Arquivo de Maio 2017

  • Postado por editora em em 31/05/2017 - 08:14

    Não é possível pensar a questão cultural do consumo sem levar em conta a materialidade que sustenta a cultura e que é, ao mesmo tempo, moldada por ela.
    Só assim entenderemos por que, nas décadas finais do século XX, a cultura havia se transformado na principal mercadoria do capitalismo. Somente assim, também, é possível compreender a cultura do consumo como um fenômeno que instiga nossa imaginação para reflexões profundas acerca do que somos e sobre a maneira como agimos.

    O livro Cultura do consumo: fundamentos e formas contemporâneas, de Isleide Fontenelle, trata exatamente da 'evolução' desta cultura, com análise de sua formação histórica, que evidencia que não estava escrito que ela se tornaria a forma hegemônica cultural do mundo contemporâneo.

    E para entender porque isso aconteceu, o livro aborda, entre outros fatores - como transformações econômicas, tecnológicas, políticas e culturais - duas teorias capazes de explicar sua lógica.

    Uma delas tem foco no capitalismo, que nos permite entender o papel fundamental do consumo na realização de valor para o capital; a seguda trata da teoria das paixões e revela o longo trade-off entre desejo e cultura. Assim, a cultura do consumo pode ser compreendida como a cultura do capitalismo e como uma cultura do gozo, regida pelo credo “satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta”.

    Confira algumas palavras da autora sobre a obra:

    "Este livro foi escrito tendo por base uma disciplina que ministro na Escola de Administração Pública e de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, desde 2007. Seu objetivo é apresentar uma visão sobre o lugar do consumo na sociedade contemporânea e no mundo dos negócios a partir de uma perspectiva que não seja a da gestão do marketing, da publicidade, nem a do comportamento do consumidor. Sem dúvida, a atual cultura do consumo não pode ser pensada sem a existência dessas disciplinas e técnicas, que tiveram um papel central na sua constituição. Mas a compreensão do que é cultura do consumo está além delas, extrapola seus domínios. Dessa perspectiva, o marketing, a publicidade e o comportamento do consumidor são tomados como parte do objeto de análise e não como um campo próprio de investigação.
    Minha primeira tentativa de entender as relações entre marketing e cultura do consumo se deu por ocasião do lançamento do livro Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade, do crítico cultural inglês Raymond Williams. Como no Brasil o livro foi lançado apenas em 2007, com um atraso de mais de 30 anos de sua publicação original em inglês, a editora que o publicou solicitou a acadêmicos brasileiros que escrevessem sobre termos que, na época do lançamento do original, não existiam, eram marginais ou simplesmente não foram contemplados pelo autor. A mim, coube a tarefa de definir “marketing e cultura do consumo”. Procurei mostrar a profunda relação que há entre o marketing e a cultura do século XX na modelagem de uma forma de vida conduzida pela lógica do consumo de mercadorias. Com isso, estavam criadas as bases do curso e, consequentemente, deste livro, que tem em Raymond Williams, assim como nos estudos culturais — o campo que teve nesse autor um dos principais fundadores —, uma referência central.
    Meu interesse pelo tema do consumo começou, porém, bem antes, quando, no meu doutoramento em sociologia na Universidade de São Paulo (USP), na segunda metade da década de 1990, decidi investigar o que, na época, denominei “sociedade das imagens”.
    Na tese, que deu origem ao meu primeiro livro — O nome da marca: McDonald’s, fetichismo e cultura descartável (publicado originalmente em 2002) —, argumentei que a sociedade das imagens era um desdobramento da sociedade do consumo que se iniciou nas décadas finais do século XIX, marcando um novo estágio do desenvolvimento capitalista, cuja concorrência se dava pelas imagens.
    O final da pesquisa, em 1999, apontava que essa nova forma na qual o consumo passava a operar na sociedade — que me levou a denominá-la “sociedade das imagens” — indicava um ponto de chegada no qual ciência e tecnologia estavam a serviço dessa lógica da produção de mercadorias; em que cultura e economia já estavam profundamente imbricadas e, finalmente, tratava-se de uma sociedade que forjava subjetividades guiadas pelo desejo da visibilidade, ou seja, um modo de organização social no qual estar na imagem é existir. Ainda não estávamos na era das mídias e redes sociais virtuais, que só viriam comprovar isso de forma mais radical.
    No ano 2000, iniciei um pós-doutoramento no Núcleo de Psicanálise e Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) buscando entender a lógica interna desse processo que constitui subjetividades guiadas pelo desejo do consumo das imagens e da visibilidade. Isso me fez retornar a um estágio anterior, a fim de compreender a própria produção histórica do consumidor e o papel central que disciplinas emergentes nos séculos XIX e início do século XX — como as relações públicas e o marketing — tiveram na formatação dessa nova forma de vida forjada pelo consumo. Desde então, tenho desenvolvido pesquisas sobre como essa cultura do consumo vem se redesenhando na contemporaneidade, com a emergência de novos formatos que, à primeira vista, parecem até mesmo negar as origens dessa forma cultural, como é o caso do “consumo responsável”, conforme veremos.
    Assim, ao longo de seu funcionamento, o curso foi incorporando novos fenômenos, embora sua base não mude: inicio resgatando as raízes históricas da cultura do consumo que formataram o modo como vivemos hoje, o que constitui o primeiro capítulo deste livro. Busco, no capítulo seguinte, compreender seus desdobramentos históricos no segundo pós-guerra, quando a cultura do consumo, ao mesmo tempo que se caracterizou pela expansão exacerbada da sua primeira fase, sofreu sua primeira grande inflexão, nas décadas finais do século XX, quando seu modus operandi, fundamentado na pesquisa e no anúncio comercial, começou a se metamorfosear, e quando a cultura emergiu como a principal mercadoria do capitalismo. No terceiro capítulo, abordo algumas das transformações atuais da cultura do consumo, com a emergência de novos formatos, como o consumo da experiência, o prossumo e o consumo responsável. Finalmente, no quarto e último capítulo, trago a discussão teórica que embasa o curso, pois percebi, pela experiência em sala de aula, que era necessário entender primeiro a história da formação dessa cultura do consumo, o que torna a compreensão da teoria, ao final, mais clara.
    Desenvolvi esse formato por acreditar que somente munidos dessa base histórica os alunos são capazes de entender o sentido e o alcance das transformações contemporâneas ligadas ao tema.
    Por isso, sempre insisto na importância fundamental da parte inicial do curso, que permite a compreensão da configuração dessa cultura na qual vivemos. Do mesmo modo, permite também a compreensão do consumidor como um sujeito historicamente produzido. Enfim, essa perspectiva leva a uma “desnaturalização” dessa cultura na qual nossos jovens alunos já nasceram totalmente imersos. Munidos dessa compreensão, eles passam a dispor de um maior repertório para compreender a cultura contemporânea do consumo e sua lógica.
    Como procurei seguir uma configuração histórica, retomei os lugares e a literatura em que essa cultura do consumo emergiu e de onde ainda se irradia, em especial, os Estados Unidos. Certamente, haveria muito a dizer sobre como a cultura do consumo se constituiu — e vem se constituindo — em países asiáticos como China ou Emirados Árabes, assim como no Brasil. Nas aulas, procuro sempre apresentar exemplos e questões sobre como a cultura do consumo foi se formatando nesses espaços, em especial no Brasil, onde o consumo passou a ocupar um lugar central, inclusive no debate em torno da redefinição da noção de classe, em que se propôs a emergência de uma “nova classe média” (ou seria uma nova classe consumidora?).
    Mas ainda está para ser feita uma análise própria da cultura do consumo no Brasil a partir de uma perspectiva que não seja uma mera reprodução do modelo europeu ou norte-americano, buscando nossas especificidades culturais, que dão uma configuração muito própria às nossas relações com o consumo no contexto da lógica global da cultura do consumo como a cultura do capitalismo.
    É preciso também dizer que esse foi meu recorte, meu modo de ler a cultura do consumo, essa foi minha interpretação. Certamente, o leitor encontrará outras definições, outros autores e interpretações, enfim, outros olhares sobre as configurações históricas e contemporâneas relacionadas ao mundo do consumo. Algo importante a ser dito, nesse sentido, é que, em geral, os estudos acerca da cultura do consumo (consumer culture) tendem a privilegiar o que está circunscrito à esfera considerada “da cultura”: a relação com imagens, sons, símbolos, marcas e, portanto, sensações, emoções, experiências. Mas, como o leitor verá, ponho também a ênfase no econômico. Acredito não ser possível pensar a questão cultural do consumo sem levar em conta a materialidade que sustenta a cultura e que é, ao mesmo tempo, moldada por ela.
    Só assim entenderemos por que começou a ficar claro, nas décadas finais do século XX, que a cultura havia se transformado na principal mercadoria do capitalismo. Somente assim, também, é possível compreender a cultura do consumo como um fenômeno que instiga nossa imaginação para reflexões profundas acerca do que somos e sobre a maneira como agimos.
    Por estar baseado em um curso, o livro buscou adotar o estilo coloquial, para ser lido por quem está se iniciando na busca da compreensão do papel do consumo na cultura contemporânea.
    Considero que o entendimento desse assunto é fundamental para a formação de nossos jovens estudantes. E ensiná-los também foi fundamental para o formato que este livro tomou.
    "
     

