"É muito oportuna a iniciativa de publicar esta obra de Carmen Fonseca, fazendo assim chegar aos estudiosos brasileiros uma análise inteligente e criativa sobre a política externa do governo Lula. O texto se baseia em uma pesquisa completíssima sobre os documentos e a literatura acadêmica daquele período. Nada ficou de fora".(Trecho da orelha da obra pelo Embaixador Gélson Fonseca Jr.)
Confira parte da introdução:
Durante a primeira década do século XXI foram frequentemente recuperadas expressões como “o Brasil é o país do futuro” para se afirmar que, afinal, o futuro do Brasil tinha chegado, conforme registraria em 2011 o presidente norte-americano, Barack Obama, em visita ao país. Entre acadêmicos, analistas e políticos tornou-se relativamente consensual a ideia de que, ao ter adquirido prestígio e protagonismo internacional e ao ser reconhecido como um país emergente, o Brasil alcançava finalmente um estatuto internacional relevante (Prada, 2010), ou, nas palavras dos membros do governo, o lugar e o reconhecimento que lhe era devido.
Afirmações deste tipo encontravam justificação em episódios como quando, em 2005, o Brasil liquidou antecipadamente o empréstimo que tinha com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O ato teve um significado com repercussões ao nível da política interna e ao nível da credibilidade internacional do país — depois de vários anos a depender daquele organismo, o Brasil conseguia, finalmente, emancipar-se num momento em que se esforçava por emergir no sistema internacional. Este ato foi complementado com a inversão de papéis na relação com o Fundo, quando, em 2009, o Brasil aprovou um empréstimo de 10 mil milhões de dólares ao FMI, reforçando a tentativa de alterar a sua relação e o seu posicionamento no sistema internacional.
Internamente, o país registrou transformações significativas. Foram implementadas políticas sociais que permitiram uma melhoria das condições de vida de milhões de brasileiros. Contudo, a elite política, incluindo o presidente, continuou a ser alvo de frequentes escândalos de corrupção, persistindo a questão sobre se o Brasil seria um “país sério”.
Com efeito, não tardaram as tentativas, umas mais fundamentadas do que outras, para definir e categorizar, teoricamente, o Brasil: potência emergente, potência média, potência regional, potência global, líder regional — foram algumas das definições que proliferaram nos últimos anos.O desenvolvimento econômico alcançado pelo país contribuiu para aquelas tentativas, criando-se, em nível internacional, uma atração singular pelo país. Análises sobre o país fizeram capa de conceituados jornais e revistas internacionais, como o The Economist, a Times ou o Financial Times. Do mesmo modo, a elite de política externa, nomeadamente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (daqui em diante, Lula) e o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim foram eleitos figuras internacionais influentes.
Se é evidente a relação do desenvolvimento econômico com o salto internacional dado pelo Brasil, qual é a relação entre essa emergência internacional e a estratégia de política externa implementada? Quais as ações de política externa que promoveram ou atrapalharam essa emergência? Como se traduziu na política externa o desenvolvimento econômico do país?
A temática aqui abordada suscita ainda o papel da identidade e da autoimagem de um Estado na formulação e nos resultados alcançados pela política externa — como vê o mundo e se define perante ele? No caso do Brasil, a sua própria identidade tem sido marcada por um dilema, ou pelo menos por uma dualidade, que tem a ver com a pertença do Brasil a vários espaços. Nas palavras do antigo ministro Celso Lafer, essa dualidade está relacionada com a sua participação em “numerosas esferas de convívio internacional. É um país ocidental no campo dos valores, em função de sua formação histórica, realidade que não excluía a sua inserção entre os países do Terceiro Mundo” (Lafer, 2002:42). Deste modo, o que significa a região e o mundo para o Brasil em termos definidores da sua identidade? De que forma o Brasil articulou essa sua pertença com a ambição de desempenhar um papel relevante no sistema internacional?A especificidade brasileira relacionada com “as origens complexas da identidade internacional do Brasil” (Hurrell, 2008:53) — decorrente do processo de descolonização europeu assim como da herança do colonialismo e da pobreza — contribuiu para que o Brasil tenha desenvolvido uma “dupla inserção” (Lafer, 2002:42) internacional. Para Hurrell (2008:53), “esta dualidade permaneceu um importante elemento das discussões brasileiras sobre o lugar onde o Brasil ‘encaixa’”. Simultaneamente, “o Brasil articula uma identidade sul-americana com uma identidade mais globalista que se reflete na sua relação com a África do Sul, a China, a Índia e a Rússia” (Merke, 2008:152). Ainda de acordo com Lafer, “para o Brasil, a América do Sul não é uma opção, é, sim, para falar com Ortega y Gasset, a ‘circunstância’ do nosso eu diplomático” (Lafer, 2002:52). A América do Sul “passou a ser uma constante, uma ‘força profunda’, da política externa brasileira” (Lafer, 2002:52).
Deste modo, a política externa do Brasil tem refletido as tentativas de definição da sua identidade internacional que deriva das múltiplas identidades que ao longo dos tempos o país foi agregando (entre o Terceiro Mundo e as potências industrializadas). A dupla identidade do Brasil influenciou a formulação de uma política externa também ela dupla? — orientada para a região e simultaneamente para o mundo.
