    Seria impossível, nesses parâmetros, imaginar um afastamento da intelectualidade carioca de tais enfrentamentos. O Rio encontrava-se no “centro” da própria polêmica, não só por ser o polo de atração e civilização de toda a nação, como, por isso mesmo, por encarnar os estigmas do “passado e atraso” a serem por todos vencidos.
     

     

    Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo

    Autora: Angela Maria de Castro Gomes

  • Postado por editora em em 03/02/2022 - 19:20

    Webinar de lançamento em 22/2/2022 | Inscrições AQUI

    Ao organizar a obra Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais, o professor Celso Castro teve como objetivo ampliar o campo de possibilidades do cânone, sugerindo
    novas perspectivas para a compreensão da realidade social. Os textos reunidos nesta coletânea, bem como suas autoras e autores, devem ser mais lidos e conhecidos. "Teremos, assim, ciências sociais mais abrangentes, diversas e renovadas."

    Conheça a apresentação da obra a seguir e também as autoras, os autores e seus textos:

    Esta não é uma coletânea contra o cânone tradicional das ciências sociais, nem que pretenda ser alternativa. Os autores tradicionalmente considerados clássicos têm seus motivos e méritos para tal. São fundamentais para qualquer aprendizado sério das ciências sociais. Gosto muito deles e já organizei duas seleções de “textos básicos” de sociologia e antropologia seguindo essa tradição.1 Eles não são, contudo, os únicos autores que podemos e devemos conhecer hoje, se quisermos ter uma visão mais abrangente e diversificada das ciências sociais.
    Quando comecei minha formação como cientista social, em 1981, os cursos de introdução incluíam obrigatoriamente, porém exclusivamente, três “pais fundadores”: Marx, Durkheim e Weber. Mais tarde, um quarto autor, Simmel, de quem gosto em particular, passou a ser com frequência incluído nesse seleto grupo. Acho equivocado reduzir o fato de eles terem se tornado clássicos — bem como vários outros autores fundamentais, como Mauss, Malinowski, Lévi-Strauss, Bourdieu, Goffman, Elias etc. — à condição de serem todos, sem exceção, homens, europeus ou norte-americanos e brancos. Sem dúvida, a institucionalização das ciências sociais seguiu as condições sociais e os privilégios mais gerais das sociedades patriarcais e europeias ou norte-americana no seio das quais se desenvolveu. Mas hoje podemos, e devemos, perguntar: onde estão, na tradição das ciências sociais, as mães fundadoras, ou as autoras e autores não ocidentais, ou não brancos?
    Busquei, nesta coletânea, ir além do cânone tradicional, incluindo outros textos, de 16 autoras e autores, a maioria inéditos no Brasil e aqui traduzidos pela primeira vez para o português. Eles foram selecionados a partir de três critérios.

    O primeiro, de não estarem presentes nas coletâneas tradicionais dos principais cientistas sociais. Pode-se argumentar de início que algumas das escolhas aqui feitas não se referem a autoras ou autores que se insiram estritamente ou “a rigor” no campo específico das ciências sociais, tal como ele se institucionalizou na Europa ou na América do Norte. Ou, então, que não seriam suficientemente “teóricos” (portanto, generalizáveis). Respondo chamando a atenção para o fato histórico de que a definição estrita (e estreita) desse campo científico é justamente parte do problema, sobre o qual devemos ter uma visão crítica, não eurocêntrica e desnaturalizadora.

    Grande parte das autoras e autores aqui reunidos podem aparecer em coletâneas específicas sobre cientistas sociais, organizadas sob diferentes rótulos: “mulheres”, “feministas”, “negros”, “não ocidentais”, “decoloniais”, “do Sul” etc. Dificilmente, por exemplo, Du Bois deixaria de aparecer em uma coletânea sobre sociólogos negros, ou Jane Addams em uma sobre sociólogas mulheres. Minha seleção, contudo, sem desconhecer a relevância de iniciativas específicas a cada um desses recortes, buscou ser “ecumênica”. O que se perde em profundidade, espero ganhar em diversidade.

    O segundo critério foi o do pioneirismo ou do impacto que tiveram em seus contextos nacionais ou regionais. Alguns textos são importantes por terem sido dos primeiros a tratar de algum tema, ou pela recepção que tiveram. Harriet Martineau é, a meu ver, a primeira cientista social, independentemente do gênero. Ela publicou um notável manual sobre “como observar a moral e os costumes” em 1838, nada menos de 57 anos antes de Durkheim publicar suas regras do método sociológico. O antropólogo negro haitiano Anténor Firmin desafiou a pretensão científica do racismo do conde de Gobineau em 1885. O texto de Manuel Gamio, criticando os preconceitos contra os indígenas mexicanos, pode parecer trivial hoje, mas não o era quando foi publicado, no México de 1916. Ou o impacto, ainda forte, do  texto de 1960 de Takeuchi Yoshimi sobre a “Ásia como método”. Além de europeus e americanos, há aqui textos de autoras ou autores de Haiti, Índia, Japão, Turquia, Irã e México. Vejo em todas e todos qualidades suficientes, por si sós, para fazer parte de um repertório mais alargado. Trata-se, a meu ver, de ampliar o campo de possibilidades do cânone.

    O terceiro critério é o da beleza que atribuo aos textos selecionados. Aqui, assumo plenamente minhas preferências pessoais e a subjetividade de minhas escolhas. Em cada texto de apresentação indico os motivos da seleção, mas devo desde já dizer que gosto de todos eles, cada qual com seu estilo e em seu contexto histórico. Algumas escolhas podem obedecer a dois dos critérios acima mencionados. Jane Addams, por exemplo, é “mulher” e “pioneira”, mas a meu ver também compartilha, com todas e todos os demais, a beleza de seu texto. Louise Varga, por outro lado, dificilmente seria incluída em coletâneas organizadas sob esses mesmos critérios. Aqui, foi incluída pela impressionante força e beleza que vejo em sua etnografia do nazismo, publicada em 1937, quando esse movimento ainda estava em seu início.

    Acima de tudo, acho que os textos aqui reunidos, bem como suas autoras e autores, deveriam ser mais lidos e conhecidos. Conhecê-los representou um alargamento da percepção de minha própria ignorância em relação ao mundo, vasto mundo, das ciências sociais. Isso não é pouco. Espero que a seleção aqui feita ajude a formar uma geração de cientistas sociais que estudem a realidade social a partir de perspectivas mais amplas, diversas e coloridas do que aquelas que presidiram minha formação. Teremos assim ciências sociais mais abrangentes, diversas e renovadas. O alargamento do cânone ajudará a estimular a “imaginação sociológica” de que nos fala C. Wright Mills, num texto de 1959: a “capacidade de mudar de uma perspectiva para outra, e, nesse processo, consolidar uma visão adequada de uma sociedade total e de seus componentes”.

    Sobre a imagem da capa:

    O desenho do artista uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949), conhecido como “América invertida”, representa um mapa invertido da América do Sul. Torres García viveu no exterior entre 1891 e 1934 – Barcelona, Nova York, Paris e Madri. De volta ao Uruguai, criou em 1935 a Asociación de Arte Constructivo e em 1936 a revista Circulo y Cuadrado, em cujo primeiro número aparece a representação invertida da América do Sul, aqui reproduzida.3 A versão que foi utilizada na capa, contudo, foi a de 1943, mais limpa de elementos, e que se tornou sua obra mais conhecida.
    Torres García não rejeita a tradição artística europeia, com a qual afirma termos muito a aprender. Rejeita, porém, a submissão a um único cânone artístico hegemônico e homogeneizante, a orientação a partir de uma única bússola. Defende a necessidade de termos perspectivas diferentes de nossa posição no mundo, e para tal incorpora e reinventa em sua arte a tradição indígena sul-americana.
    É esse o sentido que quis transmitir ao livro, indicando essa imagem para a capa. Que os textos e autores aqui reunidos nos ajudem a ver o mundo de uma maneira mais complexa e diversa – e, por isso mesmo, ecumênica.

     

    A coletânea traz os textos indicados a seguir, antecedidos pelas apresentações de suas autoras e seus autores:

    Como observar a moral e os costumes, de 1838, da inglesa Harriet Martineau, britânica e que o organizador considera a fundadora das ciências sociais;

    Hierarquização fictícia das raças humanas, de 1885, do haitiano Anténor Firmin; Infância, de 1887, da indiana Pandita Ramabai;

    Preconceito de cor, de 1899, do norte-americano e pioneiro da sociologia urbana W. E. B. Du Bois

    Autoridade e autonomia no casamento, de 1912, da alemã Marianne Weber; o escrito de 1916,

    Preconceitos sobre a raça indígena e sua história, do mexicano Manuel Gamio;

    Memórias de mulheres: transmitindo o passado, como ilustrado pela história do Bebê Diabo, de 1916, da americana e segunda mulher a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, Jane Addams;

    A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social, texto de 1937, da austríaca Lucie Varga

    Contradições culturais e papéis sexuais, de 1946, da russa Mirra Komarovsky;

    Teoria e psicologia do ultranacionalismo, de 1946, do japonês Masao Maruyama;

    Uma aristocracia africana, do ano de 1947, da antropóloga sul-africana Hilda Kuper;

    Burguesia negra, de 1955, do americano E. F. Frazier;

    Nota sobre sanscritização e ocidentalização, de 1956, do indiano M. N. Srinivas;

    Ásia como método, de 1961, do japonês Yoshimi Takeuchi;

    Ocidentose: uma praga do Ocidente. Diagnosticando uma doença, de 1962, do iraniano Jalāl Āl-e Ah.mad;

    Relações centro-periferia: uma chave para a política turca?, do turco Şerif Mardin, do ano de 1973.

     

    Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais | Organizador: Celso Castro

     

  • Postado por editora em em 03/02/2022 - 19:03

    Esta viagem guiada por Lucia Lippi trata das reformas urbanas de Barcelona, Viena, Paris e Londres explorando a relação entre reforma, preservação e diferentes vertentes de restauração. No caso do Brasil, explora o nacionalismo arquitetônico representado pelo estilo Neocolonial, que teve na Exposição Internacional no Centenário em 1922 seu apogeu. Faz um contraponto entre antigas e novas capitais tais como Belo Horizonte e Ouro Preto e Brasília e Rio de Janeiro do início do século XX e do XXI.

