Arquivo de Março 2023

  • Postado por editora em em 27/03/2023 - 16:33

    "O livro que tem diante de si propõe um olhar multissituado, capaz de observar a guerra, os seus contextos e os seus legados a partir de Portugal, dos solos africanos então colonizados e também de outras geografias, como é o caso do Brasil, cujas articulações com esse passado comum, mesmo que diferidas, se tornam aqui evidentes. Ao mesmo tempo, a leitura global desta obra sugere que a compreensão ampla do fenómeno da guerra apenas é possível com um horizonte histórico, para que não se foque estritamente no tempo em que o conflito decorreu e que enquadre dinâmicas sociais mais abrangentes e diversas na sua explicação."

    Dia 24 de abril teremos lançamento da obra na Travessa Pinheiro em São Paulo.

    Confira o prefácio de Miguel Cardina, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Coordenador do projeto “Crome – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio: as Guerras Coloniais e de Libertação em Tempos Pós-Coloniais”, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação.

     

    Um passado ainda vivo

    No momento em que escrevo estas linhas, decorre em Portugal um debate motivado pelas palavras do primeiro-ministro, António Costa, durante uma visita oficial a Moçambique. Aí classificou como um “ato indesculpável” o “massacre de Wiriyamu”, no qual perto de 400 homens, mulheres e crianças foram violentamente assassinados, em dezembro de 1972, numa incursão feita pelo Exército português na província de Tete. As palavras foram lidas como um “pedido de desculpas” formal e suscitaram uma discussão sobre a natureza ou a necessidade de gestos de reparação para fazer face a esse passado ainda vivo.
    A guerra colonial e de libertação inscreve-se num conjunto vasto de mudanças internacionais então em curso, em que sobressai o impacto das independências dos povos africanos e asiáticos pós-Segunda Guerra Mundial e um panorama geopolítico que, consoante distintos tempos e lugares, combinou a afirmação de esferas de influência, a ativação de solidariedades militantes e a eclosão de conflitos militares. Nesse novo contexto histórico, a resistência do regime de Salazar em encetar negociações – pedidas por movimentos de libertação antes do eclodir dos conflitos, como ocorreu com o Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) – arrastou o país para uma guerra longa em Angola, Guiné e Moçambique. Nos anos finais da ditadura, ficava já claro que aquela era uma guerra impossível de vencer. A breve trecho, viria a ditar o próprio fim do regime.
    A 25 de Abril de 1974, o velho Estado Novo caía através de uma rotura levada a cabo por militares de patente intermédia, que iria desaguar numa revolução que marcou geneticamente a democracia portuguesa. Em solo africano, a luta pela independência viria a consagrar-se como a certidão de nascimento das novas nações. Mesmo Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que não experienciaram a luta armada no território, acabariam por alcançar as independências no quadro da partilha desse mesmo idioma anticolonial. Nos diferentes países africanos – e não perdendo de vista as significativas diferenças entre si – a luta de libertação e a memória anticolonial viriam a assumir um lugar relevante, conferindo legitimidade a movimentos rapidamente tornados partidos únicos e vanguardas autoproclamadas na construção dos novos Estados.
    Em Portugal, por seu turno, e por um conjunto vasto de razões, a memória pública da guerra tendeu a ser recoberta por amnésias e seletividades discursivas. Entre outros elementos, pesa o facto de a guerra ter sido feita por militares.
    Foram esses mesmos militares – ou melhor, uma parte deles, os que se articularam no que seria o Movimento das Forças Armadas – que desencadearam a mudança política em Portugal, o que inevitavelmente interferiu na reflexão sobre a guerra, nomeadamente no parco questionamento sobre os episódios mais sangrentos. Este elemento articula-se ainda com a persistência de um imaginário que tende a apagar a natureza intrinsecamente violenta do projeto colonial. As raízes históricas dessa erosão memorial são antigas. Com efeito, a linguagem das Descobertas, ainda hoje um tópico dominante a partir do qual se tece o “nacionalismo banal” em Portugal, não pode fazer esquecer o papel tido na escravização de povos africanos e na sua deslocação forçada em direção à Europa e às Américas, com destaque evidente para o Brasil, nem, depois de formalmente abolida a escravização, os processos de trabalho forçado, de roubo de terras, de sobreexploração e violência física e simbólica a que foram sujeitos os povos africanos colonizados.
    A ditadura do Estado Novo não inventou o colonialismo nem o seu uso político, que tem origens anteriores. Mas a ideologia colonial será intensificada e reformulada nos anos de afirmação do fascismo português, acompanhada de uma crescente imbricação entre as economias da metrópole e das colónias e de vagas migratórias, nomeadamente para Angola e Moçambique, que se vão prolongar até ao final do regime. Esta etapa derradeira será ainda marcada pelo redesenhar imagético da relação colonial, a partir dos tópicos do lusotropicalismo, e por uma guerra que duraria 13 longos anos. Desencadeada pelos povos colonizados, a descolonização comportou o reconhecimento nacional e internacional dos novos Estados independentes e uma vaga de “retorno” de portugueses e seus descendentes, ou de ida para outras paragens, como a África do Sul ou o Brasil.
    O livro que tem diante de si propõe um olhar multissituado, capaz de observar a guerra, os seus contextos e os seus legados a partir de Portugal, dos solos africanos então colonizados e também de outras geografias, como é o caso do Brasil, cujas articulações com esse passado comum, mesmo que diferidas, se tornam aqui evidentes. Ao mesmo tempo, a leitura global desta obra sugere que a compreensão ampla do fenómeno da guerra apenas é possível com um horizonte histórico, para que não se foque estritamente no tempo em que o conflito decorreu e que enquadre dinâmicas sociais mais abrangentes e diversas na sua explicação. Sem esse olhar, que extravasa necessariamente o mero domínio político-militar, ficaríamos com uma visão muito limitada das causas e dos efeitos de uma guerra que foi, simultaneamente, a etapa final de uma ordem colonial e o início de um processo de descolonização que não terminou com a consagração política das independências.

