Não é possível pensar a questão cultural do consumo sem levar em conta a materialidade que sustenta a cultura e que é, ao mesmo tempo, moldada por ela.
Só assim entenderemos por que, nas décadas finais do século XX, a cultura havia se transformado na principal mercadoria do capitalismo. Somente assim, também, é possível compreender a cultura do consumo como um fenômeno que instiga nossa imaginação para reflexões profundas acerca do que somos e sobre a maneira como agimos.
O livro Cultura do consumo: fundamentos e formas contemporâneas, de Isleide Fontenelle, trata exatamente da 'evolução' desta cultura, com análise de sua formação histórica, que evidencia que não estava escrito que ela se tornaria a forma hegemônica cultural do mundo contemporâneo.
E para entender porque isso aconteceu, o livro aborda, entre outros fatores - como transformações econômicas, tecnológicas, políticas e culturais - duas teorias capazes de explicar sua lógica.
Uma delas tem foco no capitalismo, que nos permite entender o papel fundamental do consumo na realização de valor para o capital; a seguda trata da teoria das paixões e revela o longo trade-off entre desejo e cultura. Assim, a cultura do consumo pode ser compreendida como a cultura do capitalismo e como uma cultura do gozo, regida pelo credo “satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta”.
Confira algumas palavras da autora sobre a obra:
"Este livro foi escrito tendo por base uma disciplina que ministro na Escola de Administração Pública e de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, desde 2007. Seu objetivo é apresentar uma visão sobre o lugar do consumo na sociedade contemporânea e no mundo dos negócios a partir de uma perspectiva que não seja a da gestão do marketing, da publicidade, nem a do comportamento do consumidor. Sem dúvida, a atual cultura do consumo não pode ser pensada sem a existência dessas disciplinas e técnicas, que tiveram um papel central na sua constituição. Mas a compreensão do que é cultura do consumo está além delas, extrapola seus domínios. Dessa perspectiva, o marketing, a publicidade e o comportamento do consumidor são tomados como parte do objeto de análise e não como um campo próprio de investigação.
Minha primeira tentativa de entender as relações entre marketing e cultura do consumo se deu por ocasião do lançamento do livro Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade, do crítico cultural inglês Raymond Williams. Como no Brasil o livro foi lançado apenas em 2007, com um atraso de mais de 30 anos de sua publicação original em inglês, a editora que o publicou solicitou a acadêmicos brasileiros que escrevessem sobre termos que, na época do lançamento do original, não existiam, eram marginais ou simplesmente não foram contemplados pelo autor. A mim, coube a tarefa de definir “marketing e cultura do consumo”. Procurei mostrar a profunda relação que há entre o marketing e a cultura do século XX na modelagem de uma forma de vida conduzida pela lógica do consumo de mercadorias. Com isso, estavam criadas as bases do curso e, consequentemente, deste livro, que tem em Raymond Williams, assim como nos estudos culturais — o campo que teve nesse autor um dos principais fundadores —, uma referência central.
Meu interesse pelo tema do consumo começou, porém, bem antes, quando, no meu doutoramento em sociologia na Universidade de São Paulo (USP), na segunda metade da década de 1990, decidi investigar o que, na época, denominei “sociedade das imagens”.
Na tese, que deu origem ao meu primeiro livro — O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável (publicado originalmente em 2002) —, argumentei que a sociedade das imagens era um desdobramento da sociedade do consumo que se iniciou nas décadas finais do século XIX, marcando um novo estágio do desenvolvimento capitalista, cuja concorrência se dava pelas imagens.
O final da pesquisa, em 1999, apontava que essa nova forma na qual o consumo passava a operar na sociedade — que me levou a denominá-la “sociedade das imagens” — indicava um ponto de chegada no qual ciência e tecnologia estavam a serviço dessa lógica da produção de mercadorias; em que cultura e economia já estavam profundamente imbricadas e, finalmente, tratava-se de uma sociedade que forjava subjetividades guiadas pelo desejo da visibilidade, ou seja, um modo de organização social no qual estar na imagem é existir. Ainda não estávamos na era das mídias e redes sociais virtuais, que só viriam comprovar isso de forma mais radical.
No ano 2000, iniciei um pós-doutoramento no Núcleo de Psicanálise e Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) buscando entender a lógica interna desse processo que constitui subjetividades guiadas pelo desejo do consumo das imagens e da visibilidade. Isso me fez retornar a um estágio anterior, a fim de compreender a própria produção histórica do consumidor e o papel central que disciplinas emergentes nos séculos XIX e início do século XX — como as relações públicas e o marketing — tiveram na formatação dessa nova forma de vida forjada pelo consumo. Desde então, tenho desenvolvido pesquisas sobre como essa cultura do consumo vem se redesenhando na contemporaneidade, com a emergência de novos formatos que, à primeira vista, parecem até mesmo negar as origens dessa forma cultural, como é o caso do “consumo responsável”, conforme veremos.