Como fica evidente, o Brasil não encaixa facilmente nas diferentes categorias formuladas para hierarquizar os Estados, ao mesmo tempo, a sua política externa tem revelado, ao longo dos tempos, algumas vulnerabilidades semelhantes à fragilidade estrutural do país, da qual as desigualdades sociais e os níveis de pobreza são exemplos. Ora, o Brasil tanto é definido enquanto Potência Média tradicional como enquanto Potência Média Emergente (i.e., Potência regional) (Jordaan, 2003). Todavia, conforme a evolução histórica da política externa do país vai destacar, o Brasil tentou, por diversas ocasiões, não ser um Estado subordinado, mas desenvolver uma política externa que algumas vezes questionou a sua associação aos países do Terceiro Mundo ou em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o intervalo temporal em análise reflete a tendência de reorganização do sistema internacional a qual foi um potencial contributo para que os próprios Estados, bem como outros atores, procedessem a ajustes na sua ação externa.
A análise apresentada visa avaliar se a política externa de Lula foi uma política externa de transição do estatuto internacional do país, influenciada pelo desenvolvimento interno e pelas transformações internacionais. Estudar a influência das decisões e estratégias de política externa obriga a que seja feita uma leitura que interrelacione os elementos que compõem cada um dos níveis da política externa: atores, processos, resultados. Como aliás Jackson e Sorensen referem, a política externa de qualquer país é um tema complexo que apenas pode ser totalmente compreendido através da análise cuidadosa de fatores políticos, econômicos, psicológicos e outros que funcionam quer entre os atores quer entre os grupos de atores no nível interno e nos padrões de relações internacionais que definem o contexto da política externa. [Jackson e Sorensen, 2008:227]
Mas qual a relação que se pode estabelecer entre a política externa e a emergência de um Estado? Quais os fatores que tradicionalmente têm estado na base dessa emergência? Neste estudo admite-se que a política externa é um processo sujeito a diversos condicionantes — proveniente do nível interno, do nível internacional e dos atores. Será possível avaliar qual que teve mais peso na formulação das estratégias externas com vista à emergência do Brasil?
Desta forma, a análise feita ao longo dos capítulos seguintes comporta elementos das teorias das relações internacionais, em particular do realismo neoclássico e do construtivismo. De acordo com os realistas neoclássicos, a formulação de política externa sofre pressões do ambiente interno, do sistema internacional e dos atores. Enquanto teoria de política externa, o realismo neoclássico é útil porque conjuga a influência das variáveis sistêmicas e internas. Embora desenvolva também um enfoque no poder relativo dos Estados, considera que não há uma relação direta entre as capacidades materiais e o comportamento de política externa, importa mais a percepção de poder relativo tida pelas elites políticas, ou seja, quem faz as escolhas. Por conseguinte, com base na abordagem construtivista, analisa-se o reflexo da autoimagem e da identidade internacional do país na formulação da sua política externa bem como na sua emergência internacional.
O livro, dividido em quatro capítulos, começa por caracterizar a política externa brasileira nas suas diferentes dimensões. É apresentado um enquadramento institucional e histórico da política externa, auscultando como a relação do Brasil com o sistema internacional — a sua identidade, como sugerido pelo construtivismo — foi evoluindo; e, por outro, são analisados os contextos e os atores, tal como sugerido pelo realismo neoclássico, terminando com uma análise dos traços gerais da política externa no período do presidente Lula. ambição de “Brasil potência” e de “grandeza”. O ministro das Relações Exteriores, Araújo de Castro, afirmava, no início da década de 1970, que “Temos de pensar grande e planejar em grande escala, com audácia de planejamento” (Araújo de Castro apud Spektor, 2004). No final da década esta ambição foi recuperada pelo presidente Ernesto Geisel e pelo seu ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira. Devido às transformações ocorridas no sistema internacional, e sob a retórica de “Brasil potência”, Azeredo da Silveira pretendeu projetar o Brasil na cena internacional, acreditando que os países em desenvolvimento poderiam ganhar espaço e influenciar a agenda internacional. Assim, a história da política externa brasileira permite afirmar que existe um conjunto de elementos que caracterizou a política externa do Brasil desde o início do século XX, em convívio com outros mais pontuais, resultantes dos constrangimentos/oportunidades internos e externos. Na verdade, a orientação da política externa não sofreu ao longo dos anos rupturas significativas, sendo marcada pela continuidade de princípios e objetivos, ou de “cenários obrigatórios”, na expressão de Gélson Fonseca.
A história da política externa brasileira, do regime militar à democracia, também permite aferir que existe um objetivo transversal, relativamente enfatizado pelos vários governos e assente na ambição de “Brasil potência”, embora a ênfase e os esforços desenvolvidos tenham sido diferentes. Na verdade, foi durante os governos de Lula que o Brasil passou a ser percepcionado como um global player — membro de instituições internacionais relevantes e que influencia decisões internacionais. A persistência desta ambição nem sempre foi acompanhada por ações coincidentes, e apesar da relativa presença internacional do Brasil durante o período democrático, a “ambição de grandeza” do Brasil tardou a ser alcançada. Como Sean Bruges refere, o Brasil tem uma longa história de ser “ignorado ou marginalizado pelas Grandes Potências nos assuntos internacionais e de braço de ferro ou finta nos assuntos regionais” (Burges, 2012:109). Todavia, desde o final da década de 1990, ainda sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o Brasil iniciou um processo de revelação internacional que se consolidou com o presidente Lula por meio da sua participação em fóruns internacionais e multilaterais, da relação com as Grandes Potências, do exercício diplomático ativo noutras regiões ou ainda das suas intervenções sobre temas da agenda internacional.
A política externa do governo Lula: retórica, ambivalência e pragmatismo
Autora: Carmen Fonseca