     

    Portugal e os 60 anos da guerra em África

    Organizadores: Francisco Carlos Palomanes Martinho, Helena Wakim Moreno, Marina Simões Galvanese

     

  • Postado por editora em em 13/03/2023 - 12:47

    Desde os anos 1990, as Forças Armadas foram recorrentemente utilizadas em ações de segurança pública no Brasil. Como elas se desenvolveram e que impacto tiveram para os militares? Para responder a essas questões, estão aqui reunidas 16 entrevistas com oficiais das Forças Armadas. Em seu conjunto, permitem conhecer a experiência e a visão de mundo de uma geração de oficiais que participaram dessas operações de emprego doméstico das Forças Armadas e para refletir tanto sobre os desafios que elas enfrentaram quanto sobre o legado que deixaram.

    Entrevistas com: General Roberto Jugurtha Camara Senna, Coronel Romeu Antonio Ferreira, General Franklimberg Ribeiro de Freitas, General José Elito Carvalho Siqueira, Almirante Carlos Chagas Vianna Braga, General Adriano Pereira Júnior, General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, Almirante Reinaldo Reis de Medeiros, General Joaquim Silva e Luna, General Sergio Westphalen Etchegoyen, General Walter Souza Braga Netto, General Sergio José Pereira, General Richard Fernandez Nunes, General Edson Massayuki Hiroshi, General Sergio Luiz Tratz, General Fernando Azevedo e Silva

    Confira parte da apresentação da obra: 

     

    Das GLO à guerra urbana: a trajetória do emprego doméstico dos militares no Brasil (1992-2022)

