Arquivo de Outubro 2021

  • Postado por editora em em 20/10/2021 - 12:06

    Em ‘O cavalo de troia digital: a quarta revolução industrial’, publicada pela FGV Editora, o professor Luiz Roberto Nascimento Silva analisa as principais revoluções industriais e seus impactos na geração de empregos. Nesta obra ele descreve as ideias vivas de dois dos maiores economistas já mortos; expõe que com a pandemia o mapa da pobreza no país precisa ser refeito; afirma que mesmo passada a crise de saúde o mundo não será o mesmo, e que o desemprego gerado pela revolução digital obrigará o Brasil e os demais países a terem programas de transferência de renda de maneira permanente.

    Confira a seguir a introdução da obra:

    Estamos como estiveram os troianos ao receber o cavalo de Troia dos gregos. Aceitaram felicíssimos aquele presente maravilhoso que chegou de forma gratuita e graciosa. O enorme cavalo de madeira foi entendido pelos troianos como um signo de vitória e assim foi carregado para dentro das muralhas fortificadas. À noite, os soldados inimigos saíram do cavalo, dominaram as sentinelas e abriram os portões permitindo a entrada do Exército grego, levando a cidade à derrota e à ruína.
    A história da guerra foi contada primeiro na Ilíada, de Homero, ainda que sem referência específica ao episódio do cavalo, e depois na Odisseia, em que aparece brevemente numa passagem pequena. Vários escritores depois ampliaram e detalharam a guerra e a artimanha. O cavalo é geralmente entendido como uma criação literária, ainda que vários estudiosos acreditem que possa ter existido ao menos como uma máquina de guerra transfigurada ao longo do tempo pelos cronistas.
    Do ponto de vista documental, os dois poemas, fundadores da literatura ocidental com seus mais de 27.000 versos, não são propriamente um relato da Guerra de Troia porque Homero teria vivido no século VIII a.C. e a guerra em questão se deu no século XIII a.C. Homero não foi testemunha dos combates na planície de Troia, nem pôde ouvir testemunhos de seus combatentes.
    Homero era um aedo, um portador da palavra poética que declamava esses versos em cantos que reconstituíam aos ouvintes os acontecimentos originais numa perspectiva diversa da que se tem hoje de um escritor. Ambos os poemas só vieram a ser fixados na linguagem escrita muitos anos depois, pois no período em que foram encenados e declamados a escrita não era ainda usada no mundo grego.

    De qualquer forma, o episódio da Guerra de Troia e o estratagema do cavalo permaneceram como símbolos contínuos e populares na literatura, cinema e teatro. Diversas expressões idiomáticas se formaram em torno do episódio, fazendo com que “cavalo de Troia” significasse um engodo destrutivo, “presente de grego” como alguma coisa que é recebida de forma agradável, mas que acarreta péssimas consequências. Serve também para designar um potente e conhecido malware que é a expressão para software malicioso usado por hackers ou criminosos para obter acesso aos sistemas dos usuários, roubando seus dados confidenciais e assim desviando recursos da vítima, danificando depois seus computadores. Normalmente ele vem disfarçado de um software legítimo; por isso é tão perigoso.
    Por isso, recorri a essa alegoria enraizada na nossa cultura para debater uma situação em tudo semelhante ao que vem ocorrendo com o mundo agora. Aceitamos de bom grado, felizes, a internet em nossas vidas. Ela nos chegou também gratuitamente, uma vez que o físico Tim Berners-Lee, em 1989, quando a criou, não a patenteou, permitindo que pudesse ser utilizada sem custos financeiros pelos futuros usuários. Nos primeiros anos, a internet e a revolução digital trouxeram avanços inegáveis largamente superiores aos problemas que depois geraram. Abaixamos a guarda e fomos sendo seduzidos pelas facilidades e comodidades que a digitalização e a internet nos traziam e quando acordamos estava tudo ocupado. Tornamo-nos prisioneiros de nossa própria esperteza. Estávamos escravizados como os dependentes químicos. Tínhamos perdido a guerra, perdido a linha divisória, a fronteira que preservava nossa intimidade e estávamos condenados a servir a esse novo senhor.
    Nessa nova ordem mundial, a destruição de empregos formais na economia é superior à criação de novos no setor de tecnologia e computação. O crescimento das empresas tem se feito pela maior digitalização de suas cadeias produtivas, acarretando redução de funcionários. O setor musical foi devastado em sua formação anterior. Os jornais sentem diariamente os efeitos dela. O mercado de livros não sabe como irá se redesenhar. O ganho inequívoco de eficiência se fez pelo desemprego maciço de mão de obra em inúmeros setores.
    O mundo virtual criou um universo fraturado, imediato, instantâneo. Como observa Jean Baudrillard: existe uma espécie de metabolismo diabólico do sistema que, ao fractalizar tudo, procedeu à integração de toda dimensão crítica, irônica, contraditória. Tudo está on-line; ora nada pode ser contraposto a um acontecimento on-line.