    Conheça a apresentação da obra, mas antes, confira duas indicações importantes registradas na orelha do livro:

    "A cidade é o maior artefato da cultura. E a cidade contemporânea é um fenômeno em dimensões tais que supera todas as experiências sociais precedentes". Sérgio Magalhães

    "Preservar não é tombar, renovar não é pôr tudo abaixo". Carlos Nelson Ferreira dos Santos

     

    O presente livro resulta de uma dupla paixão. Paixão por viagens e paixão pelas cidades do Velho e do Novo Mundo. E foi pensado como a oportunidade de interligar estes dois amores.
    Desde que organizei o seminário “Cidade: urbanismo, patrimônio e cidadania” em 2001, em que foram apresentadas contribuições de importantes especialistas sobre o tema publicadas no livro Cidade: história e desafios (2002), meu interesse pelo tema só tem aumentado. Logo a seguir tive a oportunidade de ser convidada por Américo Freire a participar de dois projetos de entrevistas. Foi quando pudemos ouvir e aprender muito com os depoimentos de arquitetos e urbanistas que atuaram e pesquisaram o campo do urbanismo no espaço da cidade do Rio de Janeiro. Tais entrevistas deram ocasião a dois livros: Memórias do urbanismo carioca (2002) e Novas memórias do urbanismo carioca (2008).
    Motivada por tudo isto, montei um curso intitulado “Cidade e Patrimônio” que tive a oportunidade de ministrar para três turmas do mestrado profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais, do mestrado acadêmico e do doutorado em História, Política e Bens Culturais no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV) em 2014, 2016 e 2018. Apresentar e discutir os temas sobre reforma urbana e patrimônio em sala de aula, selecionar em uma imensa bibliografia textos que possam nos ajudar a compreender o assunto, tentar transmitir às novas gerações tais paixões é igualmente estimulante. A orientação de dissertações e teses a respeito também apresenta desafios particulares.
    A pesquisa realizada para a elaboração do livro envolveu basicamente o levantamento, a leitura e a seleção de artigos, livros, teses que apresentam argumentos pertinentes ao tema de cada um dos capítulos do livro. Isto teve que ser feito em um universo bibliográfico enorme que se origina em múltiplos campos do saber — urbanismo, arquitetura, geografia, sociologia, antropologia, ciência política — e que cresce continuamente. Esta atividade contou com a ajuda de uma bolsa de produtividade do CNPq durante os anos de 2014 até 2018.
    Sei que há na academia certa “má vontade” com o que é considerado divulgação de um conhecimento. Por outro lado, é muito gratificante poder repassar para um público mais amplo as descobertas, as conexões que puderam ser feitas ao longo da leitura da enorme bibliografia que existe a respeito de cidade e que, como já mencionei, está sendo continuadamente alimentada. Assim, o livro está voltado para um público universitário e para todos os interessados na história as reformas urbanas de algumas cidades nos séculos XIX e XX e nos desafios
    e soluções atualmente em voga.
    Este é o livro que gostaria de ter lido quando comecei a me interessar intelectualmente sobre o tema. Já disse isto a propósito de um livro anterior, Cultura é patrimônio: um guia (2008), publicado com a mesma finalidade — divulgação de um saber.
    No mais, só tenho a agradecer aos alunos que foram os primeiros a tomar conhecimento dos temas e das questões apresentadas no curso e a responder aos desafios que a literatura sobre cidade apresenta ao leitor. E aos colegas e amigos que leram capítulos e, partilhando de paixão similar, deram sugestões a respeito.
    Entre eles quero mencionar Bernardo Buarque de Hollanda, Helena Bomeny e Lucia Klein que aceitaram ler e fazer comentários pertinentes às primeiras versões de alguns dos capítulos. Lucia Klein pôde atualizar inúmeras informações a respeito de muitas cidades que visitamos juntas. Acima de tudo, tenho que agradecer àqueles que pesquisaram, escreveram e publicaram sobre as cidades. Sem eles não teria sido possível fazer o que fiz, ou seja, eu não teria o que “traduzir”.
    Não foi nem é possível tratar de todas as transformações sofridas pelas cidades nos séculos XIX e XX. Tive que fazer escolhas entre aquelas que passaram por importantes reformas urbanas no século XIX. Escolhi algumas que a literatura já consagrou, como os casos de Barcelona, Viena e Paris. Tratei também o caso de Londres que seguiu trajetória particular. Simultâneo ao processo de reforma, se apresentou o dilema sobre o que preservar e o que destruir. Procurei apresentar também os diferentes modelos de restauração e suas conexões com a restauração praticada na Inglaterra e na França.
    Ao chegar às cidades brasileiras tive também que fazer escolhas. Tratei de Belo Horizonte e de Ouro Preto como verso e reverso da decisão de transferir a capital e de construir uma nova capital para o estado de Minas Gerais. Aproximei a reforma da Pampulha em Belo Horizonte à construção de Brasília, cidade do futuro que confrontei com o que aconteceu com o Rio de Janeiro nos anos seguintes à transferência da capital. E assim cheguei ao Rio de Janeiro, cidade que passou por extensa reforma no início do século XX e no início do XXI, quando teve sua zona portuária como objeto de renovação.
    Ouvi muitas vezes a demanda pela inclusão do caso do Recife. Não tenho conhecimento suficiente que permita me sentir segura a respeito. Também gostaria muito de ter incluído um capítulo sobre São Paulo; entretanto, a quantidade e a qualidade das pesquisas existentes a respeito desta cidade me desencorajaram.
    Ao procurar associar cidade e patrimônio, pude apresentar questões relacionadas com a história da constituição do campo do patrimônio no Brasil e pude destacar o neocolonial como primeira proposta de valorização do passado colonial.
    O desenho de cada capítulo foi pensado como um artigo com relativa autonomia, daí o livro poder ser lido em qualquer ordem. Pode-se ver que há alguns temas que estão presentes em um momento e que retornam em outros. Não é necessário ler o capítulo anterior para compreender o que está sendo apresentado a seguir.
    Se esta é a história acadêmica deste livro, há uma outra motivação que se relaciona com a minha vida. Nascida no interior do estado do Rio, cresci tendo um fascínio pela cidade grande mesmo avisada desde muito cedo sobre “os perigos da metrópole”.
    Visitei a praia de Copacabana pela primeira vez em 1954. Cheguei a pé atravessando o túnel Novo. Fiquei encantada. Visitei a Barra da Tijuca quando para se chegar lá era necessário subir pela estrada do Joá e lá do alto ver ao longe aquele imenso espaço de mar, de praia e de vazio, rasgado pela presença de umas barraquinhas onde se comprava milho cozido e caldo de cana.
    Vim morar no Rio nos anos 1960, quando a cidade não era mais a capital do país. Vivenciei os engarrafamentos derivados das imensas obras que o governo Lacerda realizava no estado da Guanabara. Assim pude compreender de perto o que diz a música: “Rio de Janeiro, cidade que me seduz/ De dia falta água, de noite falta luz”.
    Tive por longo tempo um encantamento por esta cidade intercalado por momentos de descrença diante do que vem acontecendo desde os anos 1990. 
    Posso dizer que, consciente e inconscientemente, o que estudei e li sobre cidades tem a ver com esta paixão originária pelo Rio.
    Por outro lado, nunca pude imaginar que escreveria sobre cidade em um momento em que estamos afastados da vida nas ruas da cidade! A quarentena que a Covid-19 me (nos) obrigou a enfrentar ficou menos pesada já que pude viajar virtualmente por cidades que visitei no passado ou pelas que ainda sonho visitar.
    O enfrentamento da pandemia que atingiu o mundo em 2020 se apresentou como uma experiência nova no mundo atual. Isto se contrapõe às demandas de mobilidade e de consagração da interação social nos espaços públicos enquanto arena fundamental da sociedade humana.
    O isolamento e o distanciamento social forçam as pessoas a trabalhar, a comprar, a estudar e a se divertir em casa. Alterações na vida cotidiana com o trabalho remoto virtual alterando ritmo e horário de trabalho, assim como a maior atenção aos hábitos sanitários incorporando o álcool gel e o lavar as mãos, isto só para mencionar experiências individuais no espaço do cotidiano.
    O uso da máscara também se apresenta como desafio já que a máscara esconde, desfigura o rosto. Seu uso positivo se contrapõe ao ditado “tire a máscara da face”. O rosto aparece, ou melhor, aparecia como lugar de reconhecimento mútuo permitindo a comunicação.
    A barreira ao fluxo de pessoas com a interrupção dos transportes e, consequentemente, do turismo despertou medos, preconceitos e paranoias. Por outro lado, também valorizou a produção, a agricultura e o comércio locais, assim como o fechamento da economia, das fronteiras, produzindo um certo tipo de desglobalização.
    Quando imaginava quais seriam as grandes questões do século XXI, eu pensava no lixo produzido pelo alto padrão de vida e na questão das novas migrações que atingem e ameaçam o mundo rico! Ainda que tais questões permaneçam, a pandemia criou outra ordem de problemas e de demandas.
    O vírus reduziu a circulação de automóveis, de aviões, de navios e, ao fazer isto, levou à diminuição da poluição ambiental, o que permitiu que animais, golfinhos e pássaros retomassem parte de seus espaços no planeta terra.
    Ou seja, estamos vivendo uma transmutação inimaginável!

     

    Cidade é patrimônio: uma viagem | Lúcia Lippi

     

  • Postado por editora em em 03/02/2022 - 18:46

    Este livro foi tema da redação da prova do Enem de 2021 e seráo assunto do bate-papo da autora, Fernanda da Escóssia, e a jornalista Cláudia Lamego, na Janela Livraria, sábado, dia 9/7/2022, às 16h.

    A obra apresenta histórias e lutas reais e muitas vezes comoventes de brasileiras e brasileiros que não têm documentos de registro de nascimento e, por isso, são impossibilitados de acessar serviços básicos do Estado por serem invisíveis.

