A educação básica sofreu uma série de intervenções nos últimos anos. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores e BNC Formação, o Novo Ensino Médio, a alteração do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), submetendo-o à BNCC, são algumas dessas intervenções. Essa onda normativa, que atingiu os currículos, os materiais escolares e a formação de professores, é justificada, por seus defensores, em razão dos resultados ruins obtidos em avaliações massivas. Vivemos em uma época em que se produzem normativas para a escola sem considerar de fato quem está no dia a dia da sala de aula.
O livro de Renata Augusta Silva chega em boa hora e participa desse debate. A autora se pergunta: a quem cabe formar o(a) professor(a) de história? Para responder, realiza um estudo denso sobre os cursos de licenciatura de três instituições do Rio de Janeiro.
Analisa os currículos, entrevista professores e dialoga com pesquisadores que trabalham com a categoria de saberes docentes e que pesquisam a profissão professor. As várias respostas que dá no livro ajudam a pensar na construção de um ethos profissional.
Convido à leitura. Trata-se de uma boa contribuição para os campos da educação e da história. (Texto de orelha do professor da Unirio Marcelo de Souza Magalhães_).
Confira, a seguir, parte da introdução da obra:
Diálogos com o ensino de história
Nas últimas décadas, houve um crescimento dos estudos sobre o ensino de história. Inúmeras publicações de livros e coletâneas sobre o tema comprovam esse crescimento. Apesar disso, grande parte das pesquisas sobre ensino de história é desenvolvida nos programas de pós-graduação de educação; os programas de história acolhem ainda muito timidamente projetos de pesquisa na área. No Brasil, são poucos os programas de história que possuem como linha de pesquisa o ensino de história.
O campo de pesquisa em ensino da história se tornou, de fato, muito abrangente, abordando temas que, por perspectivas diversas, vão ao encontro dos novos paradigmas de interpretação do passado, dos novos objetos e problemas. Um bom exemplo dessas abordagens são os eixos temáticos estruturados nos últimos encontros nacionais de pesquisadores do ensino de história (Enpeh): currículo e ensino de história, formação de professores e saberes docentes, a formação da consciência histórica, ensino de história nas Américas e das Américas, educação histórica, história da história ensinada, juventude e ensino de história, a cultura escolar, práticas de memórias e espaços educativos, ensino de história e diversidade cultural.
A efervescência desses estudos se deve, em parte, à inquietação de professores de história da educação básica e universitários que têm trabalhado cada vez mais com o propósito de expandir a pesquisa nos programas de pós-graduação em educação e história.
No Brasil, tem sido cada vez maior o número de professores em pleno exercício docente em escolas de educação básica dialogando e produzindo saberes em parceria com pesquisadores da educação superior. Autores como D. Schön (1995), T. Popkewitz (1995) e A. Nóvoa (1995) apontam para a necessidade de o professor integrar em seu fazer pedagógico a ação e a reflexão para conseguir desvendar a complexidade do seu trabalho.
Essas pesquisas contribuíram enormemente para mudar o perfil do trabalho docente em sala de aula. Numa relação dialética, uma geração de professores de história influenciou e foi influenciada por esses trabalhos. O ensino de história mudava, ganhava novas cores e contornos. De maneira geral, as pesquisas do campo do ensino de história se direcionavam ao saber histórico escolar. Eram poucos os estudos sobre a formação inicial dos professores nos cursos de história. Apesar do avanço desse debate, ainda costumamos ouvir de professores com muitos anos de magistério como foi difícil a entrada na profissão e as dificuldades que até hoje enfrentam em seu cotidiano. Entre as muitas dúvidas que esses professores carregam está a questão de como mobilizar tudo que aprendemos na universidade no cotidiano em sala de aula. Quais as relações entre saber acadêmico e saber escolar? Como a formação inicial nos ajuda a construir uma profissionalidade docente? Como e quando de fato nos tornamos professores de história?
O aquecimento do debate a respeito das questões de ensino vem acompanhando as mudanças ocorridas na história recente do país. As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela redemocratização. A vitória de partidos de oposição à ditadura civil-militar pareceu um momento propício para iniciar um processo de revisão curricular. Era necessário resgatar o papel da história no currículo, da disciplina escolar e também da formação do profissional docente, antes, de certa forma aprisionados pela licenciatura curta em estudos sociais.
Na década de 1990, o esforço do MEC, em conjunto com o Conselho Nacional de Educação (CNE), se dirigiu no sentido de formular diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio, a educação profissional de nível técnico e a formação de docentes, em nível médio, na modalidade normal.
