Arquivo de Setembro 2022

  • Postado por editora em em 30/09/2022 - 15:07

    Os estudos que compõem este livro pretendem pensar o arquivo e a história do cinema por meio dos outros filmes, explorando caminhos que, partindo da heterogeneidade e irredutibilidade das imagens em movimento, nos podem levar em várias direções. O arquivo liga-nos aos passados que vingaram
    no presente, mas também aos que o falharam e que agora reemergem, inspirando novas obras e pesquisas.

    Para marcar o lançamento desta obra, vamos promover um bate-papo com a presença de Thais Blank, professora da FGV CPDOC, Patricia Machado, professora da PUC Rio, Leandro Pimentel, professor da UERJ e Celso Castro, professor da FGV CPDOC, que possuem textos nesta publicação, na Blooks Livraria, dia 27/10, às 19h.

    Confira a introdução da obra:

    Os arquivos de imagens em movimento vistos à luz dos outros filmes: perspectivas de análise e desafios

     

    Esse livro resulta do trabalho desenvolvido ao longos dos últimos oito anos no âmbito do Grupo de Trabalho (GT) Outros Filmes, da Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento (AIM). O GT foi criado em 2013 e encontrou nos Encontros da AIM um espaço regular de apresentação e discussão das pesquisas (muitas vezes preliminares ou ainda em curso) dos seus membros. Inicialmente, moveu-nos uma inquietação: como pesquisadores interessados pelas imagens não canônicas do cinema, percebíamos que existiam poucos espaços institucionais onde podíamos compartilhar nosso trabalho e percorrer juntos novos caminhos de pesquisa. Em um primeiro momento o uso do termo outros filmes causou um certo estranhamento. Que filmes seriam estes? De que seria composta essa alteridade do cinema? O que uniria essas imagens nesse guarda-chuva da alteridade? Alteridade constituída em relação a quem? Para haver o outro é preciso haver também um ponto de vista hegemônico; que hegemonia seria essa?

    Ao longo desses anos, nos encontros do GT, mas também nos trabalhos que fomos desenvolvendo, paralelamente à AIM, em várias geografias (Portugal, Brasil, França, Espanha), esses questionamentos foram tomando forma. Passado esse tempo, podemos afirmar que o campo dos outros filmes constitui-se como um campo de pesquisa interdisciplinar voltado para objetos fílmicos que possuem em comum a marca de terem sido excluídos das grandes narrativas e da historiografia clássica do cinema. Filmes institucionais, filmes turísticos e de atualidades, imagens amadoras e de câmara de vigilância, filmes científicos e com fins didáticos são exemplos de imagens que ficaram à margem dos estudos cinematográficos tradicionalmente centrados no filme de autor, na ficção e nos formatos de longa-metragem. Podíamos falar de muitos outros (como os filmes de animação ou publicitários), mas os trabalhos que nos chegaram não cobriram o amplo leque de possibilidades que se abre a esta profícua via de análise. Desde cedo, foram três os objetos de estudo que se destacaram nos nossos fóruns: os filmes (de) amadores (e, em especial, os filmes de família); as atualidades filmadas (também conhecidas por “cinejornais”); e os filmes de tipologia variada (documentário ou ficção) que recorrem ao arquivo para se apropriarem de imagens aí existentes, conferindo-lhes novos significados e oferecendo-lhes uma nova vida. Como veremos, esta preferência ou incidência investigativa encontra-se amplamente refletida na organização e nos conteúdos deste livro.

    Ao longo dos últimos anos tornou-se igualmente evidente que os outros filmes, como campo de investigação, possuíam sua própria história. Uma história, como não podia deixar de ser, muito anterior a 2013. As atualidades filmadas, bem como as imagens amadoras, remontam aos inícios do cinema, perdendo-se nesse “caldo” cultural híbrido e intermedial que antecedeu o “segundo nascimento” do cinema como uma instituição — para adotar a tese de André Gaudreault e Philippe Marion. A formação dos primeiros arquivos de imagens em movimento, em meados da década de 1930, bem como da Fédération Internationale des Archives du Film (FIAF), pouco tempo depois, tornaram possível a salvaguarda e conservação de imagens em risco de desaparecimento. O objetivo principal dessas instituições era a troca de cópias, com vista à disseminação de uma história universal do cinema como arte, construída a partir de uma seleção mais ou menos consensual de obras e autores e, consequentemente, da formação de um cânone (Dupin, 2013:44). Mas o sentido de missão patrimonial — muitas vezes aliado ao acaso — acabou por resultar também na recolha e coleção de um outro tipo de imagens — as de não ficção — que cedo se constituíram como uma parte numericamente significativa dos acervos.