    Confira a seguir parte da introdução da obra Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento, da jornalista Fernanda da Escóssia:

    Toda sexta-feira, o ônibus azul e branco estacionado no pátio da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, na região da Praça Onze de Junho, Centro do Rio, sacoleja com o entra e sai de gente a partir das 9h. Do lado de fora, nunca menos de 50 pessoas, todas pobres ou muito pobres, quase todas negras, cercam o veículo, perguntam, sentam e levantam, perguntam de novo e esperam sem reclamar o tempo que for preciso. Adultos, velhos e crianças estão ali para conseguir o que, no Brasil, é oficialmente reconhecido como o primeiro documento da vida — a certidão de nascimento.
    Resultado de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-registro de Nascimento e à Busca de Certidões (Sepec), o ônibus da Praça Onze é o coração de um trabalho realizado pelo TJRJ com a finalidade de reduzir o chamado sub-registro, a proporção de pessoas sem certidão de nascimento. É também o objeto deste livro, uma versão reduzida de minha tese de doutorado. Inspirada pela indagação de Peirano (2006) — de que serve um documento? —, analiso como o processo de obtenção da certidão de nascimento traz à tona concepções de direitos e cidadania expressadas pelas pessoas que procuram o serviço da Justiça Itinerante no Centro do Rio de Janeiro e problematizo de que forma, nesse processo, tais concepções vividas e relatadas por elas também se transformam.
    A fim de valorizar a experiência e as vivências das pessoas sem documento, construí metodologicamente a pesquisa como uma etnografia, com observação participante no ônibus da Praça Onze. Também no livro, optei por destacar as histórias e as respostas dessas pessoas às minhas perguntas. Como um adulto vive sem documentos numa sociedade documentada? Como se vê sem documentos? Que papel atribui ao registro de nascimento?
    “Quero o registro de nascimento para receber o Bolsa Família”, dizia um. “Quero o registro de nascimento para tirar a carteira de trabalho”, afirmava outro. “Quero dar entrada na aposentadoria”, esclarecia o terceiro. “Quero o registro para colocar meu filho na escola”, ressaltava o quarto. As respostas de quem chegava ao ônibus indicavam inicialmente que o registro de nascimento teria finalidade imediata, pois os entrevistados afirmavam que buscavam o documento para conseguir alguma coisa, muitas vezes outro documento (carteira de trabalho), acesso a políticas públicas e benefícios sociais (inclusão no Bolsa Família, aposentadoria) ou serviços (vaga em escola, atendimento médico).
    Etnografar o adulto sem documento é mergulhar no que Das e Poole (2004) categorizam como “margens do Estado”, práticas, lugares e linguagens em espaços que parecem estar nos limites do funcionamento regulamentado do Estado-nação. O desafio trazido pela reflexão de Das e Poole, e que tento incorporar a esta pesquisa, é refletir sobre que relações se desenrolam nessas margens, tradicionalmente percebidas como áreas nas quais o Estado parece não estar presente — mas está, ainda que de modo não regular nem regulamentado. E perceber que margens do Estado também constituem o que chamamos Estado, pois o Estado também se faz nas margens (Das e Poole, 2004). Outra reflexão necessária é sobre como tais margens, muitas vezes entendidas como áreas nas quais o Estado foi inábil para impor sua ordem e como lugares onde haveria apenas exclusão e desordem, reorganizam continuamente suas práticas e experiências, numa construção que não é monolítica, mas sim processual e dinâmica. Nas margens do Estado, a observação etnográfica dessas práticas e vivências mostra que exclusão e desordem convivem com resistência e pluralidade.
    A chegada das pessoas sem documento ao ônibus é um encontro, com agentes do Estado, de indivíduos que sempre viveram nas margens desse Estado. Quem não tem registro de nascimento não pode tirar nenhum outro documento, não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens em seu nome. Só consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas exigem documentação para matricular crianças. Durante a pesquisa de campo, pude observar uma dupla operação: (1) a reconstituição, pelas pessoas atendidas no ônibus da Praça Onze, de suas existências nas margens do Estado e (2) o encontro dessas pessoas com agentes do Estado e, mais do que isso, com a ideia que elas construíram de Estado, aqui representado pela Justiça Itinerante.
    A observação cotidiana do atendimento no ônibus foi me indicando que o registro de nascimento tinha finalidade imediata, mas não apenas isso. Os relatos permitiram inferir que, no processo de obtenção do documento, muitas das pessoas atendidas buscavam reconstruir a própria história e recuperar laços familiares, no processo que Schritzmeyer (2015) nomeia como recuperação dos “fios de suas vidas”. Elaborei então a hipótese de que, na busca pela documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de nascimento” se junta a outra, que remete a outra busca, agora por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história familiar. A busca pelo registro de nascimento, com os direitos que ele garante, é parte de um processo maior de construção da própria identidade.

    Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento | Fernanda da Escóssia

  • Postado por editora em em 03/02/2022 - 18:37

    Este não pretende ser mais um livro sobre relações raciais, lutas indígenas ou o movimento de consciência negra no Brasil; sua preocupação é fundamentalmente com a forma como cada uma dessas questões se inter-relaciona com - e pode até reformular - a lei e seus efeitos sobre a vida de pessoas como as que habitam as margens do rio São Francisco no Mocambo e a ilha de São Pedro.

    Confira o prefácio da obra Tornar-se negro ou índio: a legalização das identidades no Nordeste brasileiro de Jan Hoffman French:

     

    No sertão nordestino assolado pela pobreza, grupos de camponeses têm sido reconhecidos como tribos indígenas ou descendentes de antigas comunidades de quilombo pelo governo brasileiro desde a década de 1970. Neste livro, explico como dois desses grupos, vizinhos e aparentados, passaram a se autoidentificar como distintos do ponto de vista etnorracial e recorreram a leis federais diferentes em sua luta por reconhecimento e terra. Fui apresentada à área que se tornaria meu campo de pesquisa pelo Centro Dom José Brandão de Castro, organização não governamental que se vinculara à Igreja Católica há poucos anos. Sabendo de meu interesse por índios afrodescendentes nos Estados Unidos, um amigo brasileiro havia mencionado que conhecia alguns “negros” em Sergipe que havia recebido cartões da Funai, agência de proteção ao índio brasileira, que os identificava como membros da tribo indígena dos Xocó1. Quando esse amigo me colocou em contato com a equipe do Centro e expressei meu interesse em saber mais sobre os Xocó, explicaram-me que a maior parte de seu trabalho estava naquele momento sendo realizado no povoado vizinho, Mocambo. A maior parte dos moradores do Mocambo, dos quais a maioria tinha parentes entre os Xocó, era de trabalhadores rurais; eles haviam sido reconhecidos como uma comunidade de remanescentes de quilombo pelo governo brasileiro no ano anterior (1997) com base no art. 68 da Constituição de 1988, primeira constituição democrática desde a tomada do poder pelo regime militar em 1964. Assim, criaram-se as condições para uma situação inimaginável pelos padrões norte-americanos: duas comunidades vizinhas e aparentadas, cujos destinos estiveram completamente imbricados durante gerações, estavam agora separadas do ponto de vista da etnicidade, da raça, da política e da terra. Cada comunidade foi reconhecida por um órgão do governo federal distinto; uma é considerada índia e a outra, negra, embora todos descendam de africanos, índios e europeus.

    Intrigada por essa configuração etnorracial e demográfica, viajei pela primeira vez a Sergipe em maio de 19982. Ao chegar ao aeroporto de uma única pista na capital de Sergipe, Aracaju, a primeira coisa que notei foi um mural de azulejos amarelos na área de restituição de bagagens. Ele retratava um grupo de índios dançando com lanças, saiotes de pena, cabelos compridos e padrões geométricos pintados sobre a pele3. Com base em pesquisa prévia, eu já sabia que o mural não era representativo dos habitantes da área, embora isso fosse parte importante do discurso sobre o legado e a história de Sergipe. Fui levada às pressas pela equipe do Centro para uma reunião envolvendo moradores do Mocambo, membros de outras comunidades negras rurais, um antropólogo brasileiro e membros da equipe de uma organização local do movimento de consciência negra. Sentada no chão com os líderes da comunidade, jovens e velhos, mulheres e homens, fui apresentada ao primeiro quilombo a obter reconhecimento pelo governo federal em Sergipe. Assisti-os desenhar mapas da organização espacial de seu povoado e fui informada sobre os trabalhos disponíveis, a terra e os serviços de que necessitavam. Alguns dias mais tarde, tomei um ônibus e viajei por estradas esburacadas até chegar ao interior do estado, onde estabeleceria contato com uma aldeia e 

    um povoado localizados às margens do rio São Francisco: Mocambo, o quilombo reconhecido, e a ilha de São Pedro, onde viviam os Xocó. Durante essa primeira viagem de ônibus de quatro horas, minha mente foi tomada por todas as imagens que eu vira, a música que ouvira e as histórias que lera sobre o Nordeste e seu rústico sertão semiárido. Observei como a paisagem mudava: dos campos verdes para as vastas extensões de terra empoeirada salpicada de vacas, das palmeiras para os cactos.

    Ao longo dos anos que se seguiram a minha primeira visita, realizei amplas pesquisas etnográficas, históricas e legais tendo essas duas comunidades como foco. Aprendi sobre direito, raça, etnicidade, política e relações socioeconômicas no Brasil. Além da observação participante, realizei mais de uma centena de entrevistas (50 das quais foram gravadas e transcritas) com moradores, antigos proprietários de terra, advogados, antropólogos, ativistas, políticos e autoridades governamentais; analisei processos judiciais atuais e históricos; e realizei pesquisa documental em tribunais, junto ao governo, sobre a Igreja Católica, em jornais e arquivos pessoais. Contudo, uma metodologia é mais do que a mera forma como os dados são reunidos. Ela envolve a análise e revisão constante do entendimento que se tem sobre as pessoas e os lugares experienciados. Nesse caso, minha abordagem analítica permitiu-me desenvolver um modelo teórico com base em cada interação, em cada fração de conhecimento obtida. Esse modelo, que denominei “legalização das identidades”, explica a inter-relação entre práticas culturais, disposições legais e formação identitária.

    Conforme realizava a pesquisa, descobri que no início da década de 1970 um grupo de trabalhadores rurais de ascendência mista – africana, indígena, portuguesa e holandesa – que vivia às margens do rio São Francisco havia procurado obter direitos sobre a terra e proteção contra os proprietários de terra locais, de lendária violência. Essa reivindicação de direitos foi facilitada pela chegada de um padre franciscano, o qual, incentivado por seu bispo, falou às pessoas sobre a potencial importância de sua ascendência indígena. Em 1973, a recém-articulada reivindicação de identidade indígena por parte dessas pessoas foi facilitada pela promulgação de uma nova lei nacional para reger os povos indígenas e seus direitos. Explico nesta obra como essa lei abriu inadvertidamente as portas para o reconhecimento de muitos grupos pelo governo no Nordeste, os quais eram antes considerados completamente assimilados pela sociedade dominante. A despeito do ceticismo local nos primeiros anos de luta, essas pessoas, que passaram a se chamar Xocó, obtiveram o reconhecimento oficial como tribo em 1979 e direito total à terra em 1991. Os Xocó são o único grupo indígena oficialmente reconhecido no Sergipe e a única comunidade a reivindicar a identidade indígena. O reconhecimento foi a culminância de encontros com proprietários de terra, policiais, juízes e advogados, e da ocupação ilegal da ilha de São Pedro. Este livro conta sua história.

