“Em maio de 2016, ao discutir com Edmond Préteceille versão preliminar do livro que estávamos escrevendo juntos sobre classes médias no Brasil, ele me perguntou: “Mas e a política? Não podemos escrever um livro sobre classes médias sem discutir sua atuação política”. Comecei, então, a escrever um capítulo sobre isso para nosso livro conjunto (Cardoso e Préteceille, 2020). Contudo, o que era para ser um capítulo curto acabou se avolumando, e o resultado é o livro que o leitor tem em mãos”.
Assim começa o novo livro de Adalberto Cardoso, Classes médias e política o Brasil: 1922-2016, publicado pela Editora FGV em formato digital e em breve também impresso.
Em seu primeiro capítulo, a obra recupera uma pequena parcela da discussão internacional sobre a relação entre classes médias e política, com um olhar de longa duração em modo “voo de pássaro”, fazendo dialogar argumentos de autores tão díspares quanto Aristóteles, Alexis de Tocqueville, Karl Marx, Charles Wright Mills, Scott Lash e Klaus Eder, dentre outros, para trazer à superfície da análise sociológica a centralidade das classes médias nas dinâmicas social e política da ordem burguesa, bem como suas metamorfoses no tempo.
Na história brasileira, após esta contextualização, Cardoso investiga a ação política das classes médias no período denominado por ele como “longo ciclo de Vargas”, que tem início com as revoltas tenentistas de 1922 e termina com o golpe militar de 1964.
Também fazem parte da abordagem a relação entre classes médias e política durante a ditadura militar-civil, termo utilizado pelo autor, quando as classes médias estiveram majoritariamente com os militares por todo o período, com atenção a uma proporção não desprezível em oposição, como o movimento estudantil de classe média e na luta armada, também majoritariamente desta classe.
A sequência traz uma incursão no debate sobre o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff em 2016, do ponto de vista do papel das classes médias no processo de polarização que é qualificado pelo autor como momento serendípico das relações de classe. Cardoso argumenta que a conjuntura 2013-2016 foi típica dos processos de formação de classe, nos quais coletivos em luta constroem identidades coletivas referenciadas nos adversários e na disputa pela determinação dos rumos a serem dados ao país, isto é, no âmbito da política como lugar de definição dos fins da ação pública.
Classes médias e política no Brasil: 1922-2016 trata da atuação das classes médias no Brasil (no plural mesmo por causa da multiplicidade e heterogeneidade de seus engajamentos) em diversos momentos da nossa história.
Lançamos hoje em formato digital em nosso site e nas principais lojas de ebooks (Amazon, iBooks e Google Play) e assim que a situação normalizar a obra estará disponível no formato impresso.
Confira abaixo um trecho da introdução da obra:
Em junho de 2013, uma série de mobilizações de rua transformou profundamente a cena política brasileira. Inaugurou-se inegável ciclo de protestos (Tarrow, 1995), cujo estopim foi aceso pelo Movimento Passe Livre (MPL), que saiu às ruas de São Paulo entre 6 e 13 de junho em reação ao aumento de R$ 0,20 (vinte centavos) nas tarifas de ônibus. A violenta repressão policial que se abateu sobre os manifestantes, que resultou na prisão de centenas de ativistas, além de provocar ferimentos em outros tantos, trouxe às ruas levas de pessoas de início solidárias aos jovens do MPL, mas que em seguida ampliaram sobremaneira os temas em disputa. O ápice das mobilizações ocorreu em 20 de junho, quando pelo menos um milhão de brasileiros/as tomou as ruas em mais de cem cidades, portando cartazes e faixas com os mais diferentes dizeres, alguns coletados por André Singer:
“Copa do Mundo eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”, “Queremos hospitais padrão Fifa”, “O gigante acordou”, “Ia ixcrever augu legal, maix fautô edukssão”, “Não é mole, não. Tem dinheiro pra estádio e cadê a educação”, “Era um país muito engraçado, não tinha escola, só tinha estádio”, “Todos contra a corrupção”, “Fora Dilma! Fora Cabral! PT = Pilantragem e Traição”, “Fora Alckmin”, “Zé Dirceu, pode esperar, tua hora vai chegar” [Singer, 2013:25].