    A história da formação e consagração dos estudos de cinema requereria uma seção à parte, que não nos compete aqui fazer, mas é importante sublinhar que essa história se desenvolveu, em grande parte, longe dos arquivos — já para não falar das imagens menores aí guardadas. Os cinejornais representam, de certo modo, um caso à parte. Frequentemente ligados a contextos de guerra e revolução, os cinejornais atraíram desde cedo a atenção de historiadores, cientistas políticos e estudiosos da comunicação, quer pela historicidade que lhes é inerente como testemunhos de uma época, quer pelos usos políticos e ideológicos a que se encontram igualmente associados. História e propaganda (e a relação de ambas com o cinema) têm sido, pois, os principais vetores de análise dos cinejornais. Mais recentemente, assistimos à multiplicação de iniciativas, dispersas por diferentes países e centros de investigação, que buscam chamar atenção para a necessidade da crítica e da história do cinema incorporarem em suas narrativas as imagens de não ficção, não canônicas ou marginais. Nos anos 1990, surge, no contexto anglo-saxão, a discussão em torno dos filmes órfãos, cujos autores são desconhecidos e sobre os quais não são investidos poderes e saberes que garantam sua durabilidade nos arquivos ou na história do cinema. No final da mesma década, são publicados os primeiros trabalhos do francês Roger Odin (1995) e da americana Patricia Zimmermann (1995) sobre o cinema amador. Na França, no mesmo período, foram criadas as primeiras Cinematecas Regionais, interessadas em salvaguardar a cultura local, que acabaram por se configurar como centros de preservação do cinema marginal ou não profissional. Dois outros momentos merecem uma menção, ainda que breve: em 1994, teve lugar, no Nederlands Filmmuseum de Amsterdã, um seminário sobre os primeiros filmes de não ficção da história do cinema; e em 1997, foram iniciados os trabalhos na National Film Preservation Foundation, que assumiu como missão “salvar os filmes americanos que provavelmente não sobreviveriam sem investimento público”.

    Os interesses acadêmico e arquivístico pelas outras imagens têm vindo a alimentar-se mutuamente. A academia passou a produzir teorias e métodos de abordagem para esse cinema que se encontrava, até então, à margem, e os arquivos audiovisuais começaram explicitamente a incorporar em suas agendas de trabalho a missão de salvaguardar e patrimonializar imagens entendidas por muitos como descartáveis. Assim, desenvolveram-se novos aportes teóricos e metodológicos concomitantemente a novas formas de pensar o arquivo, à criação de novos arquivos e — não menos importante — ao acesso de cada vez mais pesquisadores aos arquivos. As pesquisas desenvolvidas no âmbito do GT Outros Filmes são um produto de todas estas movimentações que afetaram, com diferentes graus de intensidade, os mundos acadêmicos e arquivísticos, no que às imagens em movimento dizem respeito, de Portugal e do Brasil. Nos diversos encontros em que participamos, foi evidente a necessidade de realizar uma reflexão profunda, não só acerca das imagens de arquivo que nos interessavam, mas também do próprio arquivo, entendido como um espaço para fora do qual as imagens se lançam em percursos migratórios. A trajetória dos outros filmes está intimamente ligada à história dos arquivos audiovisuais, pois é, em geral, no seio deles — arquivos públicos e privados — que essas imagens sobrevivem. É também no encontro com o arquivo que as imagens ganham novos sentidos, seja pela mão dos pesquisadores seja pela mão dos cineastas, como veremos.

    As pesquisas que integram o GT Outros Filmes, e que compõem este livro, interrogam as imagens a partir não apenas de um ponto de vista estético, mas também da sua materialidade, encarando-as como imagens sobreviventes e migrantes que resistem, apesar de tudo, às ações humanas e do tempo. Como indica Stuart Hall (2016), a “política das imagens” é uma política da representação, num campo onde os sentidos (pessoais, sociais, políticos) estão em permanente disputa. Mas ela é, também, uma política de seleção de visibilidade e permanência — nos arquivos como na história do cinema. Os estudos que compõem este livro propõem revisitar o não canônico, pensar novos objetos e, a partir deles, pensar novas formas do fazer histórico e cinematográfico. Ao revelar as imagens na sua mais crua materialidade, o arquivo acaba também por revelar os limites elásticos e porosos do cinema — esse fenômeno social tão difuso quanto criativo que nos traz ecos de tempos e vidas que já passaram, mas que continuam a assombrar-nos como fantasmas que conosco coabitam.

    O livro divide-se em três partes. A primeira parte, intitulada Outros arquivos, outros filmes, outras histórias, inclui três capítulos que abordam dois tipos de outros filmes — filmes de atualidades, nos dois primeiros casos, e filmes amadores, no terceiro caso — para com eles (re)visitar aspectos da história do Estado Novo português e de dois impérios coloniais, o português e o francês. A abrir a seção, Sofia Sampaio propõe uma leitura empírica das atualidades produzidas para o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN/SNI), nos primeiros anos do Estado Novo. Trata-se da série Jornal Português: Revista Mensal de Actualidades, recentemente editada em DVD pela Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, onde as imagens se encontram depositadas e preservadas. A autora socorre-se da sociologia da cultura e da teoria da comunicação para desenhar um retrato mais fino das relações que se estabeleceram, nesse período, entre o campo cinematográfico e o campo político. Um dos objetivos do texto é devolver ao cinejornal seu estatuto de objeto cinematográfico, reatando-o com a história do cinema (nomeadamente, com o “cinema de atrações”) e resgatando-o a uma tradição de análise cujo enfoque tem sido predominantemente propagandístico. No segundo capítulo, o historiador Marcos Cardão analisa as Atualidades de Angola, produzidas, entre 1957 e 1974, pela seção de publicidade da Direção dos Serviços de Fazenda e Contabilidade de Angola e, a partir de 1959, pelo Centro de Informação e Turismo de Angola (Cita). Num texto que lança algumas notas sobre os desafios do trabalho de investigação em arquivos audiovisuais, o autor seleciona um conjunto de temáticas — o turismo, os lazeres e entretenimentos, os rituais de Estado, certos núcleos de “modernidade” (indústria, planeamento urbanístico, arquitetura, meios de transporte, consumo) — para discutir a “viragem luso-tropical” que marcou o colonialismo tardio português. Não obstante seu papel como caixa de ressonância do poder colonial, Cardão conclui que as Atualidades de Angola “pouco fizeram para validar os postulados do excecionalismo português”.