Nesse contexto houve a reestruturação dos cursos de graduação em história. Essas mudanças estavam sendo influenciadas pelo debate internacional no campo da historiografia. Nas universidades brasileiras, os currículos das licenciaturas em história estavam sendo reformados. O tema de discussão nos departamentos de história era a renovação metodológica do ensino e da própria pesquisa historiográfica. As maiores influências vieram da história social inglesa, da nouvelle histoire, originada dos Annales e da Escola de Frankfurt. Surgiam novas questões, novas fontes, novos métodos e novas abordagens (Fonseca, 1993).
No início dos anos 2000, o foco das políticas públicas se direcionou para a educação superior com a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação e das Diretrizes Curriculares Nacionais da Formação de Professores da Educação Básica em nível superior. Os currículos dos cursos universitários deveriam passar pelas reformulações apontadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (Magalhães, 2006). A resolução CNE/CP no 1, de 18 de fevereiro de 2002, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores de Educação Básica (DCNFP), em nível superior, seria a base para a mudança dos cursos de licenciatura.
O direcionamento para a reestruturação das licenciaturas estava dado. O final dos anos 1990 e o início dos anos 2000 foram marcados por intensos debates entre os historiadores. Esses debates relacionavam-se com as lutas dos historiadores contra as licenciaturas curtas e, paralelamente, com o impulso da profissionalização da pesquisa historiográfica. A primeira versão do texto das diretrizes de história foi feita por Ciro Flamarion Cardoso, Elizabeth Canceli e Margareth Rago. Nesse texto, fica evidente a indissociabilidade entre pesquisa e ensino, tendo como pressuposto que para ensinar história é preciso conhecer como se constrói o conhecimento na área. A resolução CNE/CES no 13, de 13 de março de 2002, estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de História (DCNH), em que são definidas, entre outras coisas, as competências e habilidades gerais e específicas para os cursos de licenciatura em história.
Diante desse cenário de mudanças, nas duas últimas décadas observamos o crescimento de pesquisas que têm buscado estudar a formação de professores de história. Recentemente, Caroline Pacievitch (2018) construiu um panorama desses estudos e apontou, como um primeiro aspecto, que raramente essas pesquisas são defendidas em programas de pós-graduação em história. Os programas de educação lideram esses trabalhos. Suas conclusões também revelam que os problemas das pesquisas normalmente giram em torno de: como se organizam os programas e projetos de formação inicial ou continuada de professores de história; as relações entre teoria-prática e ensino-pesquisa; e como os professores de história da educação básica constroem e mobilizam seus saberes. Elas sugerem alguns aspectos que ainda estariam em aberto e que precisariam ser mais explorados em futuras pesquisas. Entre eles está a construção de problemas de pesquisa que busquem reconhecer as tensões entre ensino-pesquisa e teoria-prática, sob novas formas de definição e compreensão. Além disso, a autora aponta a necessidade de investigar elementos ainda pouco explorados, como a investigação da formação docente cada vez mais com professores de História e com formadores de professores, incluindo principalmente as práticas pedagógicas destes últimos, um dos elementos menos explorados nas pesquisas da área [Pacievitch, 2018:28].
Pensando sobre essas questões, entendemos que tais reflexões são de grande importância e apontam para o que ainda precisa ser explorado nos estudos sobre formação de professores de história.
O desafio neste livro é buscar compreender os processos de reelaboração curricular que envolveram uma complexa relação entre as políticas públicas, os cursos de história e os professores desses cursos. Analisamos os cursos de história de três instituições públicas de ensino superior do Rio de Janeiro: Unirio, UFRJ e Uerj/FFP. A escolha dessas universidades se relaciona com o fato de possuírem cursos de história consolidados e com perfis diferentes. O curso de história da Unirio surgiu no início dos anos 2000, no contexto dos debates sobre a elaboração das diretrizes, fato que contribuiu para que grande parte de seu currículo fosse construído de acordo com as novas políticas. O curso da Uerj/FFP, do campus de São Gonçalo, criado nos anos 1990, tem como especificidade ser uma licenciatura, sem que a unidade ofereça também o curso de bacharelado. O curso de história da UFRJ é o mais antigo e ainda se encontra em fase de reestruturação.