Os movimentos de junho politizaram a vida cotidiana de maneira imprevista em sua dimensão e pluralidade, e logo ficou claro que a população estava nas ruas por muito mais do que os vinte centavos de aumento dos ônibus paulistanos. Análises mais finas dos acontecimentos mostraram que o tema da corrupção ganhou crescente visibilidade nos protestos, e, nas grandes marchas de junho de 2013, ao menos em São Paulo metade dos manifestantes disse estar ali para protestar contra a corrupção nos governos do Partido dos Trabalhadores (Tatagiba, 2017).
Pesquisas feitas no calor da hora em várias cidades do país durante as manifestações construíram o perfil dos participantes. Singer (2013) sintetizou algumas delas. Em São Paulo e Belo Horizonte mais de 50% tinham 25 anos de idade ou menos, contra 41% no Rio de Janeiro. Pesquisa do Ibope em oito capitais encontrou a cifra de 43% com idade entre 14 e 24 anos. Logo, em 20 de junho os manifestantes eram majoritariamente jovens. Além disso, na pesquisa Ibope, 43% tinham diploma universitário, e era residual a presença de pessoas com ensino fundamental. Em São Paulo a proporção de pessoas com educação superior se aproximou de 80%, e 66% em Belo Horizonte. E mais, apenas 15% dos que foram às ruas nas oito capitais cobertas pelo Ibope tinham renda familiar de dois salários mínimos ou menos. Isso levou Singer a concluir pela “virtual ausência da base da pirâmide social brasileira nas manifestações” (idem:28). As ruas foram tomadas por jovens de famílias de classe média e alta, particularmente em São Paulo e Belo Horizonte.
O caráter majoritário de classe média dos movimentos de junho se aprofundaria nos meses e anos seguintes. Aumentaria, também, a polarização e a radicalização dos movimentos, que culminariam nas grandes manifestações pró e contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2015 e 2016, todas elas com nítido perfil de classe média, segundo as pesquisas disponíveis e que serão detidamente analisadas aqui. O que teria levado as classes médias uma vez mais às ruas para afirmar, nelas e não pelos canais da institucionalidade democrática, suas preferências políticas?
A pergunta tem elementos que cabe esclarecer. É fato que as classes médias foram “uma vez mais” às ruas, e novamente mobilizando milhões de pessoas.
Eventos semelhantes ocorreram em 1964, nas “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, nos protestos contra a ditadura militar-civil em 1968, no movimento pelas “Diretas Já” em 1984 e nas mobilizações pelo impeachment de Fernando Collor de Melo em 1992. Em todos esses casos os movimentos foram liderados por segmentos das classes médias, ou foram por eles encampados logo que ganharam visibilidade pública. E as classes médias não se bateram pelas mesmas causas: em 1964 apoiaram os militares contra João Goulart, em 1968 parte delas estava com as esquerdas contra a ditadura, em 1984 marcharam com as demais forças populares pela democracia, em 1992 expressaram sua indignação moral contra a corrupção, algo que voltaria a mobilizá-las de 2013 em diante.
Se os temas e as motivações variaram, assim como a composição interna das classes médias, a ida às ruas teve sempre o mesmo propósito: forçar os incumbentes do poder a mudar o curso das políticas públicas, ou tentar destituí-los caso a mudança não se mostrasse viável. Na experiência brasileira recente, as classes médias que se mobilizaram e foram às ruas conseguiram seu intento (destituir governos) sob a democracia (Jango, Collor e Dilma), mas não conseguiram mudar o curso das políticas, ao menos no caso da ditadura de 1964 (protestos de 1968 e Diretas Já).