    No capítulo seguinte, Beatriz Rodovalho aborda três coleções do fundo amador do Forum des Images, para analisar filmes do cirurgião-dentista e cineclubista Charles-Henri Leclerc-d’Orléac; do funcionário público, também cineclubista, Michel Guyot; e de um casal de professores, Alain e Janine Cachia (ele franco-tunisino, ela bretã). Do primeiro, a autora destaca “um filme de viagem peculiar”, que relata a viagem do cidadão francês à Costa do Marfim, em 1958, por ocasião da geminação da sua cidade com uma outra costa-marfinense. A_Proposito_Outros_Filmes.indd 11 04/08/2022 14:41:53
    Rodovalho vê nestas imagens exemplos de um “olhar etnocêntrico”. Já nos filmes de família de Guyot, que mostram as viagens do cineasta amador à Martinica, entre 1969 e 1998, em visita à família da sua esposa, a autora reconhece a capacidade de “ultrapassar fronteiras históricas e transitar pelo espaço simbólico da alteridade”. Por fim, numa análise de maior fôlego, que abarca vários filmes de viagem que a família Cachia realizou entre a Tunísia, a França e o Madagascar, durante as décadas de 1960 e 1970, e que se beneficiou do testemunho (recolhido por e-mail) do cineasta amador, a autora deslinda várias dimensões do filme doméstico — a dimensão mnêmica de “álbum de família”; a dimensão epistolar, de “filme-souvenir”; a dimensão relacional, ou mesmo territorial, em que a câmara amadora se torna um instrumento de construção de “territórios geoafetivos”.
    Ainda que partindo de áreas científicas distintas, quer Cardão quer Rodovalho interrogam o papel das imagens de arquivo (ou das “fontes audiovisuais”) na produção do conhecimento e da historiografia, vendo nelas um potencial complemento ou contraponto aos “objetos impressos” (no caso de Cardão) e às imagens não amadoras (no caso de Rodovalho). Nos três capítulos, os autores confrontam ausências conspícuas e presenças previsíveis, que carecem sempre da interpretação de quem as vê: é o caso das imagens do público, no Jornal Português; das representações da população negra, nas Atualidades de Angola; e das imagens amadoras que sobrepõem o olhar do visitante francês ao “outro”, em território africano (pós)colonial. Apesar das lacunas e aporias que rodeiam este tipo de pesquisa, os três autores desta seção vislumbram no arquivo de imagens em movimento novas possibilidades para a escrita da história — ou mesmo a possibilidade de uma “contra-história” (segundo Rodovalho).

    É na segunda parte, A circulação de imagens e os usos do arquivo, que reunimos quatro textos sobre um dos principais interesses de pesquisa do nosso GT: a migração de imagens para fora do arquivo e os diferentes sentidos que lhes vão sendo atribuídos ao longo das suas trajetórias no tempo e no espaço. Patrícia Machado começa por abordar a produção e circulação clandestina de imagens militantes produzidas no Brasil de 1968, em plena ditadura militar (1964-85).
    A autora concentra sua análise nas imagens amadoras de dois eventos ocorridos nesse ano, no Rio de Janeiro — as cerimônias fúnebres do estudante Edson Luís e a Passeata dos Cem Mil —, filmadas pelos jovens cinéfilos Eduardo Escorel e José Carlos Avellar. Partindo de filmes que usaram esse material bruto — nomeadamente, noticieros do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (Icaic) e documentários do francês Chris Marker, realizados entre 1969 e 1977 — e cruzando diferentes documentos produzidos em sua órbita, aos quais junta entrevistas recentes, Machado recupera a trajetória de imagens que, por décadas, foram dadas como desaparecidas, numa pesquisa que a leva a percorrer os arquivos das cinematecas em São Paulo e Rio de Janeiro, os acervos televisivos da TV Tupi, e o arquivo da produtora franco-belga Slon/Iskra. A autora acaba por identificar “uma rede de circulação de imagens clandestinas” entre o Brasil, Cuba e França, que promete estimular mais pesquisas do gênero.