    Cultura do consumo: fundamentos e formas contemporâneas

    Isleide Fontenelle

    Lançamento dia 13/6/17, na Livraria da Vila - SP.

  • Postado por editora em em 23/05/2017 - 15:22

    “Eu estava tranquilamente na prisão até que um belo dia, vendo televisão, eu vi anunciando a estreia do filme Cidade de Deus. Mané Galinha, Zé Pequeno, Bené, Cenoura… eu olhei: “Que porra de Cenoura é essa? Que dava tiro no Zé Pequeno era eu!...”

    Cidade de Deus: a história de Ailton Batata, o sobrevivente, de Alba Zaluar e Luiz Alberto Pinheiro de Freitas, reconstitui ao mesmo tempo uma história pessoal e a história dos agentes envolvidos no mundo do crime do Rio de Janeiro.

    Importante personagem da crônica do tráfico de drogas na virada dos anos 1970-1980 no Rio, Ailton Batata da Cidade de Deus passa de bandido a estudo de caso neste livro, publicado pela Editora FGV.

    Sua história de desqualificação, que inclui um encarceramento de 15 anos, é transformada pela introdução de dois pesquisadores acadêmicos para quem Ailton recontou sua história, reconstruiu sua autoimagem e refez sua imagem pública.

    Em mais de 60 horas de entrevistas, acompanhadas pelo psicanalista Luiz Alberto Pinheiro de Freitas, Ailton Bitencourt narrou à Alba Zaluar a sua versão do que considera a verdadeira história da guerra entre ele e Zé Pequeno, a primeira guerra do tráfico amplamente noticiada na imprensa carioca, que virou parte importante de um romance e trama de um filme que fazem sucesso até hoje.

    Ailton Batata, que vem a ser o único sobrevi­vente entre os protagonistas desta guerra, passa a ser um homem mais valorizado ao contribuir para a ciência com o relato de sua história e hoje, de fora do crime, pode dizer alguma coisa, com propriedade, sobre o mundo da transgressão.

    Ao iniciar as entrevistas para a confecção deste livro, Ailton já havia deixado a prisão: estava trabalhando na assistência social da prefeitura do Rio e mantinha-se afastado do mundo do tráfico de drogas, apesar de ter recebido algumas ofertas para assumir sua antiga atividade. Ao que parece, não só o cumprimento da pena o auxiliou nessa retificação subjetiva, a sua “inscrição na história” também o fez: relatada de forma disfarçada no filme Cidade de Deus, o colocou numa posição de destaque dentro do universo do crime.

    Muitos sabem que o personagem Sandro Cenoura é o Ailton Batata da Cidade de Deus e sua versão da história está nesse livro.

    Confira um pequeno trecho a seguir:

    "Ailton foi testemunha-chave e um dos atores principais na construção do tráfico de drogas como negócio por seu tino comercial e por sua capacidade de liderança e de organização. Seu depoimento tem o valor de documento da história oral do mundo do crime no Rio de Janeiro.
    Um economista diria que ele foi um empreendedor e, nesse negócio, um pioneiro. O tino comercial fica claro na avaliação que ele faz do mercado em meados dos anos 1970, quando o tráfico de cocaína começava a se espalhar na cidade do Rio de Janeiro. A reputação de bom comerciante, que ele defende até hoje, sustenta-se na negativa de que, na sua época e na sua boca de fumo, a cocaína fosse malhada. No máximo, uma mistura que já vinha do fornecedor. Ele mesmo não misturaria com fermento em pó, como se faz hoje, o que torna o produto vendido com menos de 50% de cocaína. Mas, como as mercadorias que vendia eram ilegais, cometeu muitos crimes, principalmente o homicídio, visto que não tinha como resolver judicialmente os conflitos em torno dos “estabelecimentos comerciais informais” (ou bocas de fumo) criados na Cidade de Deus, depois que ele deixou de ser o único traficante poderoso. As emoções desencadeadas na disputa com os que, de repente, viravam inimigos foram tomando conta das suas ações não mais apenas comerciais.