    Mais de duas décadas após o início da luta por reconhecimento xocó, os moradores do povoado ribeirinho vizinho do Mocambo, geralmente referidos como os “negros do Mocambo”, foram reconhecidos pelo governo como comunidade remanescente de quilombo. O reconhecimento foi acompanhado de uma mudança de atitude em relação a sua identidade como comunidade negra, bem como da propriedade da terra em que haviam trabalhado durante gerações. Isso se deu com base no art. 68, incluído na Constituição de 1988 em resposta à pressão por parte dos representantes do movimento negro e como desejo de lidar com o pluralismo na sociedade brasileira em um momento em que a ideologia nacional da democracia racial estava sendo cada vez mais posta em xeque. Esta obra explica e analisa o tortuoso caminho de revisão identitária percorrido pelos moradores do Mocambo.

    Antes do advento da primeira das lutas, os indivíduos da área se identificavam como meeiros dos proprietários de terra para os quais trabalhavam e a cujos interesses serviam, em um sistema tradicional de clientelismo. As duas lutas, que obtiveram o auxílio de gerações 

    sucessivas de partidários da teologia da libertação católica (padres, bispos, freiras e clero secular), resultaram em uma revisão drástica da identificação etnorracial e política coletiva de cada comunidade, bem como da dinâmica do poder político na região. Os paralelos entre as duas gerações de agentes pastorais inspiradas pela teologia da libertação ficarão evidentes no decorrer da narrativa sobre as lutas do Xocó e do Mocambo. As histórias são diferentes em parte porque a luta xocó ocorreu durante a ditadura militar com uma igreja forte, orientada pela teologia da libertação, ao passo que a comunidade do Mocambo travou sua luta em um ambiente democrático, com uma hierarquia eclesiástica que procurava se afastar de seu legado progressista. Conforme o país se democratizava, as pessoas de cor em todo o mundo remoldavam e afirmavam suas respectivas identidades para obter terra, recursos e poder. No próprio Brasil tivera início um diálogo nacional sério sobre raça e cor. Essas mudanças refletem na vida dessas pessoas, as quais escolheram um modo de luta e sobrevivência que transformou sua identidade etnorracial e levou a reconfigurações de suas práticas culturais.

    Os membros das comunidades do Xocó e do Mocambo partilham relações de parentesco e uma história comum como sertanejos e vaqueiros. Eles sempre estiveram profundamente envolvidos uns na vida dos outros, e essa relação prosseguiu a despeito de terem revisado e recontado novas e velhas histórias de luta. Em outras palavras, pessoas que não se distinguiam de outros camponeses sertanejos tiveram sucesso ao reivindicar uma identidade indígena ou quilombola, obtendo o reconhecimento do governo e o direito à terra e deslocando os proprietários de terra da elite. Isso ocorreu a despeito de os antropólogos que avaliaram a validade de suas reivindicações reconhecerem que as identidades etnorraciais afirmadas eram “construídas”, o que demonstra que a “autenticidade” não é um requisito da identidade por definição. Em uma reviravolta incomum, a noção de que raça e etnicidade são construções sociais reforçou, e não solapou, as reivindicações de diferença do Xocó e do Mocambo (ver Clifford, 1988).

    Por meio dos esforços governamentais em prol das comunidades indígenas e negras rurais, o Estado assumiu inadvertidamente o papel de instigador, se não de criador, de novas identidades indígenas e quilombolas. Admiti-lo não atrapalhou o andamento dos reconhecimentos e da redistribuição de terra. A autoidentificação como índio ou quilombola alimenta-se de narrativas históricas imbricadas com a solidariedade social forjada nas lutas recentes por reconhecimento e terra. Entretanto, o sucesso dessas lutas depende de leis que foram promulgadas para reconhecer – mas obtiveram sucesso em criar – minorias etnorraciais dotadas de direitos. As fronteiras desse processo foram moldadas pelas crescentes divisões políticas e diferenças culturais entre os índios xocó e os quilombolas do Mocambo, que se estabeleceram conforme cada grupo procurava afirmar sua unidade interna. Embora relações familiares e uma história comum conectem as duas comunidades, as especificidades da luta pela terra de cada grupo e as expectativas associadas a ser índio ou negro levaram-nas a se distinguir. Hoje as pessoas dessas duas comunidadies se veem como diferentes, mas relacionadas. A diferenciação é mantida principalmente por corpos de leis distintos, instituições governamentais diversas, diferenças políticas, competição por recursos e desentendimentos familiares.

    As lutas sucessivas das comunidades do Xocó e do Mocambo são ideais para se considerar como essa diferenciação opera tanto na realidade quanto nas práticas discursivas e culturais das pessoas que assumiram e viveram essas novas identidades – em outras palavras, como a legalização das identidades opera para modificar sua experiência vivida. No Brasil, que aboliu a escravidão somente em 1888, camponeses descendentes de africanos e indígenas mantiveram relações próximas durante séculos. Foi apenas com a aprovação e aplicação das leis que essas descendências começaram a se desintrincar, por vezes com consequências imbricadas. Como demonstro nesta obra, a 

    da identificação etnorracial e política coletiva de cada comunidade, bem como da dinâmica do poder político na região. Os paralelos entre as duas gerações de agentes pastorais inspiradas pela teologia da libertação ficarão evidentes no decorrer da narrativa sobre as lutas do Xocó e do Mocambo. As histórias são diferentes em parte porque a luta xocó ocorreu durante a ditadura militar com uma igreja forte, orientada pela teologia da libertação, ao passo que a comunidade do Mocambo travou sua luta em um ambiente democrático, com uma hierarquia eclesiástica que procurava se afastar de seu legado progressista. Conforme o país se democratizava, as pessoas de cor em todo o mundo remoldavam e afirmavam suas respectivas identidades para obter terra, recursos e poder. No próprio Brasil tivera início um diálogo nacional sério sobre raça e cor. Essas mudanças refletem na vida dessas pessoas, as quais escolheram um modo de luta e sobrevivência que transformou sua identidade etnorracial e levou a reconfigurações de suas práticas culturais.

    Os membros das comunidades do Xocó e do Mocambo partilham relações de parentesco e uma história comum como sertanejos e vaqueiros. Eles sempre estiveram profundamente envolvidos uns na vida dos outros, e essa relação prosseguiu a despeito de terem revisado e recontado novas e velhas histórias de luta. Em outras palavras, pessoas que não se distinguiam de outros camponeses sertanejos tiveram sucesso ao reivindicar uma identidade indígena ou quilombola, obtendo o reconhecimento do governo e o direito à terra e deslocando os proprietários de terra da elite. Isso ocorreu a despeito de os antropólogos que avaliaram a validade de suas reivindicações reconhecerem que as identidades etnorraciais afirmadas eram “construídas”, o que demonstra que a “autenticidade” não é um requisito da identidade por definição. Em uma reviravolta incomum, a noção de que raça e etnicidade são construções sociais reforçou, e não solapou, as reivindicações de diferença do Xocó e do Mocambo (ver Clifford, 1988).

    Por meio dos esforços governamentais em prol das comunidades indígenas e negras rurais, o Estado assumiu inadvertidamente o papel de instigador, se não de criador, de novas identidades indígenas e quilombolas. Admiti-lo não atrapalhou o andamento dos reconhecimentos e da redistribuição de terra. A autoidentificação como índio ou quilombola alimenta-se de narrativas históricas imbricadas com a solidariedade social forjada nas lutas recentes por reconhecimento e terra. Entretanto, o sucesso dessas lutas depende de leis que foram promulgadas para reconhecer – mas obtiveram sucesso em criar – minorias etnorraciais dotadas de direitos. As fronteiras desse processo foram moldadas pelas crescentes divisões políticas e diferenças culturais entre os índios xocó e os quilombolas do Mocambo, que se estabeleceram conforme cada grupo procurava afirmar sua unidade interna. Embora relações familiares e uma história comum conectem as duas comunidades, as especificidades da luta pela terra de cada grupo e as expectativas associadas a ser índio ou negro levaram-nas a se distinguir. Hoje as pessoas dessas duas comunidadies se veem como diferentes, mas relacionadas. A diferenciação é mantida principalmente por corpos de leis distintos, instituições governamentais diversas, diferenças políticas, competição por recursos e desentendimentos familiares.

    As lutas sucessivas das comunidades do Xocó e do Mocambo são ideais para se considerar como essa diferenciação opera tanto na realidade quanto nas práticas discursivas e culturais das pessoas que assumiram e viveram essas novas identidades – em outras palavras, como a legalização das identidades opera para modificar sua experiência vivida. No Brasil, que aboliu a escravidão somente em 1888, camponeses descendentes de africanos e indígenas mantiveram relações próximas durante séculos. Foi apenas com a aprovação e aplicação das leis que essas descendências começaram a se desintrincar, por vezes com consequências imbricadas. Como demonstro nesta obra, a busca por justiça social envolve conflitos interpessoais, inimizades e alianças cambiantes, invenções e reinterpretações, além de contingências históricas.