    No capítulo seguinte, Maíra Bosi lança mão de uma estratégia semelhante para recuperar o sentido e a trajetória dos filmes de família produzidos em Super-8, entre as décadas de 1960 e 1980, na cidade de Fortaleza, e usados no filme de montagem de Danilo Carvalho, Supermemórias (2010). Por meio da análise da obra e do material bruto, bem como da realização de entrevistas ao realizador, aos cineastas amadores e seus familiares, Bosi propõe pensar a representação de Fortaleza nos filmes originais e a que resulta do filme de Carvalho, focando-se nas tensões latentes nas imagens entre o público e o privado. A autora destaca características que associamos a este tipo de filmes e formato — como o “valor de autenticidade”, em resultado de uma certa “precariedade técnica”, ou o “desejo oculto de sair do âmbito privado” — para analisar o potencial crítico do gesto de retomada que (por meio da montagem e da trilha sonora) confronta o espectador com as mudanças abruptas que acometeram a cidade, em grande parte provocadas por uma especulação imobiliária desenfreada. A partir de várias memórias privadas, o filme oferece, assim, uma memória pública a uma cidade que aparenta não a ter, constituindo-se dessa forma como um “lugar de memória”. O ponto alto do capítulo é, sem dúvida, a análise das imagens de demolição da casa de família da cineasta amadora Bárbara Mendes, cujo depoimento revela elementos que teriam permanecido inacessíveis se a autora se tivesse limitado a uma análise das imagens.
    O capítulo seguinte, de Adriana Martins, debruça-se igualmente sobre os processos criativos de ressignificação de imagens públicas e privadas do passado na criação de memórias subjetivas, familiares e coletivas. O objeto de análise é o filme ensaio autobiográfico de Catarina Mourão, A toca do lobo (2015), que procura reconstituir a história do seu avô, o escritor Tomás de Figueiredo (1902-70), a partir de imagens de arquivo (filmes domésticos e álbuns de fotografia) e outros documentos e objetos. À (meta)reflexão da realizadora sobre cinema, A_Proposito_Outros_Filmes.indd 13 04/08/2022  arquivo, história e memória — elaborada no âmbito quer do filme, quer da tese de doutoramento que o acompanha — a autora acrescenta uma reflexão sobre as políticas da memória e esquecimento do Estado Novo português, onde a apropriação de arquivos assumidamente “lacunares” e a construção de “cartografias da memória” mediante uma prática arquivística e cinematográfica criativa ocupam hoje um lugar central.

    Por fim, no último capítulo desta seção, Leandro Pimentel analisa o processo de migração das imagens no contexto televisivo, a partir do programa A revolução não será televisionada, de oito episódios, exibido pela TV USP em agosto de 2002. O autor demonstra como o coletivo ARNST se apropria de imagens produzidas para outros fins para construir, com a linguagem televisiva, uma narrativa contra-hegemônica. Inspirando-se no trabalho de Cildo Meirelles, Inserções em circuitos ideológicos (1970), Pimentel discute o potencial subversivo de várias estratégias de “interrupção” de práticas mediáticas tradicionais (ex.: a previsibilidade das emissões em direto, a edição em continuidade, o respeito pela quarta parede), que deslocam as imagens para fora dos seus contextos originais (ou convencionais) de produção, a fim de provocar a confusão temporária do espectador e estimular seu sentido crítico.
    Como a seção mostra, o estudo da circulação de imagens e dos usos do arquivo é indissociável das questões da memória. Machado sublinha a “precariedade da memória audiovisual brasileira” e a necessidade de preservar as imagens raras que conseguiram chegar até nós por meio de redes clandestinas de circulação de imagens (nas quais as cinematecas e os festivais de cinema desempenharam um papel fundamental). Ainda que de maneira diferente, Bosi e Martins realçam o papel do cinema amador e dos filmes de apropriação ou “retomada” como instrumentos de preservação e construção de memórias privadas “perdidas” (Martins) ou até “ocultas” (Bosi). Para estas três autoras, dos arquivos e da preservação de imagens depende a construção de uma memória coletiva crítica — seja da violência de Estado da ditadura militar, hoje negada por vastos setores da sociedade brasileira (Machado), seja de um capitalismo selvagem de longa duração com efeitos devastadores para uma cidade e seus habitantes (Bosi), seja ainda das instituições repressivas do Estado Novo, que marcaram — e, até certo ponto, ainda marcam — a vivência pública e privada de inúmeros portugueses (Martins). Já Pimentel encontra uma relação mais ativa e politicamente engajada com o arquivo nas intervenções “artivistas”, que recorrem à “pilhagem” de imagens dos média hegemônicos (como a TV) para expor as ideologias naturalizadas, bem como as práticas visuais e sociais “excludentes e alienantes” (nas palavras citadas de Ana Maria Maia), em que eles assentam. Em alguns destes textos, as escolhas metodológicas revelaram-se determinantes para a pesquisa, destacando-se as entrevistas e (no caso de Bosi) a realização de visionamentos dos filmes com as famílias como estratégias para fazer falar o arquivo.