Assim, ao longo de seu funcionamento, o curso foi incorporando novos fenômenos, embora sua base não mude: inicio resgatando as raízes históricas da cultura do consumo que formataram o modo como vivemos hoje, o que constitui o primeiro capítulo deste livro. Busco, no capítulo seguinte, compreender seus desdobramentos históricos no segundo pós-guerra, quando a cultura do consumo, ao mesmo tempo que se caracterizou pela expansão exacerbada da sua primeira fase, sofreu sua primeira grande inflexão, nas décadas finais do século XX, quando seu modus operandi, fundamentado na pesquisa e no anúncio comercial, começou a se metamorfosear, e quando a cultura emergiu como a principal mercadoria do capitalismo. No terceiro capítulo, abordo algumas das transformações atuais da cultura do consumo, com a emergência de novos formatos, como o consumo da experiência, o prossumo e o consumo responsável. Finalmente, no quarto e último capítulo, trago a discussão teórica que embasa o curso, pois percebi, pela experiência em sala de aula, que era necessário entender primeiro a história da formação dessa cultura do consumo, o que torna a compreensão da teoria, ao final, mais clara.
Desenvolvi esse formato por acreditar que somente munidos dessa base histórica os alunos são capazes de entender o sentido e o alcance das transformações contemporâneas ligadas ao tema.
Por isso, sempre insisto na importância fundamental da parte inicial do curso, que permite a compreensão da configuração dessa cultura na qual vivemos. Do mesmo modo, permite também a compreensão do consumidor como um sujeito historicamente produzido. Enfim, essa perspectiva leva a uma “desnaturalização” dessa cultura na qual nossos jovens alunos já nasceram totalmente imersos. Munidos dessa compreensão, eles passam a dispor de um maior repertório para compreender a cultura contemporânea do consumo e sua lógica.
Como procurei seguir uma configuração histórica, retomei os lugares e a literatura em que essa cultura do consumo emergiu e de onde ainda se irradia, em especial, os Estados Unidos. Certamente, haveria muito a dizer sobre como a cultura do consumo se constituiu — e vem se constituindo — em países asiáticos como China ou Emirados Árabes, assim como no Brasil. Nas aulas, procuro sempre apresentar exemplos e questões sobre como a cultura do consumo foi se formatando nesses espaços, em especial no Brasil, onde o consumo passou a ocupar um lugar central, inclusive no debate em torno da redefinição da noção de classe, em que se propôs a emergência de uma “nova classe média” (ou seria uma nova classe consumidora?).
Mas ainda está para ser feita uma análise própria da cultura do consumo no Brasil a partir de uma perspectiva que não seja uma mera reprodução do modelo europeu ou norte-americano, buscando nossas especificidades culturais, que dão uma configuração muito própria às nossas relações com o consumo no contexto da lógica global da cultura do consumo como a cultura do capitalismo.
É preciso também dizer que esse foi meu recorte, meu modo de ler a cultura do consumo, essa foi minha interpretação. Certamente, o leitor encontrará outras definições, outros autores e interpretações, enfim, outros olhares sobre as configurações históricas e contemporâneas relacionadas ao mundo do consumo. Algo importante a ser dito, nesse sentido, é que, em geral, os estudos acerca da cultura do consumo (consumer culture) tendem a privilegiar o que está circunscrito à esfera considerada “da cultura”: a relação com imagens, sons, símbolos, marcas e, portanto, sensações, emoções, experiências. Mas, como o leitor verá, ponho também a ênfase no econômico. Acredito não ser possível pensar a questão cultural do consumo sem levar em conta a materialidade que sustenta a cultura e que é, ao mesmo tempo, moldada por ela.
Só assim entenderemos por que começou a ficar claro, nas décadas finais do século XX, que a cultura havia se transformado na principal mercadoria do capitalismo. Somente assim, também, é possível compreender a cultura do consumo como um fenômeno que instiga nossa imaginação para reflexões profundas acerca do que somos e sobre a maneira como agimos.
Por estar baseado em um curso, o livro buscou adotar o estilo coloquial, para ser lido por quem está se iniciando na busca da compreensão do papel do consumo na cultura contemporânea.
Considero que o entendimento desse assunto é fundamental para a formação de nossos jovens estudantes. E ensiná-los também foi fundamental para o formato que este livro tomou."
Cultura do consumo: fundamentos e formas contemporâneas
Isleide Fontenelle
Lançamento dia 13/6/17, na Livraria da Vila - SP.