    As histórias aqui contadas e analisadas lançam luz sobre como pessoas que habitam um local relativamente isolado foram atores e criadores dessas histórias. Contudo, não se trata aqui apenas de histórias que revelam a lógica da transformação identitária em um contexto local. Mais do que isso, este livro investiga uma série de fenômenos que estão transformando o Brasil e o hemisfério ocidental. O continente americano foi assolado por movimentos por reconhecimento etnorracial e justiça redistributiva, muitos dos quais tiveram início na década de 1970. Os exemplos e explicações apresentados nesta obra elucidam um processo em curso em muitas partes do mundo em termos das relações entre direito, raça/etnicidade, desigualdade econômica e práticas culturais. Trata-se, portanto, não só de direito, identidade, direitos à terra e movimentos sociais, mas também da transformação da vida das pessoas e dos efeitos, ao longo de gerações, das mudanças de perspectivas ideológicas e do engajamento com novas leis. Conforme o reconhecimento da diferença cultural afirmada e a distribuição de terra e recursos adquirem proeminência na agenda de muitas nações no hemisfério ocidental como resultado de pressões vindas de cima e de baixo, a lógica dos direitos sobre a propriedade também se transforma. Por meio de uma nova conceitualização da “legalização das identidades”, podemos começar a compreender os processos colocados em movimento como parte da reação mundial à Guerra do Vietnã, à derrota dos Estados Unidos nessa guerra, à afirmação de direitos civis no primeiro mundo, aos regimes militares seguidos de redemocratização na América Latina, ao sucesso das lutas anticoloniais no terceiro mundo e à globalização de direitos. Conforme as demandas pela distribuição equitativa de terra e recursos ganharam força, elas passaram a ser refratadas através do prisma do reconhecimento identitário de índios e negros; assim surgiu uma nova forma de empoderamento, a partir da qual as pessoas passaram a ter voz sobre sua própria vida. O objetivo desta obra é compreender as fontes e os efeitos dessas lutas, seus sucessos e fracassos.

    Tornar-se negro ou índio: a legalização das identidades no Nordeste brasileiro | Jan Hoffman French

  • Postado por editora em em 20/10/2021 - 12:06

    Em ‘O cavalo de troia digital: a quarta revolução industrial’, publicada pela FGV Editora, o professor Luiz Roberto Nascimento Silva analisa as principais revoluções industriais e seus impactos na geração de empregos. Nesta obra ele descreve as ideias vivas de dois dos maiores economistas já mortos; expõe que com a pandemia o mapa da pobreza no país precisa ser refeito; afirma que mesmo passada a crise de saúde o mundo não será o mesmo, e que o desemprego gerado pela revolução digital obrigará o Brasil e os demais países a terem programas de transferência de renda de maneira permanente.

    Confira a seguir a introdução da obra:

    Estamos como estiveram os troianos ao receber o cavalo de Troia dos gregos. Aceitaram felicíssimos aquele presente maravilhoso que chegou de forma gratuita e graciosa. O enorme cavalo de madeira foi entendido pelos troianos como um signo de vitória e assim foi carregado para dentro das muralhas fortificadas. À noite, os soldados inimigos saíram do cavalo, dominaram as sentinelas e abriram os portões permitindo a entrada do Exército grego, levando a cidade à derrota e à ruína.
    A história da guerra foi contada primeiro na Ilíada, de Homero, ainda que sem referência específica ao episódio do cavalo, e depois na Odisseia, em que aparece brevemente numa passagem pequena. Vários escritores depois ampliaram e detalharam a guerra e a artimanha. O cavalo é geralmente entendido como uma criação literária, ainda que vários estudiosos acreditem que possa ter existido ao menos como uma máquina de guerra transfigurada ao longo do tempo pelos cronistas.
    Do ponto de vista documental, os dois poemas, fundadores da literatura ocidental com seus mais de 27.000 versos, não são propriamente um relato da Guerra de Troia porque Homero teria vivido no século VIII a.C. e a guerra em questão se deu no século XIII a.C. Homero não foi testemunha dos combates na planície de Troia, nem pôde ouvir testemunhos de seus combatentes.
    Homero era um aedo, um portador da palavra poética que declamava esses versos em cantos que reconstituíam aos ouvintes os acontecimentos originais numa perspectiva diversa da que se tem hoje de um escritor. Ambos os poemas só vieram a ser fixados na linguagem escrita muitos anos depois, pois no período em que foram encenados e declamados a escrita não era ainda usada no mundo grego.

    De qualquer forma, o episódio da Guerra de Troia e o estratagema do cavalo permaneceram como símbolos contínuos e populares na literatura, cinema e teatro. Diversas expressões idiomáticas se formaram em torno do episódio, fazendo com que “cavalo de Troia” significasse um engodo destrutivo, “presente de grego” como alguma coisa que é recebida de forma agradável, mas que acarreta péssimas consequências. Serve também para designar um potente e conhecido malware que é a expressão para software malicioso usado por hackers ou criminosos para obter acesso aos sistemas dos usuários, roubando seus dados confidenciais e assim desviando recursos da vítima, danificando depois seus computadores. Normalmente ele vem disfarçado de um software legítimo; por isso é tão perigoso.
    Por isso, recorri a essa alegoria enraizada na nossa cultura para debater uma situação em tudo semelhante ao que vem ocorrendo com o mundo agora. Aceitamos de bom grado, felizes, a internet em nossas vidas. Ela nos chegou também gratuitamente, uma vez que o físico Tim Berners-Lee, em 1989, quando a criou, não a patenteou, permitindo que pudesse ser utilizada sem custos financeiros pelos futuros usuários. Nos primeiros anos, a internet e a revolução digital trouxeram avanços inegáveis largamente superiores aos problemas que depois geraram. Abaixamos a guarda e fomos sendo seduzidos pelas facilidades e comodidades que a digitalização e a internet nos traziam e quando acordamos estava tudo ocupado. Tornamo-nos prisioneiros de nossa própria esperteza. Estávamos escravizados como os dependentes químicos. Tínhamos perdido a guerra, perdido a linha divisória, a fronteira que preservava nossa intimidade e estávamos condenados a servir a esse novo senhor.
    Nessa nova ordem mundial, a destruição de empregos formais na economia é superior à criação de novos no setor de tecnologia e computação. O crescimento das empresas tem se feito pela maior digitalização de suas cadeias produtivas, acarretando redução de funcionários. O setor musical foi devastado em sua formação anterior. Os jornais sentem diariamente os efeitos dela. O mercado de livros não sabe como irá se redesenhar. O ganho inequívoco de eficiência se fez pelo desemprego maciço de mão de obra em inúmeros setores.
    O mundo virtual criou um universo fraturado, imediato, instantâneo. Como observa Jean Baudrillard: existe uma espécie de metabolismo diabólico do sistema que, ao fractalizar tudo, procedeu à integração de toda dimensão crítica, irônica, contraditória. Tudo está on-line; ora nada pode ser contraposto a um acontecimento on-line.

    Hoje está tudo dominado. Todo o sistema bancário depende integralmente da informática. O Poder Judiciário funciona crescentemente por meio da rede. A Secretaria da Receita Federal trabalha apenas pela internet e não existem mais declarações de tributos federais que não sejam informatizadas. O sistema de reservas de passagens e de hotelaria é feito pela rede. Todas as operações das bolsas de valores são feitas em tempo real, eletronicamente. O percentual do comércio interno e internacional que é feito pela internet aumenta continuamente.
    Não é só isso. Nenhum ramo do conhecimento ficou indiferente a essa revolução. O que se avançou na área médica é incomensurável, tanto na parte preventiva, como na própria pesquisa e no avanço na execução de cirurgias. Na arquitetura, urbanismo e paisagismo o uso do computador é uma constante. No direito, na economia, enfim em todos os campos do conhecimento a informação é mais rápida, universal e gratuita.
    Além dos impactos que já abordamos, a internet acabou por intervir na forma de fazer política. A eleição da Barack Obama só se tornou possível pela estruturação de sua campanha nas redes sociais, o que assegurou a ele votos e recursos financeiros, primeiro para vencer a senadora Hillary Clinton na indicação do partido democrata e depois a própria eleição presidencial.

    Movimentos sociais de massa como a “Primavera Árabe” inundando a praça Thair e todos outros que ocorreram na Espanha, Portugal, Suécia, Grã-Bretanha e no Brasil só foram possíveis pela velocidade e surpresa que a internet proporciona por meio das redes sociais. Entretanto pouco depois a internet passou a ser amplamente utilizada na eleição de uma série de políticos autoritários com o exercício de um discurso de antagonismo permanente capaz de ganhar uma eleição, mas incapaz de unir um país. Após a eleição, frequentemente eles continuam a conduzir seus países como se estivessem em campanha e houvesse sempre um inimigo a ser combatido.

    A internet alterou completamente a política. As estruturas anteriores dos partidos políticos terão de ser repensadas. Toda a democracia direta, construída em plenários de sindicatos e de partidos, conselhos deliberativos, associações de moradores, está perdendo força e expressão. Passamos de um estágio de sociedade civil organizada para outro de sociedade civil mobilizada. Como as redes sociais são horizontais, elas retiraram parte da hierarquia que presidiu o processo político durante muitos longos anos.
    As novas tecnologias de comunicação estão afetando e transformando o processo cognitivo do cérebro humano. O conhecimento estruturou-se pela linearidade e vem sendo substituído pela reticularidade, que é a disposição em rede das matérias. Os jornais na internet são lidos em colunas e não mais de maneira linear como ocorria na sua plataforma papel. O leitor não se fixa mais na ordem cronológica das colunas e da própria organização que o veículo estruturou para o grande público. Ele salta, alterna, modifica o processo de leitura da mesma forma que o controle remoto permitiu o zapeamento dos canais de televisão. Nada obedece a ordem antes estabelecida. À medida que o próprio cérebro humano vem sendo alterado e modificado, habilidades e horizontes vão sendo demarcados de forma inteiramente distinta. Um novo mapeamento está sendo descoberto e nele algumas fronteiras estão sendo descobertas e antigas fronteiras estão sendo esquecidas. Estamos formando – mesmo sem o saber – uma nova cartografia.
    A revolução digital é irreversível. Não haverá vida nem civilização sem ela. Ao contrário das revoluções econômicas anteriores, essa está claramente reduzindo vagas de trabalho, por meio de um abrupto e não uniforme aumento da produtividade de alguns, gerando mais desemprego mesmo que, em alguns setores, com aumento de produção. O combate e a resistência deverão ser feitos dentro desse ambiente digital, pois nações que não se conectarem rapidamente aumentarão o fosso de distanciamento em relação às nações com conectividade plena. A discussão terá que ser on-line.

    Sabemos todos que uma revolução dessa proporção não terá retorno. Não temos caminho de volta. Isso, no entanto, não nos impede de formular ideias e dividir informações sobre o que vem ocorrendo. Um dos objetivos deste ensaio é permitir que, com maior reflexão e informação sobre o que vem ocorrendo, cada cidadão individualmente possa reconstruir parte de sua geografia pessoal, que foi invadida com sua autorização à semelhança dos troianos quando autorizaram a entrada daquele cavalo em sua cidade.
     