    Hoje está tudo dominado. Todo o sistema bancário depende integralmente da informática. O Poder Judiciário funciona crescentemente por meio da rede. A Secretaria da Receita Federal trabalha apenas pela internet e não existem mais declarações de tributos federais que não sejam informatizadas. O sistema de reservas de passagens e de hotelaria é feito pela rede. Todas as operações das bolsas de valores são feitas em tempo real, eletronicamente. O percentual do comércio interno e internacional que é feito pela internet aumenta continuamente.
    Não é só isso. Nenhum ramo do conhecimento ficou indiferente a essa revolução. O que se avançou na área médica é incomensurável, tanto na parte preventiva, como na própria pesquisa e no avanço na execução de cirurgias. Na arquitetura, urbanismo e paisagismo o uso do computador é uma constante. No direito, na economia, enfim em todos os campos do conhecimento a informação é mais rápida, universal e gratuita.
    Além dos impactos que já abordamos, a internet acabou por intervir na forma de fazer política. A eleição da Barack Obama só se tornou possível pela estruturação de sua campanha nas redes sociais, o que assegurou a ele votos e recursos financeiros, primeiro para vencer a senadora Hillary Clinton na indicação do partido democrata e depois a própria eleição presidencial.

    Movimentos sociais de massa como a “Primavera Árabe” inundando a praça Thair e todos outros que ocorreram na Espanha, Portugal, Suécia, Grã-Bretanha e no Brasil só foram possíveis pela velocidade e surpresa que a internet proporciona por meio das redes sociais. Entretanto pouco depois a internet passou a ser amplamente utilizada na eleição de uma série de políticos autoritários com o exercício de um discurso de antagonismo permanente capaz de ganhar uma eleição, mas incapaz de unir um país. Após a eleição, frequentemente eles continuam a conduzir seus países como se estivessem em campanha e houvesse sempre um inimigo a ser combatido.

    A internet alterou completamente a política. As estruturas anteriores dos partidos políticos terão de ser repensadas. Toda a democracia direta, construída em plenários de sindicatos e de partidos, conselhos deliberativos, associações de moradores, está perdendo força e expressão. Passamos de um estágio de sociedade civil organizada para outro de sociedade civil mobilizada. Como as redes sociais são horizontais, elas retiraram parte da hierarquia que presidiu o processo político durante muitos longos anos.
    As novas tecnologias de comunicação estão afetando e transformando o processo cognitivo do cérebro humano. O conhecimento estruturou-se pela linearidade e vem sendo substituído pela reticularidade, que é a disposição em rede das matérias. Os jornais na internet são lidos em colunas e não mais de maneira linear como ocorria na sua plataforma papel. O leitor não se fixa mais na ordem cronológica das colunas e da própria organização que o veículo estruturou para o grande público. Ele salta, alterna, modifica o processo de leitura da mesma forma que o controle remoto permitiu o zapeamento dos canais de televisão. Nada obedece a ordem antes estabelecida. À medida que o próprio cérebro humano vem sendo alterado e modificado, habilidades e horizontes vão sendo demarcados de forma inteiramente distinta. Um novo mapeamento está sendo descoberto e nele algumas fronteiras estão sendo descobertas e antigas fronteiras estão sendo esquecidas. Estamos formando – mesmo sem o saber – uma nova cartografia.
    A revolução digital é irreversível. Não haverá vida nem civilização sem ela. Ao contrário das revoluções econômicas anteriores, essa está claramente reduzindo vagas de trabalho, por meio de um abrupto e não uniforme aumento da produtividade de alguns, gerando mais desemprego mesmo que, em alguns setores, com aumento de produção. O combate e a resistência deverão ser feitos dentro desse ambiente digital, pois nações que não se conectarem rapidamente aumentarão o fosso de distanciamento em relação às nações com conectividade plena. A discussão terá que ser on-line.