    A terceira e última parte do livro reúne três textos que analisam as imagens e os arquivos audiovisuais como instrumentos científicos e pedagógicos, trazendo para a discussão alguns dos desafios inerentes a essas abordagens. No primeiro desses textos, Thais Blank reflete sobre sua experiência como coordenadora de oficinas de produção audiovisual que têm como principal objetivo a utilização de material de arquivo na criação de novos filmes. O ponto de partida dessa produção é o acervo de entrevistas de história oral e documentos textuais e iconográficos (imagens fixas e em movimento) do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), especializado na guarda de arquivos pessoais. O capitulo se debruça sobre três documentários que resultaram das oficinas — Almerinda: a luta continua (2015), de Cibele Tenório; A bacharel e o presidente (2015), de Nay Araújo; e As constituintes de 88 (2018), de Gregory Baltz — para pensar os modos de ressignificação das imagens (e do arquivo onde estão depositadas) a partir dos processos de realização destes filmes em contexto de sala de aula. Todos eles “abordam, por diferentes perspetivas, as trajetórias, conquistas e lutas de mulheres que estiveram no centro do poder”. Inspirada nas propostas de Jacques Rancière do cinema como prática emancipatória e nos projetos da Rede Latino-Americana de Cinema e Educação (RedeKino), criada em 2009, Blank defende a ideia de que o encontro entre o arquivo e os diferentes olhares dos participantes das oficinas permite a produção de um local de criação de mundos, onde reside a pedagogia da imagem.
    A busca de um sentido pedagógico para as imagens é um desiderato antigo, como revela o capítulo seguinte, onde Thaís Lara mergulha na trajetória da escritora e professora Ilka Brunhilde Laurito (1925-2012), idealizadora da Cinemateca Infantil e figura central na criação e desenvolvimento do Departamento Infantil da Cinemateca Brasileira. Para a autora, Ilka Laurito projetou o Departamento “para pensar não somente na produção e exibição dos filmes, mas em uma pedagogia para as imagens”, o que faz dela uma pioneira no estudo dos atravessamentos entre cinema, arquivo e educação. Num estudo que cruza documentos de arquivo e entrevistas, a autora traz-nos “uma história não contada” sobre uma vertente do cinema pouco estudada. As principais questões identificadas há mais de 50 anos — a formação de técnicos especializados (nomeadamente, na área da programação); a questão do valor (i.e., do que constitui um “bom” ou “mau” filme); a formação de um acervo adequado; o equilíbrio entre perspetivas nacionais e internacionais — continuam a ser essenciais para pensar o papel das cinematecas nos dias de hoje, como agentes-chave na formação de públicos de cinema que se querem ativos na sua cidadania.

    O livro encerra com um importante capítulo sobre o uso do audiovisual nas ciências sociais. Tendo por base um projeto de pesquisa sobre a memória das ciências sociais no Brasil, Celso Castro e Arbel Griner refletem sobre os desafios e as mudanças que se operaram com a adoção dos registros audiovisuais para a produção de fontes históricas, no âmbito do programa de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (FGV CPDOC). Os autores traçam o histórico desse processo, problematizando seus principais aspectos, entre eles: a resistência a métodos de registro alternativos à gravação em áudio; a falta de familiaridade da equipe com a produção audiovisual; as questões éticas colocadas pela suposta interferência da câmara e pela entrada da dimensão imagética no registro. O projeto veio ampliar o escopo e as possibilidades de um acervo histórico fundado em 1973, que é hoje uma referência internacional, revelando a importância da criação (e preservação) de arquivos que têm “como estrutura central a entrevista”. O capítulo termina com um balanço dos desafios experimentados e aponta para questões futuras associadas à virada digital e ao que ela pode significar no tratamento e na acessibilidade de um acervo que pretende ser “de uso coletivo”.

    Antes de encerrar essa breve apresentação, não podemos deixar de notar os desafios que também nós enfrentamos para produzir este livro. Passaram-se mais de três anos entre sua concepção (quando pensamos, pela primeira vez, em marcar os cinco anos do GT Outros Filmes com uma antologia de textos) e sua publicação. A seleção dos textos foi feita depois de analisadas as propostas submetidas, por convite, pelos membros mais assíduos do GT ou que nele haviam apresentado trabalhos que nos pareciam interessantes para este projeto. Não podemos deixar de agradecer aos oito autores que generosamente nos confiaram seus textos, que gentilmente acederam a reescrevê-los à luz dos comentários dos revisores, que se esforçaram por respeitar nossos prazos e que, muito pacientemente, aguardaram o processo de submissão do manuscrito e responderam às solicitações dos editores, durante a fase de produção. Um sincero e enorme agradecimento é também devido aos membros da comissão científica que leram os textos com atenção e redigiram pareceres com sugestões perspicazes e pertinentes. A comissão científica foi formada por: Carolina Amaral de Aguiar, Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil; Teresa Castro, Université Sorbonne Nouvelle — Paris 3, França; Paulo Cunha, Universidade da Beira Interior, Portugal; Tiago Baptista, Instituto de História Contemporânea (IHC), FCSH-Nova, Portugal; Reinaldo Cardenuto, Universidade Federal Fluminense, Brasil; Lila Foster, Universidade de Brasília, Brasil; Anita Leandro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil; Eduardo Morettin, Universidade de São Paulo, Brasil; Lúcia Monteiro, Universidade Federal Fluminense, Brasil; Manuela Penafria, Universidade da Beira Interior, Portugal; José Quental, Université Paris 8/Institut d’Histoire du temps Présent (IHTP/CNRS)/Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil; Susana Sousa Dias, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Portugal; Robert Stock, Universidade de Konstanz, Alemanha e Rafael de Luna Freire, Universidade Federal Fluminense, Brasil. Sem o contributo de uns e de outros este livro não teria sido possível. O resultado aí está, para ser lido e discutido.