Para compreender esses processos, o capítulo 1 do livro percorre a história de construção dos espaços de formação de professores no Brasil, que dialogou com as demandas da educação básica e com as políticas educacionais ao longo do período republicano. Os pareceres e diretrizes curriculares do final dos anos 1990 e início dos anos 2000 foram o foco de nossa análise. A documentação oficial definia os principais aspectos para a construção dos paradigmas desejados para a formação de professores no Brasil.
Nesse momento, ocorre a elaboração das Diretrizes Curriculares dos Cursos de História, alvo de intensos debates. O perfil que teriam os cursos de história estava no centro dessa discussão, que envolvia comissões de professores de todo o Brasil, a Anpuh e o MEC.
A chamada “briga das diretrizes” relaciona-se com as diferentes expectativas para os currículos de graduação e é entendida aqui como uma disputa na construção de um novo ethos de formação nos cursos de história.
A contextualização do debate travado por historiadores e associações em torno da elaboração das diretrizes nos conduziu para a construção da seguinte hipótese: as mudanças curriculares propostas acabaram por descortinar e trazer para a ordem do dia a necessidade de construir ou manter determinado ethos acadêmico, ou ethos de formação, que muitas vezes poderia estar em conflito com aquele desejado pelos sujeitos envolvidos na elaboração das políticas públicas.
Em outras palavras, de alguma forma estariam sendo disputados entre os sujeitos envolvidos nos contextos de produção e de prática uma representação de formação ou de professor formador e também um modelo de professor de história, pautados fortemente pelo discurso da indissociabilidade entre ensino e pesquisa.
A investigação sobre os saberes relacionados à docência nos cursos de história é o foco do capítulo 2. Este olhar sobre as docências universitárias foi motivado pela percepção de um estranhamento que muitos professores de história sentem no exercício de seu trabalho em sala de aula na educação básica. Para isso, proponho uma análise e um debate em torno do que chamamos de razão pedagógica dos cursos de graduação. A quem caberia formar um professor? Qual a intencionalidade da prática do docente universitário e o papel das disciplinas específicas neste processo? Tais indagações seriam alguns dos fios condutores da análise. Além das especificidades das disciplinas e de seus objetivos, é importante perceber as práticas epistemológicas que estariam definindo um determinado perfil de formação.
O capítulo 3 analisa os percursos de formação de três cursos de história (Unirio, Uerj/FFP e UFRJ) a partir dos projetos pedagógicos, manuais, ementas e também de entrevistas feitas com professores, diretores e coordenadores. O processo de interpretação das políticas e reelaborações dos currículos foi marcado por debates e tensões, avanços e, em alguns casos, imobilismos que se arrastam até hoje. Não se tratava de uma simples adaptação ou não a uma legislação. Em nosso entendimento, as estratégias e os silenciamentos que estiveram relacionados aos processos de elaboração dos currículos dos cursos estariam contribuindo para a construção e consolidação de um determinado ethos de formação.
Para compreender essa primeira etapa de formação ligada aos saberes disciplinares, é preciso analisar, além da construção curricular dos cursos de formação, o papel e a atuação do docente universitário e das disciplinas específicas que comporiam o chamado núcleo comum nos cursos de história; investigar um pouco mais os aspectos do chamado saber disciplinar ou domínio científico de uma determinada área do conhecimento que se daria, nesse primeiro momento de formação, nas licenciaturas em história.
As entrevistas com os professores universitários responsáveis pelas disciplinas específicas de história (do Brasil, moderna, contemporânea, antiga etc.) foram fundamentais nesse processo de compreensão. Importava saber como esses professores pensam a formação de seus alunos e como dialogam com as propostas curriculares do curso.
Os questionamentos giraram em torno de perguntas fundamentais para essa compreensão, por exemplo: como esses professores constroem seus cursos sabendo que em suas turmas estão matriculados, ao mesmo tempo, licenciandos e bacharelandos, pois a oferta das disciplinas, na maior parte dos cursos de história, contempla as duas formações? Que mudanças teriam ocorrido com a instauração da terminalidade própria das licenciaturas? E ainda, qual seria o papel dessas disciplinas específicas na formação? Estas e outras questões buscaram analisar o que esses professores estavam entendendo sobre o processo de formação de um professor de história e as relações entre suas práticas docentes e o ensino de história. Importava percebê-los não como sujeitos de práticas individuais, mas, sim, como sujeitos professores formadores inseridos em uma coletividade, organizados dentro de uma institucionalidade regida por regras próprias internas e externas, marcados por questões históricas e sociais. Todos esses aspectos estariam envolvendo a construção de um determinado ethos de formação, com características bem definidas.
Autora: Renata Augusta dos Santos Silva