    Sabemos todos que uma revolução dessa proporção não terá retorno. Não temos caminho de volta. Isso, no entanto, não nos impede de formular ideias e dividir informações sobre o que vem ocorrendo. Um dos objetivos deste ensaio é permitir que, com maior reflexão e informação sobre o que vem ocorrendo, cada cidadão individualmente possa reconstruir parte de sua geografia pessoal, que foi invadida com sua autorização à semelhança dos troianos quando autorizaram a entrada daquele cavalo em sua cidade.
     

    O cavalo de troia digital: a quarta revolução industrial

    Luiz Roberto Nascimento Silva

     

  • Postado por editora em em 20/10/2021 - 11:45

    "Uma mulher que precisa de cirurgia para tratar um câncer, mas foi rejeitada nos hospitais por não ter documentos. Outra que, à procura de sua certidão de nascimento, encontra a irmã de quem fora separada havia mais de vinte anos. Histórias assim emergem desta etnografia ao mesmo tempo avassaladora e delicada, que mergulha no cotidiano de exclusão de brasileiros indocumentados, ilegíveis pelo Estado, invisíveis em seu próprio país. O livro narra como a certidão de nascimento se torna um passo imprescindível no longo caminho da cidadania."

    Em Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento, a jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia apresenta o resultado de sua tese de doutorado sobre as trajetórias de brasileiros adultos sem certidão de nascimento. Durante dois anos, a autora mergulhou no cotidiano de um serviço público e gratuito de emissão de certidões instalado num ônibus na Praça Onze, no Centro do Rio de Janeiro.

    Confira um trecho da introdução da obra:

    Toda sexta-feira, o ônibus azul e branco estacionado no pátio da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, na região da Praça Onze de Junho, Centro do Rio, sacoleja com o entra e sai de gente a partir das 9h. Do lado de fora, nunca menos de 50 pessoas, todas pobres ou muito pobres, quase todas negras, cercam o veículo, perguntam, sentam e levantam, perguntam de novo e esperam sem reclamar o tempo que for preciso. Adultos, velhos e crianças estão ali para conseguir o que, no Brasil, é oficialmente reconhecido como o primeiro documento da vida — a certidão de nascimento.
    Resultado de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-registro de Nascimento e à Busca de Certidões (Sepec), o ônibus da Praça Onze é o coração de um trabalho realizado pelo TJRJ com a finalidade de reduzir o chamado sub-registro, a proporção de pessoas sem certidão de nascimento. É também o objeto deste livro, uma versão reduzida de minha tese de doutorado. Inspirada pela indagação de Peirano (2006) — de que serve um documento? —, analiso como o processo de obtenção da certidão de nascimento traz à tona concepções de direitos e cidadania expressadas pelas pessoas que procuram o serviço da Justiça Itinerante no Centro do Rio de Janeiro e problematizo de que forma, nesse processo, tais concepções vividas e relatadas por elas também se transformam.
    A fim de valorizar a experiência e as vivências das pessoas sem documento, construí metodologicamente a pesquisa como uma etnografia, com observação participante no ônibus da Praça Onze. Também no livro, optei por destacar as histórias e as respostas dessas pessoas às minhas perguntas. Como um adulto vive sem documentos numa sociedade documentada? Como se vê sem documentos? Que papel atribui ao registro de nascimento?
    “Quero o registro de nascimento para receber o Bolsa Família”, dizia um. “Quero o registro de nascimento para tirar a carteira de trabalho”, afirmava outro. “Quero dar entrada na aposentadoria”, esclarecia o terceiro. “Quero o registro para colocar meu filho na escola”, ressaltava o quarto. As respostas de quem chegava ao ônibus indicavam inicialmente que o registro de nascimento teria finalidade imediata, pois os entrevistados afirmavam que buscavam o documento para conseguir alguma coisa, muitas vezes outro documento (carteira de trabalho), acesso a políticas públicas e benefícios sociais (inclusão no Bolsa Família, aposentadoria) ou serviços (vaga em escola, atendimento médico).
    Etnografar o adulto sem documento é mergulhar no que Das e Poole (2004) categorizam como “margens do Estado”, práticas, lugares e linguagens em espaços que parecem estar nos limites do funcionamento regulamentado do Estado-nação. O desafio trazido pela reflexão de Das e Poole, e que tento incorporar a esta pesquisa, é refletir sobre que relações se desenrolam nessas margens, tradicionalmente percebidas como áreas nas quais o Estado parece não estar presente — mas está, ainda que de modo não regular nem regulamentado. E perceber que margens do Estado também constituem o que chamamos Estado, pois o Estado também se faz nas margens (Das e Poole, 2004). Outra reflexão necessária é sobre como tais margens, muitas vezes entendidas como áreas nas quais o Estado foi inábil para impor sua ordem e como lugares onde haveria apenas exclusão e desordem, reorganizam continuamente suas práticas e experiências, numa construção que não é monolítica, mas sim processual e dinâmica. Nas margens do Estado, a observação etnográfica dessas práticas e vivências mostra que exclusão e desordem convivem com resistência e pluralidade.
    A chegada das pessoas sem documento ao ônibus é um encontro, com agentes do Estado, de indivíduos que sempre viveram nas margens desse Estado. Quem não tem registro de nascimento não pode tirar nenhum outro documento, não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens em seu nome. Só consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas exigem documentação para matricular crianças. Durante a pesquisa de campo, pude observar uma dupla operação: (1) a reconstituição, pelas pessoas atendidas no ônibus da Praça Onze, de suas existências nas margens do Estado e (2) o encontro dessas pessoas com agentes do Estado e, mais do que isso, com a ideia que elas construíram de Estado, aqui representado pela Justiça Itinerante.
    A observação cotidiana do atendimento no ônibus foi me indicando que o registro de nascimento tinha finalidade imediata, mas não apenas isso. Os relatos permitiram inferir que, no processo de obtenção do documento, muitas das pessoas atendidas buscavam reconstruir a própria história e recuperar laços familiares, no processo que Schritzmeyer (2015) nomeia como recuperação dos “fios de suas vidas”. Elaborei então a hipótese de que, na busca pela documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de nascimento” se junta a outra, que remete a outra busca, agora por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história familiar. A busca pelo registro de nascimento, com os direitos que ele garante, é parte de um processo maior de construção da própria identidade.