    É nosso intuito, com este livro, contribuir para o avanço e robustecimento do estudo dos outros filmes, dos arquivos de imagens em movimento e das imagens em movimento, em geral, em ambos os lados do Atlântico. Não é demais sublinhar a componente transatlântica que tem acompanhado, desde seu início, o GT, tornando-o um espaço aberto e dinâmico, feito de pontes e partilhas que nos têm enriquecido a todos. Em jeito de conclusão, diríamos que pensar o arquivo por meio dos outros filmes é pensar o cinema com e na história, explorando uma série de caminhos que, partindo da absoluta heterogeneidade e irredutibilidade das imagens em movimento, nos podem levar em várias direções. O arquivo liga-nos aos passados que ajudaram a construir nosso presente — ou que o falharam e foram ficando para trás, esquecidos. Mas também nos liga aos potenciais futuros que, expectantes, aguardam os resultados dos nossos pequenos atos de pesquisa e imaginação.
     

     

    Os arquivos de imagens em movimento vistos à luz dos outros filmes: perspectivas de análise e desafios

    Organizadoras: Thais Blank, Sofia Sampaio

     

  • Postado por editora em em 23/09/2022 - 11:14

    Estamos de volta às feiras de livros presenciais.

    Entre os dias 7 e 9 de outubro, das 10 às 19h, venha nos visitar na Primavera dos Livros do Rio, nos jardins do Museu da República, Catete - Rio.

    Estamos no estande número 6 com diversos livros dos mais variados temas, com mais 57 Editoras.

    O evento cultural incluído este ano no Calendário Oficial da Cidade,  será a maior edição de todos os tempos, com programação cultural intensa e A mulher na política como tema.

     

    Dia 9/10, das 12 às 14h, nossas autoras Fernanda da Escóssia (Invisíveis), Débora Thomé e Hildete Pereira de Melo (Mulheres e poder) participam da mesa Mulheres, poder, políticas públicas, com Renata Costa (candidata a deputada federal nessas últimas eleições) e mediação de Raquel Menezes.

     

     

     

     

  • Postado por editora em em 22/09/2022 - 13:05

     

    O ano de 1922 aglutinou uma sucessão de eventos que mudaram de forma significativa o panorama político e cultural brasileiro. A Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista do Brasil, o movimento tenentista, a criação do Centro Dom Vital, a comemoração do Centenário da Independência e a sucessão presidencial de 1922 foram indicadores importantes dos novos ventos que sopravam, colocando em questão os padrões culturais e políticos da Primeira República. A proposta deste livro é rever como questões cruciais para o país de 1922, após 100 anos, ainda estão ecoando na agenda, no presente.

     

    Confira a apresentação da obra:

    Nos anos 1920, a sociedade brasileira viveu um período de grande efervescência e profundas transformações. Mergulhado numa crise cujos sintomas se manifestaram nos mais variados planos, o país experimentou uma fase de transição cujas rupturas mais drásticas se concretizariam a partir do movimento de 1930.
    O ano de 1922, em especial, aglutinou uma sucessão de eventos que mudaram de forma significativa o panorama político e cultural brasileiro. A Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista do Brasil, o movimento tenentista, a criação do Centro Dom Vital, a comemoração do Centenário da Independência e a própria sucessão presidencial de 1922 foram indicadores importantes dos novos ventos que sopravam, colocando em questão os padrões culturais e políticos da Primeira República. Em meio a tais acontecimentos, foi assinada a criação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1920.
    Passados 100 anos, em 2022 comemora-se o Bicentenário da Independência do Brasil e ao mesmo tempo comemoram-se também vários eventos-chave que marcaram significativamente a história do Brasil.
    A proposta deste livro está focalizada em rever como questões cruciais para o país foram veiculadas no ano de 1922 e, após 100 anos, como ainda estão ecoando na agenda, no presente. Com essa perspectiva, as temáticas relativas às comemorações e memórias assumem um papel importante e nos levam a refletir sobre seus significados em 1922 e como repercutem e são relidos na atualidade.
    Nesse contexto cabe perguntar: o que significa comemorar? Comemoração é a cerimônia destinada a trazer de volta a lembrança de um evento, algo que indica a ideia de uma ligação entre homens e mulheres fundada sobre a memória. Essa ligação também pode ser chamada de identidade.
    E é exatamente porque permitem legitimar e atualizar identidades que as comemorações públicas ocupam um lugar central no universo político contemporâneo. As comemorações em torno de personagens focalizam aniversários de nascimento ou morte. Já os eventos fundadores privilegiam os momentos de fundação de nações, de Estados, instituições, empresas.
    Diante desse quadro, os historiadores procuraram dar respostas que levem em consideração as demandas de memória pela história e, ao mesmo tempo, produzam uma historização crítica da memória. Assim, mesmo reconhecendo o estímulo que a memória dá à história, eles chamam atenção para a função crítica desta última diante da ação inquisitorial da primeira.
    Dessa forma, revisitar os vários eventos e as manifestações de diferentes setores da sociedade brasileira que tiveram lugar em 1922 e nos anos seguintes, estimulados pelo Centenário da Independência, é um caminho instigante para perceber que elementos da memória e da identidade brasileira foram selecionados, exaltados e esquecidos e como agora no Bicentenário estão voltando à tona.
    Alguns pontos de convergência entre essas duas conjunturas podem ser destacados, uma sucessão presidencial marcada por uma crise política e forte polarização, o temor das notícias falsas, a busca de sustentação militar, os efeitos das pandemias e as lutas permanentes pela saúde, educação e combate às desigualdades.
    Apesar dos pontos em comum entre as conjunturas, há também grandes diferenças: a crise política atual e a forte polarização não são, como em 1922, decorrência de embates entre oligarquias que se polarizaram em torno de projetos distintos para o país, pois dizem mais respeito a conflitos entre as classes sociais do país e a polarizações em torno de questões que extrapolam o plano mais estrito da economia. Nesse sentido, a presença de fake news hoje se dá numa escala muito maior do que em 1922, espalhando-se, inclusive, para outros campos além da política, como o da atual pandemia, no que ela também adquire sentidos distintos da pan demia de 1919. Por outro lado, a busca de sustentação militar, em 1922, se defrontava com cisões visíveis nas Forças Armadas, o que hoje não se verifica.
    Com essa orientação este livro reúne 10 trabalhos de 12 autores destinados a revisitar os grandes temas que marcaram 1922 e de forma mais geral a década de 1920.
    O primeiro capítulo, “Sucessão presidencial e crise política em 1922”, apresenta um panorama do contexto político dos anos 1921/22 quando ocorria a acirrada disputa eleitoral entre Arthur Bernardes, apoiado por Minas e São Paulo, candidato da situação, e Nilo Peçanha, da oposição, apoiado pelos estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco. Esse pleito revestiu-se de um caráter especial em consequência da radicalização das duas facções políticas, por meio das tentativas de inviabilização do nome de Bernardes com a divulgação do que poderíamos chamar de fake news da época, as “cartas falsas”, que visavam incompatibilizar o candidato oficial com os militares. O pleito de 1922 ainda buscou mobilizar setores sociais normalmente afastados das disputas eleitorais, setores médios e militares. É nesse contexto que eclodiu a primeira revolta dos tenentes e foi decretado o estado de sítio indicando o clima de conflito que estava marcando as grandes comemorações de 1922.
    O segundo capítulo, de Marly Motta, sobre as comemorações da Independência do Brasil em 1922, tem como objeto de análise as diferentes leituras então feitas sobre a trajetória do país e as dificuldades existentes para que tivesse encontrado seu destino na superação do atraso e para ingressar no concerto das nações modernas. O texto analisa ainda os projetos de futuro desenhados naquele momento, por meio da Exposição Internacional do Centenário visando garantir a inserção do Brasil nos quadros da nova economia mundial do pós-Primeira Guerra.
    O capítulo de Lucia Lippi também focaliza o significado das comemorações do Centenário da Independência elegendo como eixo as relações Brasil/Portugal, o antilusitanismo desenvolvido ao longo das décadas republicanas e em especial a emergência de um forte nacionalismo no país. Um segundo eixo de análise volta-se para o significado da arquitetura como expressão de valorização do passado colonial brasileiro dando origem ao chamado estilo neocolonial que, exibido na Semana de Arte Moderna realizada São Paulo, foi considerado moderno e brasileiro. É importante registrar também o destaque da arquitetura neocolonial dominante em vários pavilhões e eventos realizados na Exposição Internacional do