    "O nome sempre foi esse — boca de fumo —, porque começou com o fumo. No passado, as bocas começaram com o fumo, até surgir a cocaína. Nem todas as bocas trabalhavam com cocaína, mas tinha, era pouca coisa… Em 1974 para 1975 já se usava cocaína. Muita gente saía da Cidade de Deus para comprar no Cantagalo, e tinha um pessoal que vendia lá na Taquara. Em 1974 já tinha muita cocaína no subúrbio. A cocaína não era assim um privilégio que uns podem e outros não podem.
    Se eu comprasse um quilo, já mandavam de presente meio quilo de mistura.43 Hoje em dia tem até preço barato, porque a cocaína hoje é cheia de fermento em pó. Tem favela que vende cocaína aí de R$ 3,00. Naquela época, vamos dizer que, por menos de R$ 10,00 ou R$ 20,00, não se comprava cocaína. Ela era servida naquele papel, acho que se chamava papel-manteiga. Claro, com o plástico por dentro. A cocaína melava muito, até virava água. Tinha várias qualidades de cocaína. Era uma época em que poucos cheiravam por causa do preço, entendeu? Hoje em dia, com R$ 3,00 ele cheira o pó nas favelas. Naquela época era caro, uns R$ 10, R$ 20, R$ 50. Às vezes até de R$ 10,00 era difícil de comprar. Quem tinha não fazia o que se faz hoje. Naquela época ele comprava R$ 50,00 de cocaína, cheirava a noite toda e guardava, porque ele não ia aguentar cheirar tudo. Hoje em dia os caras ficam aí a noite toda, porque é muito fermento que eles estão cheirando, entendeu? Em vez de um cara falar pó ou cocaína, falava brizola.
    No meu tempo, a cocaína era de outra qualidade. Então, corria risco de melar, até derretia, se deixava muito tempo exposto ao vento, porque não se levava muita mistura igual hoje. Hoje a própria mistura que eles colocam na cocaína, aquilo você pode jogar ela aqui em cima da mesa e dar uma volta de duas ou três horas e quando você voltar ela está ali ainda no mesmo lugar. A mistura ali é demais, porque o fermento, a maisena, aquilo ali protege a cocaína para não melar. E como hoje em dia é mais o fermento do que cocaína… O meu filho Aramis foi preso [em 2009] com três gramas e pouca de cocaína, duas gramas de fermento. Tanto é assim que a pena diminuiu de cinco para três anos
    ."

     

    Cidade de Deus: a história de Ailton Batata, o sobrevivente

    Alba Maria Zaluar e Luiz Alberto Pinheiro de Freitas

    Lançamento dia 1 de junho, às 19h, na Livraria da Travessa de Ipanema

     

  • Postado por editora em em 17/05/2017 - 11:03

    Terceira incursão do historiador José Carlos Reis no projeto de mapeamento historiográfico das identidades do Brasil, este livro reivindica a necessidade de os brasileiros reavaliarem o próprio percurso histórico. O objetivo é problematizar a noção de uma “história geral”, de raiz universal, absoluta, unívoca, redigida pelo protagonismo narrativo europeu e norte-americano que, por meio do filtro etnocêntrico e homogeneizador, fixa nos compêndios a história do outro pelo olhar do eu. O autor, aqui, defende a ideia de uma história plural, “em que as diversas regiões do país contam diferentemente a história brasileira, mantêm relações diferentes com o passado e propõem projetos diferentes para o futuro”.