O segundo elemento da pergunta é mais complexo, e é o motivo pelo qual resolvi escrever este livro. Ele opõe, como formas distintas de participação política, as ruas e os movimentos que nela expressam interesses, identidades, visões de mundo e poder de arregimentação e mobilização coletiva; e a institucionalidade democrática, isto é, o acesso a instâncias decisórias no aparelho de Estado por meio de eleições, a alternância no poder que isso eventualmente proporcione, a formulação de políticas públicas nas instâncias representativas daí decorrentes etc. As duas coisas não são, obviamente, excludentes. É fácil demonstrar que o povo nas ruas foi ator central no aprofundamento e consolidação das democracias do ocidente como regimes políticos mais inclusivos e ordenamentos econômicos mais igualitários (Thompson, 1987; Pateman, 1992; Feres Júnior e Pogrebinschi, 2010). Isso inclui o Brasil (Oliveira, 2002). Mas é fácil demonstrar, também, que as mobilizações coletivas (as ruas) nem sempre têm no horizonte o aperfeiçoamento, o aprofundamento ou a melhoria da ordem democrática. Vivemos o contrário disso no Brasil em conjunturas dramáticas como o suicídio de Getúlio Vargas em 1954, o golpe militar-civil de 1964 e novamente os golpes parlamentares de 1992 contra Collor e de 2016 contra Dilma Rousseff, todos apoiados por segmentos muito mobilizados das classes médias. Nesses casos de derrubada de governos, esses segmentos se bateram contra a institucionalidade democrática, e fizeram-no convocando agentes do próprio aparelho de Estado (os militares, o parlamento, o judiciário) a voltar-se contra os incumbentes do poder executivo, ao passo em que, nas ruas, procuraram arregimentar o apoio de outras classes sociais, sobretudo as classes mais altas. Apenas a luta contra a ditadura militar-civil de 1964 teve no horizonte a restauração das “liberdades democráticas”, lema da resistência à ditadura a partir de meados da década de 1970, como veremos. São esses distintos engajamentos de diferentes setores das classes médias e seus impactos na vida política da nação que cumpre explicar.
Dizendo mais enfaticamente: defendo o ponto de vista de que as classes médias foram atores decisivos nas conjunturas mais críticas da construção nacional. Contudo, sua importância para a dinâmica política e a evolução social do país esteve muito longe de ser devidamente reconhecida por nossas ciências sociais. Contam-se nos dedos os estudos que têm na relação dessas classes com a política o objeto principal de análise. Este livro se pretende modesta contribuição a esse campo, por injustiça, tão pouco atraente. Espero trazer elementos que contribuam para elucidar aspectos que julgo centrais da tensa relação das classes médias com a política, tanto no que respeita à identidade dessas classes como para os processos sociais e políticos que delas se alimentam.
Uma política de classe?
As classes médias têm sido tratadas por parte da literatura mais tradicional sobre as lutas de classes no país, como segmentos ou estratos de classe que nunca dispuseram de projeto político próprio, estando, por isso, disponíveis para engajamentos múltiplos e variáveis segundo as conjunturas, posicionando-se de forma pragmática em relação ao que Décio Saes (1984), por exemplo, nomeia de conflito principal no capitalismo, que opõe burguesia e proletariado. Além disso, para Saes, autor da mais importante contribuição sobre o tema no país, a ação política das classes médias seria autoritária por natureza, já que, ocupando posições de mando nas empresas ou no aparelho de Estado, considerariam hierarquia, subordinação e coerção de trabalhadores subordinados elementos “naturais” do funcionamento também das sociedades, estando, por isso, mais propensas a dar suporte a regimes e movimentos autoritários.
Essa leitura já não pode ser sustentada. Primeiro, porque trata de forma homogênea universo muito heterogêneo de posições de classe, como mostrado em Cardoso e Préteceille (2020) e aprofundado no capítulo I desta publicação. Como tal, as classes médias (ou “camadas médias” como prefere Saes, que emprega o termo “classe” apenas para burguesia e proletariado) são uma construção artificial e vazia. Em segundo lugar, o sentido de “projeto político próprio” é devedor de certa leitura da luta de classes que supunha que o operariado era o sujeito portador da história, isto é, da transformação revolucionária do capitalismo, sendo este seu projeto histórico próprio, ou ancorado em sua condição objetiva de classe. E os capitalistas também teriam o seu, baseado na manutenção da propriedade e da exploração do trabalho, para o que necessitavam controlar o Estado e seus mecanismos de dominação. Este seria o “conflito principal” do capitalismo. O projeto político “próprio”, pois, era em grande medida uma construção do analista.