    Centenário da Independência de 1922. O artigo menciona ainda como as comemorações do Centenário da Independência levaram à valorização e releitura de diferentes passados em São Paulo e no Rio de Janeiro, que deram origem à reinauguração do Museu Paulista em São Paulo e à criação do Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro.
    O quarto capítulo, escrito por Helena Bomeny, dedicado à educação, focaliza os educadores e os debates educacionais que tiveram lugar nos anos 1920. Articulando diferentes temporalidades, o texto retorna aos primeiros tempos da república para estabelecer o quadro desalentador da educação. Em seguida, apresenta as lutas do movimento da chamada Escola Nova nos anos 1920 para chegar aos desafios que continuam em pauta na atualidade.
    No capítulo de Simone Petraglia Kropf e Dominichi Miranda de Sá, “O valor social da ciência e o debate sobre a nação na década de 1920”, o objetivo é analisar as propostas de transformações do trabalho científico e os ideais de reforma social veiculados pela ciência com foco na atuação da Academia Brasileira de Ciências. Partindo da conjuntura comemorativa do Centenário da Independência, o texto recua no tempo para apresentar uma síntese acerca das discussões ao longo da Primeira República sobre o valor da ciência para o progresso nacional e as iniciativas de seus principais cientistas implementadas na década de 1920.
    O capítulo seguinte, de Antonio Augusto Passos Videira, “Ciência e universidade no Rio de Janeiro na década de 1920”, recupera importantes debates travados ao longo da Primeira República sobre a importância da ciência pura voltada para a produção do conhecimento teórico científico.
    Nesse contexto ficam evidenciadas as tensões existentes entre aqueles que defendiam uma abordagem pragmática e utilitarista e os cientistas aglutinados em torno da Associação Brasileira de Ciência, que consideravam que o apoio à ciência pura era a fonte principal de riqueza do país. Para a concretização dessas propostas, era fundamental a criação de universidades onde poderiam ser desenvolvidas políticas científicas consistentes. A luta pela criação da Universidade do Rio de Janeiro visava atingir esses objetivos, mas na prática sua efetivação ficou muito distante daquelas intenções.
    O capítulo sétimo, de Gilberto Hochman, “Depois de uma pandemia: a saúde pública no Brasil nos anos 1920”, tem como objeto as ações governamentais voltadas para enfrentar os problemas de saúde pública no país, especialmente evidenciados com a epidemia da gripe espanhola de 1919. No momento das comemorações do Centenário da Independência em que todos os esforços deveriam estar concentrados em mostrar um país moderno, era fundamental implementar as políticas centralizadoras que por meio do recém-criado Departamento de Saúde Pública atribuíam ao governo federal papel de grande relevância em relação às responsabilidades junto à saúde da população. O artigo chama a atenção ainda para o fato de que, a despeito dos esforços realizados, as expectativas enunciadas durante as comemorações de 1922 não equacionaram os problemas estruturais que caracterizavam a sociedade brasileira, como racismo, desigualdade, mandonismo e violência política. O enfrentamento desses problemas continuaria em pauta ainda por muito tempo.
    O capítulo de Hildete Pereira de Melo e Débora Thomé, “Um olhar de gênero nas comemorações da Independência do Brasil: 1922-2022”, tem como objetivo apresentar um quadro geral das lutas das mulheres pela cidadania no Brasil, tendo como eixo os eventos ocorridos em 1922. Retrocedendo à proclamação da República, as autoras recuperam as lutas feministas por ocasião da Constituição de 1891 para obter o direito de participação política no novo regime e os projetos de lei que pretendiam conquistar a obtenção do sufrágio feminino, ao longo das décadas seguintes. O texto destaca ainda o papel das principais lideranças femininas, especialmente Bertha Lutz, na criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), em 9 de agosto de 1922. Os eventos comemorativos pelo Centenário da Independência do Brasil representaram momentos importantes para ativar as lutas feministas e recolocar em pauta o direito de voto das mulheres.
    O capítulo de Flávio dos Santos Gomes, “Dos ‘negros modernos’: sobre personagens, debates e experiências ausentes, c. 1920, São Paulo”, apresenta um panorama da atuação dos intelectuais negros na década de 1920 por meio da imprensa negra em São Paulo, formada por inúmeros periódicos que defendiam agendas que articulavam narrativas e expectativas de inclusão. Essa militância se tornou especialmente importante considerando as ideias racistas que depois de décadas da abolição continuavam dominantes no cenário político dos anos 1920. As manifestações racistas mostraram-se especialmente chocantes quando, em 1921, emergiram projetos e debates que advogavam promover uma imigração de negros norte-americanos para o país. A reação negativa a essas iniciativas, sob a
    alegação de que uma imigração negra poderia despertar o ódio racial, deixava evidenciado o arraigado preconceito racial e as enormes dificuldades de inclusão da população negra na sociedade brasileira. Numa conjuntura em que estavam em curso eventos políticos e culturais comemorativos pelos 100 anos da Independência do Brasil e ressaltava-se a importância de uma unidade da nação, os negros estariam de fora desse projeto.
    O último capítulo “Tempo, fonografia e o ser moderno com a tecnologia na década de 1920”, de Denise da Silva de Oliveira, procura compreender como era a experiência de escutar som fonográfico há quase 100 anos, quando o fonógrafo e os discos estavam presentes em discursos que buscavam domesticar e institucionalizar essa tecnologia considerada então símbolo da modernidade. No Brasil, o esforço de legitimação da fonografia empreendido por vários atores — de comerciantes a músicos profissionais, de intelectuais brasileiros à Liga das Nações, precursora da ONU — se consolidaria no anseio pela criação de discotecas públicas, cujas bases se encontrariam num ideal de construção de um futuro progressivamente melhor a partir dos avanços tecnológicos vividos no presente, este, de forma ambígua, alicerçado em um passado já bem conhecido e tido como legítimo e mais seguro.
    Com este conjunto de textos, esperamos contribuir para um maior conhecimento da história do Brasil e para as lutas em prol da consolidação da democracia e combate às desigualdades no país.

     

    1922: o passado no presente - permanências e transformações

    Coordenadora: Marieta De Moraes Ferreira