    Confira um trecho da apresentação da obra:

    "O objeto deste livro é a (re)escrita da história do Brasil, a construção e a reconstrução dos discursos sobre a história brasileira durante o século XX. É um estudo reflexivo, uma história intelectual, uma avaliação crítica da produção histórico-sociológico-antropológica sobre o Brasil. Vou diferenciar um “ponto de vista geral” de um “ponto de vista plural” e defender a necessidade de os cidadãos brasileiros começarem a ver a história brasileira diferentemente. O ponto de vista da “história geral” tem sua matriz na “história universal” escrita pelos europeus para legitimarem suas invasões e conquista do planeta. Os franceses, ingleses e alemães escrevem a história dos outros povos de tal maneira que eles se sintam resgatados, salvos da barbárie, do caos primitivo, do paganismo, com a chegada deles, os brancos cristãos europeus. O que os indígenas da América, os negros da África, os orientais pensam da sua própria história não importa, pois, ao entrarem em contato com os europeus, suas histórias ganharam um centro e passaram a ser decididas e dirigidas por protagonistas externos. Os norte-americanos deram continuidade a essa perspectiva histórica centralizadora, etnocêntrica, civilizadora, branqueadora, e, em suas obras de ficção, esse ponto de vista é estendido ao universo, aos planetas. O grupo da enterprise (empresa, companhia), dirigido pelo capitão James Tiberius Kirk, é um grupo de “exploradores”, de “conquistadores”, de “descobridores”, uma reedição das grandes navegações dos séculos XV e XVI.
    O objetivo é a homogeneização do universo, que deve ser submetido a um único governo, dominado por uma única cultura, habitado por um homem (os ETs serão humanizados!), enquadrado em um único padrão estético, lógico e ético. Os que não se adaptarem e não se integrarem a essa “história geral” não terão direito à sua experiência singular e à narração de sua história; serão esquecidos, excluídos, exterminados.
    Após a Independência, o Brasil precisava entrar nesse “concerto das nações ocidentais”, vencedoras; precisava inventar uma identidade reconhecível por elas; precisava adotar um ponto de vista geral integrador à grande história universal. Coube a Francisco Adolfo de Varnhagen, inspirado em um alemão, Carl Philipp von Martius, “inventar” essa “história geral do Brasil”, que se disseminou em compêndios que diziam narrar a “verdadeira história do Brasil”. Era uma visão centrada no Rio de Janeiro, na monarquia, que reivindicava a condição de “história nacional”, de narrativa única, geral, verdadeira, do Brasil. Esse ponto de vista geral fechou as possibilidades de interpretações diferentes da experiência brasileira, os fatos eram sempre os mesmos; os protagonistas, sempre os mesmos; os grandes eventos eram os ligados ao Estado; as datas eram incontornáveis, indiscutíveis; o enredo, sempre o mesmo; o sentido, único e incontestável. Predominava uma única “ordem do tempo”, que a população devia aprender, memorizar e repetir. Havia um “abuso da memória”, no sentido de que se deviam lembrar sempre as vivências brasileiras de uma única forma e em uma única perspectiva. O ponto de vista dessa história geral era etnocêntrico, branco, elitista; era a generalização do olhar de um grupo e de uma região, o ponto de vista de uma parte que se tomava como centro do todo. Essa história geral expressava um projeto político de conquista e colonização de uma região, que se considerava superior às outras. Desde a Independência, a Corte fluminense se representava como o núcleo branco, cristão e ocidental do Brasil, que tinha a missão heroica de “salvar o país”, levando ao interior bárbaro, com violência, se fosse necessário, os valores da civilização ocidental.
    Este livro visa problematizar essa noção de “história geral do Brasil” e propor uma “história plural do Brasil”, não etnocêntrica, em que as diversas regiões do país contam diferentemente a história brasileira, mantêm relações diferentes com o passado e propõem projetos diferentes para o futuro. Com esse ponto de vista plural, sustento que não deve haver uma narração única e ideal da experiência bra sileira, porque as regiões brasileiras viveram ou repercutiram diferentemente essa experiência. Há “experiências brasileiras”, no plural, há “tempos brasileiros”, múltiplos, que geram “narrações plurais” do Brasil. Para explorar essa multiplicidade de histórias brasileiras, selecionei seis clássicos do pensamento histórico brasileiro, que, embora tenham também ambições gerais, expressam o ponto de vista de vários estados da Federação. Por um lado, esta pesquisa quer romper com o ponto de vista da “história geral” como perspectiva única e ideal; por outro, mantém-se ligada a “histórias gerais”, mas, agora, múltiplas, várias, regionais, produzidas a partir de pontos diversos do território, gerando uma percepção prismática da vidabrasileira.