Depois da crítica de Edward P. Thompson (1987), esse ponto de vista perdeu valor heurístico. O historiador marxista mostrou que a consciência e os projetos políticos (no plural) da classe operária inglesa tiveram que ser construídos na luta de classes, bebendo nas tradições de organização e luta coletiva de artesãos, agricultores e demais segmentos que foram compor a classe operária nos séculos XVIII e XIX. Não existiam de antemão como “projeto político próprio”. A classe operária precisou construir seus projetos e lutar por eles, e no processo incorporou segmentos decisivos das classes médias emergentes, sobretudo a partir do final do século XIX (que não está no livro de Thompson, obviamente, sua análise termina nos anos 1830). Mesmo a ideia de uma consciência de classe dotada de conteúdos homogêneos e indisputados caiu por terra, já que diferentes partidos políticos passariam a competir pelo voto e pelo engajamento dos trabalhadores, tornando-se eles mesmos (os partidos) agentes da construção de interesses e identidades, de tal modo que a consciência da classe operária passou a ser mediada pela dinâmica política eleitoral. E a classe, com o passar do tempo, tornou-se mais heterogênea e múltipla, como reconheceu, por exemplo, Friederich Engels (s.d.p. [1895]), o que o levou a considerar a via eleitoral (e social-democrata) como alternativa à revolução no acesso ao poder pelo proletariado.
Em terceiro lugar, porque as gerências autoritárias identificadas por Saes ficaram, ao menos idealmente, no passado. Os novos ambientes de trabalho dependem da cooperação de todos, inclusive subalternos, na execução não de produtos, mas dos projetos horizontalmente integrados etc. A luta de classes na fábrica e na empresa contemporânea já não é a mesma de 40 anos atrás, como mostraram Boltanski e Chiapello (2002). E por fim, é incontestável que segmentos das classes médias compuseram as bases das esquerdas em todo o mundo, inclusive o Brasil, estando, por exemplo, na vanguarda da luta contra a ditadura militar, incluindo a luta armada (Reis Filho, 1989; Ridenti, 2010), e sendo bastiões inequívocos dos estados de Bem-Estar em todo o mundo (Przeworski, 1989; Korpi, 1983).
Proponho aqui que ao menos alguns segmentos claramente identificáveis das classes médias se têm afirmado na esfera pública, ao longo de nossa história recente, com projetos políticos solidamente assentados em seu modo de inscrição na estrutura de classes e em seu etos coletivo. O mais articulado desses projetos, sustentado por setores politicamente mais coesos daquelas classes, não teve e não tem compromissos com a superação das desigualdades sociais e o caráter excludente da dinâmica capitalista nacional. Muito ao contrário. Ele se alimentou e se alimenta das desigualdades, as valorizou ao longo da história e se contrapôs com veemência a projetos alternativos. Um projeto propriamente conservador, assentado em estilos de vida e concepções de mundo próprios, ancorado numa ética burguesa do trabalho de tipo weberiano, liberal, individualista, meritocrática e elitista. Outro projeto, também claramente identificável em diferentes conjunturas, teve por base ideias como igualdade, solidariedade e justiça social, podendo ser nomeado progressista, com raízes também em estilos de vida e concepções de mundo próprios. Em seu lastro, encontra-se uma ética do trabalho assalariado, fruto das lutas sociais do século XX, de que foram protagonistas, primeiro, o operariado, e depois, frações das classes médias em processo de crescimento, sobretudo as classes médias baixas dos serviços e aquelas vinculadas ao serviço público e às atividades culturais e intelectuais, que constituíram, ao lado da classe operária, as bases de sustentação dos estados de Bem-Estar no ocidente e também no Brasil. As frações de classe que deram sustentação a esse projeto nunca tiveram a mesma coesão das que serviram e ainda servem de base ao projeto conservador. O próprio projeto tampouco teve unidade interna, variando muito ao longo da história, sendo mais ou menos radicalmente igualitarista, mais ou menos democrático, mais ou menos libertário segundo as diferentes quadras históricas analisadas aqui. Mas conjunturas específicas, que denomino “momentos serendípicos” de nossa dinâmica social e política, transformaram os dois projetos, pela radicalização e polarização da luta de classes características desses momentos, em polos de atração de outros, mais ou menos claros, mais ou menos explícitos, formulados por outras coletividades, tais como frações de classe, movimentos sociais e partidos políticos, polarização e radicalização que pressionaram o ordenamento político e institucional mais geral, resultando em soluções de continuidade e redefinições dos rumos do incessante processo de construção estatal e das instituições de mediação do conflito de classes no país. A tese central deste livro é a de que as classes médias foram agentes decisivos, obviamente não únicos e nem sempre os mais importantes, nesses momentos cruciais nos quais os destinos da nação estiveram em disputa pelas classes sociais e seus representantes. (continua).
Editora FGV