    O cavalo de troia digital: a quarta revolução industrial

    Luiz Roberto Nascimento Silva

     

  • Postado por editora em em 20/10/2021 - 11:45

    "Uma mulher que precisa de cirurgia para tratar um câncer, mas foi rejeitada nos hospitais por não ter documentos. Outra que, à procura de sua certidão de nascimento, encontra a irmã de quem fora separada havia mais de vinte anos. Histórias assim emergem desta etnografia ao mesmo tempo avassaladora e delicada, que mergulha no cotidiano de exclusão de brasileiros indocumentados, ilegíveis pelo Estado, invisíveis em seu próprio país. O livro narra como a certidão de nascimento se torna um passo imprescindível no longo caminho da cidadania."

    Em Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento, a jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia apresenta o resultado de sua tese de doutorado sobre as trajetórias de brasileiros adultos sem certidão de nascimento. Durante dois anos, a autora mergulhou no cotidiano de um serviço público e gratuito de emissão de certidões instalado num ônibus na Praça Onze, no Centro do Rio de Janeiro.

    Confira um trecho da introdução da obra:

    Toda sexta-feira, o ônibus azul e branco estacionado no pátio da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, na região da Praça Onze de Junho, Centro do Rio, sacoleja com o entra e sai de gente a partir das 9h. Do lado de fora, nunca menos de 50 pessoas, todas pobres ou muito pobres, quase todas negras, cercam o veículo, perguntam, sentam e levantam, perguntam de novo e esperam sem reclamar o tempo que for preciso. Adultos, velhos e crianças estão ali para conseguir o que, no Brasil, é oficialmente reconhecido como o primeiro documento da vida — a certidão de nascimento.
    Resultado de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-registro de Nascimento e à Busca de Certidões (Sepec), o ônibus da Praça Onze é o coração de um trabalho realizado pelo TJRJ com a finalidade de reduzir o chamado sub-registro, a proporção de pessoas sem certidão de nascimento. É também o objeto deste livro, uma versão reduzida de minha tese de doutorado. Inspirada pela indagação de Peirano (2006) — de que serve um documento? —, analiso como o processo de obtenção da certidão de nascimento traz à tona concepções de direitos e cidadania expressadas pelas pessoas que procuram o serviço da Justiça Itinerante no Centro do Rio de Janeiro e problematizo de que forma, nesse processo, tais concepções vividas e relatadas por elas também se transformam.
    A fim de valorizar a experiência e as vivências das pessoas sem documento, construí metodologicamente a pesquisa como uma etnografia, com observação participante no ônibus da Praça Onze. Também no livro, optei por destacar as histórias e as respostas dessas pessoas às minhas perguntas. Como um adulto vive sem documentos numa sociedade documentada? Como se vê sem documentos? Que papel atribui ao registro de nascimento?
    “Quero o registro de nascimento para receber o Bolsa Família”, dizia um. “Quero o registro de nascimento para tirar a carteira de trabalho”, afirmava outro. “Quero dar entrada na aposentadoria”, esclarecia o terceiro. “Quero o registro para colocar meu filho na escola”, ressaltava o quarto. As respostas de quem chegava ao ônibus indicavam inicialmente que o registro de nascimento teria finalidade imediata, pois os entrevistados afirmavam que buscavam o documento para conseguir alguma coisa, muitas vezes outro documento (carteira de trabalho), acesso a políticas públicas e benefícios sociais (inclusão no Bolsa Família, aposentadoria) ou serviços (vaga em escola, atendimento médico).
    Etnografar o adulto sem documento é mergulhar no que Das e Poole (2004) categorizam como “margens do Estado”, práticas, lugares e linguagens em espaços que parecem estar nos limites do funcionamento regulamentado do Estado-nação. O desafio trazido pela reflexão de Das e Poole, e que tento incorporar a esta pesquisa, é refletir sobre que relações se desenrolam nessas margens, tradicionalmente percebidas como áreas nas quais o Estado parece não estar presente — mas está, ainda que de modo não regular nem regulamentado. E perceber que margens do Estado também constituem o que chamamos Estado, pois o Estado também se faz nas margens (Das e Poole, 2004). Outra reflexão necessária é sobre como tais margens, muitas vezes entendidas como áreas nas quais o Estado foi inábil para impor sua ordem e como lugares onde haveria apenas exclusão e desordem, reorganizam continuamente suas práticas e experiências, numa construção que não é monolítica, mas sim processual e dinâmica. Nas margens do Estado, a observação etnográfica dessas práticas e vivências mostra que exclusão e desordem convivem com resistência e pluralidade.
    A chegada das pessoas sem documento ao ônibus é um encontro, com agentes do Estado, de indivíduos que sempre viveram nas margens desse Estado. Quem não tem registro de nascimento não pode tirar nenhum outro documento, não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens em seu nome. Só consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas exigem documentação para matricular crianças. Durante a pesquisa de campo, pude observar uma dupla operação: (1) a reconstituição, pelas pessoas atendidas no ônibus da Praça Onze, de suas existências nas margens do Estado e (2) o encontro dessas pessoas com agentes do Estado e, mais do que isso, com a ideia que elas construíram de Estado, aqui representado pela Justiça Itinerante.
    A observação cotidiana do atendimento no ônibus foi me indicando que o registro de nascimento tinha finalidade imediata, mas não apenas isso. Os relatos permitiram inferir que, no processo de obtenção do documento, muitas das pessoas atendidas buscavam reconstruir a própria história e recuperar laços familiares, no processo que Schritzmeyer (2015) nomeia como recuperação dos “fios de suas vidas”. Elaborei então a hipótese de que, na busca pela documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de nascimento” se junta a outra, que remete a outra busca, agora por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história familiar. A busca pelo registro de nascimento, com os direitos que ele garante, é parte de um processo maior de construção da própria identidade.

    Documentação, controle e cidadania

    O Estado-sistema, tal como definido por Abrams (2006), tem entre suas práticas fundamentais a identificação de pessoas, e registrar os indivíduos foi uma atividade constitutiva da formação dos Estados nacionais (Bourdieu, 2011). A prática hoje corriqueira de registrar e contar pessoas sofreu diversas transformações ao longo do tempo. Nas sociedades antigas, segundo DaMatta (2002), os censos populacionais e de animais domésticos serviam como instrumento de cobrança de impostos, de controle da produção, dos movimentos da população e da identificação de pessoas potencialmente perigosas. Brasileiro (2008) relata que, pelo menos dois séculos antes de Cristo, havia um sistema de registro civil na China, e os antigos incas tinham um método de anotações de nascimentos e óbitos.
    A Igreja Católica também tinha o hábito de manter registros eclesiásticos sobre batizados de seus fiéis, passando posteriormente a fazer o mesmo quanto a casamentos e óbitos (Makrakis, 2000). No século XVI, o Concílio de Trento tornou obrigatória a prática já corrente na Igreja Católica de fazer e conservar registros paroquiais com dados sobre batismos, nascimentos e casamentos (Almeida, 1966). Álvaro Júdice (1927), oficial do registro civil de Portugal, historia como, em paralelo aos registros eclesiásticos, o registro civil laico vai sendo introduzido lentamente, extinguindo-se o caráter eminentemente religioso e consolidando-se a figura do escrivão, responsável pelos registros e assentos.
    A Revolução Francesa é listada por variados autores como marco no aprofundamento da necessidade de inventariar as populações e seus movimentos (Foucault, 2015; DaMatta, 2002; Makrakis, 2000; Júdice, 1927). Foucault (2015) auxilia a compreender tanto o sentido da vigilância do poder público, na qual o documento é peça-chave, quanto o poder disseminado nas relações cotidianas. A partir do diálogo com Foucault, é possível entender o registro de nascimento como um mecanismo de controle, que possibilita a realização de estatísticas, o planejamento de ações de políticas públicas e a maior vigilância das populações. Documentos, censos, estatísticas, registros são práticas do Estado-sistema que tornam as pessoas legíveis e localizáveis dentro de determinado grupo populacional. O registro passa a ser entendido pelo Estado como ferramenta para o monitoramento contínuo das populações. DaMatta (2002:51) explicita o papel dos documentos, em qualquer lugar do mundo, como forma de controle do Estado nacional sobre os cidadãos diante da “necessidade de inventariar os recursos humanos disponíveis na sociedade, pela contagem e classificação de seus habitantes”.
    Sem refutar a dimensão de controle levantada por Foucault, Peirano (2006), Santos (1979) e DaMatta (2002) desenvolvem a noção da documentação como garantidora de direitos. Santos (1979) analisa como, no Brasil, a cidadania foi historicamente regulada pelo Estado e como outro documento, a carteira de trabalho, se tornou, a partir de 1930, passaporte para o mundo dos direitos.
    DaMatta (2002) afirma que o sistema de documentação brasileiro é todo encadeado, e para se obter um documento é sempre exigido um anterior. Cita como documento fundador o registro de nascimento, que origina a certidão de nascimento. Carvalho (2001, 2008) cunha a ideia de “estadania”, entendida como uma relação clientelista do cidadão com o Estado, ou uma cidadania construída de cima para baixo, com fortíssima presença do Estado e sem a consequente garantia de direitos de todos. Em Cidadania insurgente, estudo etnográfico e político ambientado em bairros populares de São Paulo, Holston (2013) recupera o conceito de “cidadania regulada” de Santos (1979) e traz outro, que muito ajuda a analisar a condição dos sem-documento. Para Holston (2013:258), a partir de dois pilares — a incorporação da cidadania pelo Estado e a distribuição de direitos para os que são considerados cidadãos — o Brasil construiu historicamente um tipo peculiar de cidadania, que o autor define como “cidadania diferenciada”: “uma cidadania que desde o início foi universalmente includente na afiliação e maciçamente desigual na distribuição de seus direitos”. Em outras palavras, a cidadania brasileira, tecnicamente, é universal e oferece direitos a toda a população, mas é de fato desigual na distribuição desses direitos.
    O diálogo dessa investigação com a obra de Holston ocorre a partir do conceito de cidadania diferenciada, ideia que salta aos olhos na pesquisa sobre os sem-documento. Tecnicamente, nada nunca lhes foi negado, já que o registro de nascimento é um direito garantido em lei e gratuito a qualquer cidadão. Na prática, observo como, para uma parcela da sociedade brasileira, o processo de cidadania diferenciada se reflete na ausência de vários direitos — e como, no processo de busca pela regularização daquele direito, ressurgem os conceitos de cidadania universal e do documento como direito de todos, permitindo discutir as implicações de sua ausência e os motivos para obtê-lo.
    Documentos ainda hoje são a chave para o acesso a políticas públicas e projetos sociais no Brasil. Peirano (1986, 2006) também discorre sobre a ausência de documentos e afirma que o contraponto à exigência de documentação é a punição de quem não a possui. DaMatta (2002) analisa o receio difuso dos brasileiros de serem interpelados sem que estejam de posse de seus documentos — rotina com a qual os invisíveis, tema deste projeto, convivem; Peirano (2006) destaca o temor do brasileiro de perder documentos, lembrando casos em que ladrões devolvem os documentos de pessoas assaltadas, tal a importância dos papéis como chae de acesso para obtenção de direitos.