    Essa “história plural do Brasil” que proponho, posicionando-se entre a história regional e a história geral, irá explorar as visões fluminense, paulista, gaúcha, pernambucana, paraense e mineira do Brasil, mostrando como esses estados narram o passado brasileiro, a experiência geral brasileira, como se situam nela, como avaliam seus impasses e o que fariam para resolver as dificuldades brasileiras no futuro. Cada região avalia diferentemente o percurso da história brasileira, situando- se de forma central nela, e propõe seu próprio caminho para a solução dos impasses. Ao sugerir essa “história plural do Brasil”, esta pesquisa quer substituir o olhar centralizador, etnocêntrico, autoritário, unificador, branqueador e homogeneizador por um novo olhar, descentralizador, heterogeneizador, federativo, republicano, democrático, revelando as diversas faces da história do Brasil, as diversas avaliações e projetos de construção da nação. Não estou propondo a desintegração do país, fomentando separatismos, mas indicando uma direção de “unificação e diferenciação”, uma dialética de todo/partes, em que as partes se sintam o todo e o todo integre as partes. Posso dizer, metaforicamente, que substituirei o olhar predador da onça ou do leão pelo olhar sofisticado, sutil, múltiplo, facetado desses insetos que têm um “olhar composto” (omatídios), olhos que cobrem quasetoda a sua cabeça e lhes dão uma visão detalhada ao seu redor. Seus olhos, quase esferas completas, formados de pequenos olhinhos, são considerados os melhores olhos existentes, pois conseguem enxergar em todos os ângulos possíveis. Graças a essa capacidade excepcional de “visões”, a libélula e a abelha conseguem detectar padrões de movimento e rapidamente reagir a eles. Inspirado nesse olhar da natureza, este livro visa construir “visões do Brasil”, uma percepção poliédrica da realidade brasileira, que pode ampliar o conhecimento do passado e levar ao encontro de soluções democráticas. Esses insetos são “construtores”, conseguem construir laços de sociabilidade, ao contrário de leões e onças, animais que andam solitários ou em pequenos grupos, que só têm tanto prestígio por serem a referência de reis e elites, que não são minhas referências. Minha pretensão é conduzir o pensamento histórico brasileiro a uma “consulta oftalmológica” ou ao “consultório psicanalítico”, para sair de lá com novos óculos ou com uma nova linguagem, que expresse uma visão e representação ao mesmo tempo mais aberta e mais integrada de si.
    Formularei os seguintes problemas: pode-se narrar a experiência brasileira sempre da mesma forma e com o mesmo conteúdo? A história brasileira possui uma verdade imutável e absoluta, tal como aparecia na história geral fluminense do século XIX? Quais as formas, os estilos, os modos de escrever a história brasileira? Como os principais estados escrevem sobre a sua experiência brasileira? Quais os riscos de uma história geral e quais as vantagens de uma história plural? Qual é o lugar e a contribuição dos autores selecionados à historiografia brasileira do século XX? Qual é a concepção de “tempo histórico brasileiro” desses historiadores? Quais são os conceitos de “identidade/alteridade”, “evento”, “sociedade”, “ação”, “luta”, “projeto social”, “justiça social”, “utopia”, enfim, qual é o conceito de “história” desses historiadores e cientistas sociais? Quais são os “sentidos históricos” possíveis da nação brasileira? Como a sociedade brasileira recebeu e se apropriou ou pode ainda receber e se apropriar dessas obras?
    Minha hipótese mais geral: uma abordagem plural da vida brasileira é uma necessidade urgente, tanto do ponto de vista científico, se queremos ampliar e refinar o conhecimento do nosso passado, quanto do ponto de vista político, se queremos ampliar o exercício da cidadania, se queremos construir uma identidade brasileira consciente das suas diferenças republicanas e democráticas. Precisamos nos opor a visões centralizadoras e autoritárias, geralmente ensinadas no ensino fundamental e divulgadas pela mídia, para ter uma atitude realmente crítica em relação ao passado brasileiro e abrir nosso horizonte de expectativa para uma experiência comum de liberdade e democracia. Vou procurar demonstrar minha hipótese com o estudo e a análise de grandes intérpretes do Brasil, que mantêm entre si uma relação ao mesmo tempo de enfrentamento, de divergência radical e de complementaridade,de fecunda interlocução, pois os olhares divergentes trazem sempre novasinformações e constroem outras soluções para o Brasil. Vou construir uma nova narrativa do Brasil, procurando “fazer aparecer” a pluralidade dos “tempos brasileiros”: o tempo saquarema (fluminense), o tempo bandeirante (paulista), o tempo farroupilha (gaúcho), o tempo confederador (pernambucano), o tempo amazônida/ igaraúna (paraense) e o tempo inconfidente (mineiro). Esses “tempos brasileiros” aparecem em “narrativas do Brasil” muito diferentes, e conhecê-los significa ampliar, aprofundar, intensificar nosso conhecimento das identidades do Brasil.