    Documentação, controle e cidadania

    O Estado-sistema, tal como definido por Abrams (2006), tem entre suas práticas fundamentais a identificação de pessoas, e registrar os indivíduos foi uma atividade constitutiva da formação dos Estados nacionais (Bourdieu, 2011). A prática hoje corriqueira de registrar e contar pessoas sofreu diversas transformações ao longo do tempo. Nas sociedades antigas, segundo DaMatta (2002), os censos populacionais e de animais domésticos serviam como instrumento de cobrança de impostos, de controle da produção, dos movimentos da população e da identificação de pessoas potencialmente perigosas. Brasileiro (2008) relata que, pelo menos dois séculos antes de Cristo, havia um sistema de registro civil na China, e os antigos incas tinham um método de anotações de nascimentos e óbitos.
    A Igreja Católica também tinha o hábito de manter registros eclesiásticos sobre batizados de seus fiéis, passando posteriormente a fazer o mesmo quanto a casamentos e óbitos (Makrakis, 2000). No século XVI, o Concílio de Trento tornou obrigatória a prática já corrente na Igreja Católica de fazer e conservar registros paroquiais com dados sobre batismos, nascimentos e casamentos (Almeida, 1966). Álvaro Júdice (1927), oficial do registro civil de Portugal, historia como, em paralelo aos registros eclesiásticos, o registro civil laico vai sendo introduzido lentamente, extinguindo-se o caráter eminentemente religioso e consolidando-se a figura do escrivão, responsável pelos registros e assentos.
    A Revolução Francesa é listada por variados autores como marco no aprofundamento da necessidade de inventariar as populações e seus movimentos (Foucault, 2015; DaMatta, 2002; Makrakis, 2000; Júdice, 1927). Foucault (2015) auxilia a compreender tanto o sentido da vigilância do poder público, na qual o documento é peça-chave, quanto o poder disseminado nas relações cotidianas. A partir do diálogo com Foucault, é possível entender o registro de nascimento como um mecanismo de controle, que possibilita a realização de estatísticas, o planejamento de ações de políticas públicas e a maior vigilância das populações. Documentos, censos, estatísticas, registros são práticas do Estado-sistema que tornam as pessoas legíveis e localizáveis dentro de determinado grupo populacional. O registro passa a ser entendido pelo Estado como ferramenta para o monitoramento contínuo das populações. DaMatta (2002:51) explicita o papel dos documentos, em qualquer lugar do mundo, como forma de controle do Estado nacional sobre os cidadãos diante da “necessidade de inventariar os recursos humanos disponíveis na sociedade, pela contagem e classificação de seus habitantes”.
    Sem refutar a dimensão de controle levantada por Foucault, Peirano (2006), Santos (1979) e DaMatta (2002) desenvolvem a noção da documentação como garantidora de direitos. Santos (1979) analisa como, no Brasil, a cidadania foi historicamente regulada pelo Estado e como outro documento, a carteira de trabalho, se tornou, a partir de 1930, passaporte para o mundo dos direitos.
    DaMatta (2002) afirma que o sistema de documentação brasileiro é todo encadeado, e para se obter um documento é sempre exigido um anterior. Cita como documento fundador o registro de nascimento, que origina a certidão de nascimento. Carvalho (2001, 2008) cunha a ideia de “estadania”, entendida como uma relação clientelista do cidadão com o Estado, ou uma cidadania construída de cima para baixo, com fortíssima presença do Estado e sem a consequente garantia de direitos de todos. Em Cidadania insurgente, estudo etnográfico e político ambientado em bairros populares de São Paulo, Holston (2013) recupera o conceito de “cidadania regulada” de Santos (1979) e traz outro, que muito ajuda a analisar a condição dos sem-documento. Para Holston (2013:258), a partir de dois pilares — a incorporação da cidadania pelo Estado e a distribuição de direitos para os que são considerados cidadãos — o Brasil construiu historicamente um tipo peculiar de cidadania, que o autor define como “cidadania diferenciada”: “uma cidadania que desde o início foi universalmente includente na afiliação e maciçamente desigual na distribuição de seus direitos”. Em outras palavras, a cidadania brasileira, tecnicamente, é universal e oferece direitos a toda a população, mas é de fato desigual na distribuição desses direitos.
    O diálogo dessa investigação com a obra de Holston ocorre a partir do conceito de cidadania diferenciada, ideia que salta aos olhos na pesquisa sobre os sem-documento. Tecnicamente, nada nunca lhes foi negado, já que o registro de nascimento é um direito garantido em lei e gratuito a qualquer cidadão. Na prática, observo como, para uma parcela da sociedade brasileira, o processo de cidadania diferenciada se reflete na ausência de vários direitos — e como, no processo de busca pela regularização daquele direito, ressurgem os conceitos de cidadania universal e do documento como direito de todos, permitindo discutir as implicações de sua ausência e os motivos para obtê-lo.
    Documentos ainda hoje são a chave para o acesso a políticas públicas e projetos sociais no Brasil. Peirano (1986, 2006) também discorre sobre a ausência de documentos e afirma que o contraponto à exigência de documentação é a punição de quem não a possui. DaMatta (2002) analisa o receio difuso dos brasileiros de serem interpelados sem que estejam de posse de seus documentos — rotina com a qual os invisíveis, tema deste projeto, convivem; Peirano (2006) destaca o temor do brasileiro de perder documentos, lembrando casos em que ladrões devolvem os documentos de pessoas assaltadas, tal a importância dos papéis como chae de acesso para obtenção de direitos.

     

    Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento

    Fernanda da Escóssia