    Apesar de não ter se envolvido em conflitos interestatais desde a Segunda Guerra Mundial, o Brasil é o segundo país com maior contingente militar nas Américas, após os Estados Unidos, com aproximadamente 356 mil membros ativos nas Forças Armadas. Além disso, para um país que mantém relações pacíficas com seus vizinhos, o Brasil investe significativamente em defesa. Nos últimos anos, o orçamento brasileiro para as Forças Armadas foi o maior da América Latina e Caribe, representando cerca de 45% de todo dos gastos militares na região. O orçamento da Defesa também é vultoso se comparado com o de outros ministérios, sendo consistentemente um dos cinco ministérios que mais custam ao erário.
    Entre as atividades e competências do Ministério da Defesa, além do preparo para a defesa contra ameaças externas e do engajamento em operações de paz no exterior, inclui-se o emprego das Forças Armadas no âmbito doméstico, nos termos da Constituição. As forças podem realizar atribuições subsidiárias que contribuem para o desenvolvimento nacional e a defesa civil ao se engajarem em ações de natureza preventiva ou repressiva, por vezes em coordenação com outros órgãos governamentais. Especificamente, grande parte da atuação doméstica das Forças Armadas se dá no âmbito das chamadas Operações de Garantia da Lei e da Ordem (OpGLO). O emprego das Forças Armadas no âmbito das OpGLO concentra-se principalmente em atividades como o policiamento e o apoio logístico durante as eleições; na segurança de grandes eventos de escopo internacional; na atuação para prover segurança em casos de greves das polícias militares ou no policiamento e em operações interagências para reduzir a criminalidade nas grandes cidades brasileiras, nas chamadas GLO de violência urbana.
    Este livro é um resultado do projeto de pesquisa “Forças Armadas na Segurança Pública no Brasil”, desenvolvido entre 2020 e 2022. O projeto consistiu no levantamento de documentos oficiais do Ministério da Defesa e do Exército sobre o assunto, incluindo legislação e manuais doutrinários publicamente disponíveis, para a elaboração de uma cronologia dos principais eventos relacionados ao tema e, principalmente, para auxiliar a produção de um acervo de entrevistas realizadas entre abril de 2021 e fevereiro de 2022. Esse acervo possui um total de aproximadamente 30 horas de gravação em áudio e vídeo. Foram entrevistados 16 oficiais das Forças Armadas que ocuparam posições privilegiadas na decisão, planejamento ou condução de missões de segurança pública. A maioria dos entrevistados é do Exército, porque esta força é a mais envolvida nessas ações. Há, porém, dois entrevistados da Marinha, especificamente do corpo de fuzileiros navais, também utilizado nas OpGLO.
    Este foi um projeto conduzido durante a pandemia de Covid-19. A equipe envolvida nunca se reuniu toda pessoalmente. Também foi necessário adaptar o protocolo de entrevistas para que os entrevistados pudessem, com segurança, dar seus depoimentos. À exceção das entrevistas com o almirante Carlos Chagas e com os generais Braga Netto e Sergio, todas as demais foram realizadas remotamente, pela plataforma Zoom.
    Os entrevistados eram, em sua quase totalidade, oficiais-generais — militares que, portanto, chegaram ao escalão mais elevado da carreira. Eles ocupavam, no momento da entrevista, diferentes posições: na reserva, na ativa ou reconvocados para funções a pedido do Poder Executivo. É importante frisar que, apesar de algumas menções à pesquisa acadêmica com uma conotação negativa, como se seus resultados fossem geralmente contra a visão dos militares sobre as OpGLO, os entrevistados manifestaram conhecimento e respeito pela FGV e pelos pesquisadores/entrevistadores envolvidos no projeto. Num momento delicado das relações entre civis e militares na democracia brasileira, em que as Forças Armadas apresentam-se com um renovado protagonismo político, não houve, em momento algum, tensão entre os pesquisadores e os entrevistados, e foi possível entrevistar indivíduos com relevância política para além da caserna, como os generais Walter Braga Netto (então ministro da Defesa, ex-interventor federal no Rio de Janeiro e já potencial candidato à vice-presidência da República), Joaquim Silva e Luna (então presidente da Petrobras, ex-presidente da Itaipu Binacional e ex-ministro da Defesa no governo de Michel Temer) e Fernando Azevedo e Silva (ex-ministro da Defesa no governo de Jair Bolsonaro).
    O acervo constituído é bastante rico porque cobre temporalmente as OpGLO desde sua gênese até as mais recentes, e os entrevistados puderam nos fornecer informações sobre suas experiências como oficiais em pequenos escalões ou nos mais altos postos de comando; e sobre a formulação da política, da doutrina até as impressões de cunho mais operacional, que só os militares que estiveram no terreno poderiam conhecer. A maior parte dos entrevistados teve as OpGLO perpassando diferentes momentos de sua carreira e participou de várias ações.
    Nossas entrevistas indicam que as OpGLO impactaram profundamente as Forças Armadas do ponto de vista de sua doutrina de emprego. As fontes de mudança doutrinária advêm tanto do repetido emprego doméstico dos militares quanto das missões de cunho internacional, seja como observadores militares, seja como tropa empregada em operações de paz. Em especial, ao longo da década de 2010, as forças militares e sobretudo o Exército criaram um arcabouço doutrinário, adquiriram equipamentos e desenvolveram protocolos de treinamento para permitir e orientar sua atuação na segurança pública. Desde 2019, as OpGLO na segurança pública vêm declinando quantitativamente e as forças vêm igualmente adaptando sua doutrina.
    Traçaremos brevemente, nesta apresentação, o surgimento e o desenvolvimento das OpGLO no Brasil, avaliando seu impacto na evolução da doutrina do Exército brasileiro. Elas surgiram e evoluíram ao longo dos anos a partir de demandas do Executivo, foram colocadas em prática pelos militares no exercício de sua execução e impactaram substancialmente as Forças Armadas, o Exército em particular, do ponto de vista doutrinário.

    Forças Armadas na segurança pública: a visão militar

    Organizadores: Celso Castro, Adriana Marques, Verônica Azzi, Igor Acácio