    Para reconstruir a visão fluminense do Brasil, analisarei o livro de José Murilo de Carvalho 'A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras:a política imperial (2012)', obra polêmica, vista como um elogio ao Império e a Pedro II, o conquistador do Brasil, enfatizando a construção do Estado e ignorandoa construção da nação, que expressa o “tempo saquarema”. Para reconstruir a visão paulista do Brasil, analisarei a obra de Fernando Henrique Cardoso 'Empresário industrial e desenvolvimento econômico do Brasil (1964)', o importante sociólogo-historiador paulista que se tornou, depois, presidente da República, que suponho expressar com forte atualidade o “tempo bandeirante” em seu esforço de conquista e domínio das outras regiões do Brasil. Para avaliar a visão gaúcha do Brasil, analisarei a obra do jurista-historiador Raymundo Faoro 'Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1975 [1958])', que, para mim, atualiza'o “tempo farroupilha” ao questionar o Estado brasileiro desde as origens — obra extremamente importante, original, sempre citada e analisada por historiadores ecientistas sociais, uma referência incontornável do pensamento histórico brasileiro. Para reconstruir a visão pernambucana do Brasil, analisarei a obra de Evaldo Cabral de Mello 'Rubro veio: o imaginário da Restauração pernambucana (1986)','que suponho representar o “tempo confederador” pernambucano, em alusão à Confederação do Equador, de 1824, que sempre resistiu às lideranças fluminense e paulista, procurando restaurar a centralidade e o prestígio de Recife/Olinda na história brasileira. Para avaliar a visão paraense do Brasil, analisarei a obra de Raimundo Moraes 'Na planície amazônica (1926)', que, para mim, representa o “tempo amazônida/igaraúna” da região Amazônica, que sofre com o abandono e desinteresse do governo central e pede para ser reconhecida e integrada ao conjunto da nação brasileira. Para enfatizar a visão mineira do Brasil, analisarei a obra de Darcy Ribeiro 'O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil (1995)', que revela o “tempo inconfidente”, que questiona os poderes hegemônicos de São Paulo e Rio de Janeiro, aliando-se a gaúchos, pernambucanos e paraenses, para fazer avançar o projeto republicano em “um movimento de unificação e diferenciação”, levando o Brasil a se tornar uma nação ao mesmo tempo unida e descentralizada, uma verdadeira “federação”, justa e democrática.
    Os próprios títulos de algumas dessas obras sintetizam o tema e a problemática da pesquisa: “a formação e os sentidos do Brasil”, “o desenvolvimento brasileiro”, “as regiões brasileiras”, “as paisagens brasileiras”, “os grandes eventos brasileiros”, “os sujeitos da história brasileira”. Esses temas foram narrados de forma muito própria pelas diversas regiões do Brasil que, suponho, esses autores representam. Em cada uma das obras selecionadas, e em seu conjunto, abordarei os seguintes problemas: como cada região brasileira interpreta o Brasil? Como a historiografia regional representou o Brasil ao longo do século XX? Como cada região brasileira articula, na historiografia, o “espaço da experiência” e o “horizonte de expectativa” dos brasileiros? Que experiências brasileiras são resgatadas e centralizam essas representações regionais e com vista a quais futuros?
    Como cada um desses autores reconstruiu o passado brasileiro e como cada um deles perscrutou o futuro do Brasil? O exame das fontes, a escolha dos conceitos, das teorias, dos temas de pesquisa, a organização da argumentação estão sempre articulados a uma experiência presente da história, que propõe uma determinada redescoberta do passado e uma determinada tendência em relação ao futuro. José Murilo de Carvalho, Fernando Henrique Cardoso, Raymundo Faoro, Evaldo Cabral de Mello, Raimundo Moraes e Darcy Ribeiro, em seu presente, articularam o passado do Brasil ao seu futuro de uma forma determinada; eles produziram “interpretações do Brasil”. A análise interna de cada uma dessas configurações do tempo brasileiro, e sua comparação, poderá revelar um conhecimento mais aprofundado das identidades brasileiras."

    As identidades do Brasil 3: de Carvalho a Ribeiro - História plural do Brasil

    Jose Carlos Reis