     

    Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento

    Fernanda da Escóssia

  • Postado por editora em em 19/07/2021 - 11:44

    Esta obra de Matheron, publicada pela primeira vez em 1968 e reeditada em 1988 pela Éditions de Minuit de Paris, chega agora em português ao público brasileiro exclusivamente no formato digital.

    A riqueza do livro que estão prestes a abordar alicerça-se num paradoxo. Pois, sem sombra de dúvida, lida-se aqui com uma obra-prima que satisfaz aos mais exigentes parâmetros objetivistas e racionalistas da disciplina austera à qual pertence: a História da Filosofia. No entanto, a esses parâmetros Matheron acrescenta outros, cujo objetivismo e cujo racionalismo radicais fogem a boa parte dos preceitos que costumam imperar sobre as práticas da simples interpretação de textos.

    A obra tem traduação de Martha de Aratanha; do prof. Baptiste Grasset e do professor Emanuel Rocha Fragoso, com a participação de Carlos Benevides Gomes e Alex Leite

    Confira o prefácio à edição brasileira:

    "Em pouco menos de 15 meses, entre o início de 1968 e o início de 1969, ocorreu uma guinada inconteste no comentário da obra de Spinoza: neste intervalo, pois, foram publicados três grandes livros que, até hoje, constituem referências incontornáveis para quem pretende estudar a filosofia do pensador holandês. Com efeito, em janeiro de 1968 foi publicado o primeiro volume da suma de Martial Guéroult sobre a Ética,1 que se debruça especificamente sobre a metafísica espinosana. Em novembro do mesmo ano foi a vez de Spinoza e o problema da expressão, de Gilles Deleuze.2 Enfim, em março de 1969 foi lançado Indivíduo e comunidade em Spinoza, de Alexandre Matheron.

    Esses comentários irromperam, de modo quase simultâneo, num deserto. É dificílimo, quase impossível, imaginar a escassez que caracterizava a pesquisa francesa sobre a obra de Spinoza até o final da década de 1960. O próprio Martial Guéroult, quando indagado naqueles anos pelo seu então orientando de pesquisas no CNRS, Alexandre Matheron, acerca da bibliografia spinozista disponível em língua francesa, lhe respondeu em tom categórico, e até abrupto: “Não há bibliografia! São todos asnos!” Nas palavras mais comedidas, porém convergentes, do próprio Matheron: “O estado dos estudos spinozistas na França, naquele momento, era quase zero... Lembro-me de ter sido convidado para uma reunião preparatória na casa de Althusser, com vista a um seminário sobre Spinoza (que, afinal, acabaria não acontecendo)... Lá estavam Macherey e também Badiou... Ora bem, aquele dia, como bibliografia, Althusser só nos indicou Delbos e Darbon... Havia também o curso policopiado de Alquié, um artigo de Misrahi sobre a política em Spinoza, e que eu lembre, era apenas isso.”De fato, faltam alguns nomes nessa lista: na mesma entrevista, Matheron, refletindo melhor, ainda acrescenta a tese de doutorado de Zac e certos trechos do comentário, já antigo, de Lachièze-Rey. Mesmo assim, nada que possa se comparar, nem de longe, com a densidade e a riqueza que os estudos spinozistas têm acumulado ao longo das pouco mais de cinco décadas que nos separam da primeira edição do livro de Matheron.

    Este livro foi o resultado de um caminho reflexivo pertinaz de mais de 20 anos. Nascido em 1926 em Paris numa família em que se destacam vários pesquisadores proeminentes, Alexandre Matheron escolheu o tema “Espinosa e a política” na hora de redigir sua monografia de graduação em Filosofia, em 1949. Conquanto este primeiro trabalho tenha sido, conforme salientou o interessado, deveras medíocre, é sugestivo o fato de que ele já apontava para a direção geral da leitura do Matheron da maturidade, a qual, duas décadas depois, iria identificar o núcleo do sistema de Spinoza numa teoria dos afetos e das paixões compreendida como alicerce da teoria política. Ademais, cabe observar que a adoção precoce de tal direção geral denotava certa coragem filosófica, na medida em que, tradicionalmente na França (como em boa parte do mundo, aliás), a academia negligenciava a vertente política da obra de Spinoza, considerando-a ora meramente redundante com o contratualismo de Hobbes, ora como inacabada e, por isso mesmo, muito inferior em relação à sua vertente teórico-metafísico-cognitiva. Depois de se formar como professor, em 1956, Matheron ensinou em Argel (então cidade colonial francesa). Neste período, ele, que fora um stalinista fervoroso, deixou o Partido Comunista Francês depois de um decênio de militantismo. Em 1963, voltou para Paris e logo ingressou no CNRS, onde apresentou e defendeu sua tese de doutorado em Filosofia em 1968. Um ano depois, publicou Indivíduo e comunidade em Spinoza. O livro, além de manifestar virtudes estruturais, por renovar a leitura da Ética e a apreensão da economia interna do sistema do filósofo holandês, também apresentava outras virtudes, mais conjunturais, uma vez que abriu um horizonte de emancipação intelectual durável para muitos jovens comunistas naqueles meses que seguiram Maio de 68 e foram teatro de intensas reconfigurações e radicalizações no seio da esquerda ocidental. Por esses motivos, Indivíduo e comunidade... tem logrado influenciar profundamente duas gerações de intérpretes.

    Talvez seja o caso de avisar os leitores: a riqueza do livro que estão prestes a abordar alicerça-se num paradoxo. Pois, sem sombra de dúvida, lida-se aqui com uma obra-prima que satisfaz aos mais exigentes parâmetros objetivistas e racionalistas da disciplina austera à qual pertence: a História da Filosofia. No entanto, a esses parâmetros Matheron acrescenta outros, cujo objetivismo e cujo racionalismo radicais fogem a boa parte dos preceitos que costumam imperar sobre as práticas da simples interpretação de textos. Com efeito, de praxe, o historiador da Filosofia se vê levado pelas necessidades metodológicas de sua tarefa a zelar por certa neutralidade, quiçá por certa passividade, ante o objeto de seus estudos. Espera-se dele que ele abra mão do calor do protagonismo filosófico que só seria suscetível de parasitar, e até de distorcer, a restituição fidedigna da lógica e do conteúdo da reflexão por ele analisada. Para explicar, ele não deve tomar 

    partido. Para ser historiador, ele não pode atuar como filósofo. Comprometido com um distanciamento crítico (supostamente) imparcial que o obriga a permanecer dialeticamente às margens das questões, das discussões e dos debates que mobilizam os textos sobre os quais ele se debruça, sua perspectiva é a, sobranceira e (postula-se) desengajada, da investigação friamente racional, devidamente documentada, quase clínica. Só assim ele consegue fazer bom uso das fontes, reconstituir os alicerces culturais e antropológicos, descrever o contexto socioeconômico ou político, detectar as influências e divergências, diagnosticar as inflexões e variações, aquilatar os múltiplos matizes da recepção do texto etc. Sobre tais bases, se realmente o historiador da Filosofia é um conhecedor metódico dos grandes textos, de seu sentido conceitual e das diversas condições de sua emergência, é inegável que Alexandre Matheron foi um imenso historiador da Filosofia. Se o historiador da Filosofia nunca deve ser ele mesmo um filósofo, se é verdade que ele não deve praticar Filosofia em primeira pessoa para preservar e garantir a idoneidade técnica de suas análises, então seria ledo engano rotular Alexandre Matheron como um historiador da Filosofia na acepção clássica desta expressão. Pois, na obra dele, a verdade filosófica e a enquete histórico-conceitual nunca entram em contradição. Muito pelo contrário, esta permanece sempre a serviço daquela.

    Como Guéroult e Deleuze, Matheron pratica uma leitura genética da obra de Spinoza. Contra a tendência ensaística demasiado frequente entre os intérpretes (sobretudo na época), trata-se de partir do texto e de decifrar os recursos próprios do texto para lograr elucidar o sentido do texto. As intuições subjetivas, as hipóteses aventadas a esmo, os hábitos de leitura exclusivamente consolidados pela autoridade da tradição do comentário são rechaçados. Sobre tais bases, cada qual à sua maneira, esses três grandes filósofos-comentadores, muito mais do que leituras informadas e sistemáticas, se empenham em reconstituir paulatina e pacientemente totalidades argumentativas orgânicas, cujas chaves respectivas de compreensão da obra de Spinoza pretendem operar a partir da verdade interna do pensamento que nesta obra se desdobra. Visam entender a lógica própria do pensamento para explicar a obra. Detalhe surpreendente: se Guéroult já aplicava um método genético e estrutural de leitura dos textos filosóficos desde os anos 1930, e se os métodos respectivos de Deleuze e de Matheron foram influenciados de modo decisivo pelo de Guéroult, entretanto, essas três leituras “totais” do spinozismo, elaboradas ao longo do mesmo período (a segunda metade dos anos 1960), foram maturadas de forma separada e independente umas das outras. Assim, para quem lê o Spinoza monumental e, infelizmente, inacabado, de Guéroult, é claro que, nele, a reconstituição da coerência dos argumentos e das demonstrações da Ética se dá pela aplicação meticulosa de um crivo racional, a análise objetiva da estrutura, que já demonstrara sua eficácia explicativa anos antes a respeito do pensamento de Descartes. O que é a estrutura segundo Guéroult? Ela consiste em uma certa relação das partes ao todo, sendo que o conjunto se apresenta, afinal, sob a forma de um sistema vivente e lógico. Sobre tais bases, trata-se de explicar o teor e o sentido de cada etapa da demonstração justificando a necessidade lógica da emergência desse teor e desse sentido na precisa etapa analisada e não noutra. Matheron concorda com esta abordagem metódica que, outrossim, no caso de Spinoza, tem o mérito de fazer jus ao destaque que sua Filosofia confere ao método sintético, intimamente ligado à concepção ativa e produtiva da verdade. O que não quer dizer, evidentemente, que Matheron endosse o cerne da tese que nutre a leitura que Guéroult faz da Ética: de fato, este, contra aquilo que chama de “lenda” do spinozismo, situa a verdadeira pedra de toque da primeira parte da Ética nas inflexões dedutivas que regem a articulação entre substância e atributo – e, ao tecer toda a rede de conexões lógicas que, em torno desse polo explicativo, solidarizam e fazem surgir as proposições fundamentais da metafísica de Spinoza umas das outras, Guéroult enuncia sua famosa teoria das substâncias de um só atributo, cuja recepção pelo leitorado tem sido, digamos, persistentemente morna, deveras comedida, em todo caso às antípodas da admiração sem ressalvas suscitada pela acribia da metodologia estrutural que ele promove. De forma mais ampla, Matheron não concorda com seu orientador no CNRS no que diz respeito ao centro de gravidade do sistema de Spinoza, localizado por Guéroult na metafísica, ou seja, nitidamente na primeira parte da Ética. Aqui, Matheron antes vai ao encontro da economia do texto enfatizada por Deleuze. De fato, Spinoza e o problema da expressão situa o referido centro de gravidade no meio da Ética, nas suas segunda e terceira partes (em verdade, como logo veremos, Matheron ainda é mais radical do que Deleuze, e o situa estritamente no “tronco” conativo do livro, ou seja, na terceira parte). É claro, enquanto Deleuze faz girar sua análise genética do sistema espinosano em torno das declinações da noção de expressão, que modelizam a articulação entre finito e infinito de acordo com diversos esquemas de produtividade intensiva e diferencial, Matheron prefere se abster de recorrer a conceitos que, por mais estimulantes que sejam, padecem o defeito lastimável de serem “multiuso” ou, mais exatamente, de serem passíveis de servir – nem que seja com tato e cautela – para analisar as obras de vários autores (no caso da expressão: Leibniz, entre outros). Aliás, por motivos semelhantes, ao invés daquilo que fazem a dianoemática de Guéroult e a teoria antidialética da criação de conceitos em Deleuze, Matheron se recusa insistentemente a classificar os pensadores em grandes clãs ou tribos. Afinal, se me incumbisse a temível tarefa de apontar para aquilo que distingue de forma cabal esses três grandes historiadores da Filosofia, eu diria que, decerto, todos podem ser rotulados como spinozistas, ou pelo menos como pensadores para quem Spinoza desempenha o papel de filósofo primordial e incomparável; e que, a esse título, eles envidam 

    intensos esforços analíticos e argumentativos, em tom não raro imperativo, para proteger o leitor contra os riscos da má interpretação do texto, isso em nome da integridade lógico-orgânica do pensamento analisado; entretanto, acrescentaria uma ressalva importante: ao passo que Guéroult ou Deleuze buscam a verdade da obra de Spinoza tal como se apresenta nos textos do filósofo holandês, o que Matheron busca nesses mesmos textos é... a própria verdade. Ou, como Pierre-François Moreau escreveu certa feita: “Para Matheron, a filosofia spinozista não é uma filosofia entre outras: ela explica verdadeiramente o real.”

    O que significa e como se manifesta isso? Para Matheron, o sistema filosófico elaborado por Spinoza e a verdade descoberta aos poucos pelo seu pensamento, à medida que vem intensificando a compreensão que ele tem de si mesmo, são duas coisas distintas. Ora, o método de Matheron almeja dar voz e prioridade sistemática a este Spinoza que se torna spinozista. A verdade spinozista, isto é, o pensamento de Spinoza geneticamente compreendido e perfeitamente desenvolvido do ponto de vista da unidade orgânica, ou seja, da densidade demonstrativa, tem um valor que, para Matheron, ultrapassa, e muito, o simples interesse filológico ou histórico: tal verdade é a própria chave de decifragem da realidade. Em virtude deste princípio geral de análise, o comentador reorganiza a estrutura fatual do texto segundo a ordem genética de suas razões e diretrizes, e não hesita em emendar demonstrações que, a seu ver, permaneceram incompletas, ou em preencher o que, de acordo com a lógica do pensamento spinozista enquanto unidade orgânica total perfeita, parece ser uma falha pontual ou uma lacuna anormal nas demonstrações efetivamente produzidas no texto. Concretamente, ao invés de explicar o texto sob a batuta de sua ordem fatual e, portanto, ao invés de partir da metafísica de Spinoza, Matheron, em nome da verdade do pensamento acabado e completo do filósofo, parte do conatus. Decerto, ele lista de forma sucinta os pressupostos metafísicos da noção de conatus, porém privilegia constantemente uma ordem de exposição e reconstrução das demonstrações que desposa uma lógica – intensamente spinozista, convenhamos – de produtividade das ideias e de auto manifestação da verdade. Uma vez que, para explicar, é preciso compreender, uma vez que compreender é compreender geneticamente, e uma vez que o ser e o conhecer são, em suma, a mesmíssima coisa, então o conhecimento é conhecimento do ser enquanto gênese e produtividade. Sobre tais bases, Matheron vê na proposição 6 da terceira parte da Ética, segundo a qual cada coisa, tanto quanto está em si, esforça-se por perseverar em seu ser, o ponto verdadeiro de emergência estrutural da teoria das paixões, de toda a política que desta teoria decorre, e, enfim, de toda a problemática moral em Spinoza. Assim procedendo, em Indivíduo e comunidade em Spinoza, Matheron, sem nunca romper o fio da meada que a individualidade representa, acompanha e descreve meticulosamente a formação dos coletivos. Por esse motivo, à esquerda, certos leitores, sensíveis a renovações teóricas concernentes à potência das multidões e à radicalização política, acreditaram reconhecer – aliás, com o aval de Matheron – ecos da Crítica da razão dialética de Sartre nesta interpretação da Ética que foca metodicamente no devir comum da individualidade, e no devir social e político das paixões viscerais dos homens. Entretanto, embora Matheron tivesse sabidamente começado a se interessar pela obra de Spinoza na medida em que esta lhe parecera ser prenunciativa da de Marx, a partir dos anos 1980 ele confessou com frequência ter mudado de concepção aos poucos para passar a aquilatar o pensamento de Marx como uma das extensões possíveis do pensamento de Spinoza.

    Em todo caso, Matheron faz da perseverança dinâmica, competitiva e produtora dos indivíduos na totalidade o nexo da Ética. Ponto de partida biológico, afetivo e racional da política segundo a ordem da dedução geométrica das paixões, o conatus também é o ponto de chegada biológico, afetivo e racional da metafisica e da física em virtude da reconstituição genética, pelo comentador, da ordem das razões filosóficas do spinozismo. Melhor dizendo, a lógica que vigora neste pensamento explica verdadeiramente a metafisica e a física das duas primeiras partes da Ética a partir de seu ponto de chegada: o conatus. Cabe a essas duas primeiras partes elucidarem porque toda coisa se caracteriza pela produção de efeitos que a conservam e como tal atividade produtora, ao esbarrar com obstáculos, chega a produzir um esforço mais ou menos potente. Por exemplo, os integrantes de uma sociedade política comunicam certa quantia precisa de movimentos uns aos outros, e o resultado desta comunicação de movimentos é a reprodução da referida sociedade política. Neste âmbito, um indivíduo é um conjunto de corpos que estão em interação uns com os outros de acordo com um certo sistema de leis diferente dos demais sistemas. Conatus limitados por outros conatus, e imersos em diversas redes de relações concretas de diferenciações quantitativas de potências, os homens não são senão indivíduos, isto é, modos entre muitíssimos outros da substância divina. Nó górdio das razões que regem as demonstrações do sistema de Spinoza, o conatus é o operador conceitual que possibilita, segundo Matheron, a funcionalidade orgânica do pensamento que vigora e tenta pensar sua verdade nesse sistema. Somente graças ao conatus consegue-se superar o falso dualismo filosófico-conceitual do panteísmo e do individualismo. Somente graças a ele, em Spinoza, o panteísmo logra fundamentar o individualismo metafísico, o qual por sua vez permite compreender geneticamente o individualismo ético-social e político.

    Depois da publicação de Indivíduo e comunidade em Spinoza, Matheron ensinou na Universidade de Nanterre e na École Normale Supérieure de Fontenay-Saint-Cloud. Ele seguiria aplicando o método estrutural que marcou seu grande livro inaugural em seu segundo trabalho importante, Le Christ et le salut des Ignorants chez Spinoza (Aubier-Montaigne, 1971), assim como em cada um dos artigos que compõem Études sur Spinoza et les philosophes de l’Âge Classique (Éditions ENS, 1985, 2011). Ele nunca deixaria de aprofundar os rumos metodicamente delineados em Indivíduo e comunidade... Graças ao concurso da Fundação Getúlio Vargas e da Maison de France, os leitores lusófonos têm a possibilidade, pouco mais de um ano após o falecimento de Alexandre Matheron, de consultar uma tradução em língua portuguesa desta obra crucial que testemunha de que os melhores exemplos de História da Filosofia adotam a forma da Filosofia vivaz, vivente e viva, bem longe do catecismo acadêmico monótono, feito de truísmos e de conformismos fantasiados de perícia, que, não raro, desqualifica essa disciplina na consciência comum. Antes de concluir e de deixar esses leitores se inteirarem de um comentário estrutural cuja autoridade ainda faz jus à rejeição contumaz, por Matheron, da noção de interpretação, que ele julgava ser demasiado subjetivista, demasiado opinativa, sobremodo propensa ao cometimento de improvisos dúbios, não posso me furtar a confessar a alegria e a satisfação que tomam conta de mim ao me representar a espantosa iluminação filosófica prestes a recompensar quem vai cruzar pela primeira vez com as análises respeitantes à árvore sefirótica ou à natureza ambivalente (e predominantemente negativa, apesar de tudo) da indignação. Só me resta lhes desejar uma excelente (re)descoberta de Spinoza."

    Indivíduo e comunidade em Spinoza

    Autor: Alexandre Matheron

     

     

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