O Homem dos pedalinhos

Em 1950, o imigrante letão Herberts Cukurs, então proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, foi acusado de ter cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. O "caso Cukurs" logo se tornou conhecido no Brasil e no exterior e mobilizou governos, entidades judaicas e não judaicas, parlamentares e opinião pública. Percorrendo documentos inéditos, disponíveis no Brasil e no exterior, este livro examina a complexa construção do histórico "caso Cukurs", sobretudo a posição das autoridades brasileiras diante dele.

Confira a seguir o prefácio de Fabio Koifman, professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde leciona nas graduações de história e de relações internacionais.

UMA DAS HISTÓRIAS QUE ME RECORDO de ouvir em casa durante minha juventude era a que meu pai contava relacionada a uma tarde na qual ele e um grupo de amigos foram à Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro “andar de pedalinhos”. Os pedalinhos eram pequenas embarcações para dois passageiros que, por meio do acionamento de pedais, faziam girar um conjunto de pás que produziam movimento sob a água. De acordo com o relato, sem saber ao certo como, logo que o grupo chegou ao píer um senhor estrangeiro que cuidava da atração os recebeu e rapidamente os identificou como judeus. Em seguida, apontou para eles uma jovem moça que estava em companhia dele, informando que ela também era judia. Durante o passeio, parte do grupo acabou atravessando uma parte do espelho d’água repleto de folhagens que se prenderam ao sistema que produzia o movimento da pequena embarcação, fazendo com que os pedalinhos ficassem parados, sem a possibilidade de movimento, a uma distância razoável da margem. Como outra parte dos membros do grupo não sofreu o mesmo contratempo, alguns dos jovens alertaram o responsável para o fato, esperando que ele tratasse de resgatá-los. A mesma situação ocorria eventualmente com outros usuários e, fazendo uso de um pequeno barco, aquele senhor prontamente se dirigia ao local e soltava os pedalinhos presos nas plantas submersas. O tempo foi passando e, para a surpresa do grupo, o “homem dos pedalinhos” ignorou a desagradável situação dos que permaneciam imóveis em um canto um pouco mais remoto da lagoa sem poder se mexer e não providenciou o resgate.

Na ausência de ajuda, os jovens buscaram então, eles mesmos, se desprender, e depois de algum esforço obtiveram sucesso sem compreender a razão de terem sido negligenciados. Aborrecidos com o ocorrido, decidiram nunca mais voltar ao lugar. Tempos depois, acreditaram ter lido nos jornais a razão do estranho comportamento do homem e compreendido o tratamento que ele destinou ao grupo: aquele era Herberts Cukurs, um “criminoso de guerra nazista”. Não há dúvida de que a situação pudesse ter decorrido da maneira que foi por mero acaso ou coincidência. Mas em que contexto estavam esses jovens para compreender os atos de um homem acusado de ter sido um cruel assassino?

Na virada dos anos 1940 para 1950, entre os jovens da comunidade israelita do Rio de Janeiro, o genocídio de que foram vítimas os judeus – que passaria nas décadas seguintes a ser conhecido em português como Holocausto e em hebraico como Shoah (calamidade) – não era considerado um “assunto de criança” ou de jovens adolescentes na faixa de idade deles. Mas foi muitas vezes evidenciado por notícias do desaparecimento de avós, tios e primos que, diferentemente dos pais que imigraram para o Brasil, haviam permanecido na Europa. Depois da Segunda Guerra Mundial, a chegada de alguns parentes ou de pessoas circulando nos espaços comunitários, mesmo que não dividindo com os demais suas histórias e memórias – conforme o mais usual –, menos ainda com os jovens, tinham suas experiências em muitos casos denunciadas pelos estranhos números tatuados nos braços, trazendo para um pouco mais perto ou tornando um pouco mais claras as conversas dos adultos eventualmente escutadas pela metade. A descrição do Holocausto para os mais jovens, de modo geral, era reduzida à informação de que parte da família acabou morta, contabilizada entre os milhões que foram assassinados pelos nazistas.

Com a revelação de que estaria ali tão próximo na Lagoa Rodrigo de Freitas um homem apontado como um dos responsáveis pela tragédia, era natural que o fato produzisse a reação que suscitou entre alguns dos judeus residentes na cidade. Para o público, assim como para o grupo deixado à deriva nos pedalinhos naquele dia, as versões que apareciam nos jornais já esclareciam e materializavam a figura de um criminoso de guerra.

Um tema tão sensível e carregado de emoções como esse se prestava e se presta a atrair o público e vender publicações – a incidência do rosto de Hitler em bancas de jornal supera a de Jesus, sendo os dois rostos os mais recorrentes nas capas de revistas, em especial, as que exploram curiosidades –, não necessariamente zelosas com a precisão histórica dos fatos. Já o enfrentamento do assunto por um historiador de ofício, de modo diferente, requer extremo cuidado, boa metodologia, minuciosa e criteriosa pesquisa, complementados por esforço contínuo de estabelecer o necessário distanciamento pessoal e emocional do objeto de estudo. Muitas são as tensões, tentações e os potenciais desvios e influências quando se enfrenta temáticas dessa natureza e complexidade.

Com tanto interesse do público no assunto, alguns jornalistas se ocuparam dos temas relacionados ao nazismo ou da presença de nazistas no Brasil.

Não somente eles, como também parte dos historiadores – no mais das vezes, não em textos acadêmicos, mas em entrevistas concedidas aos meios de comunicação – deixou-se seduzir pelo canto da sereia dos holofotes da mídia e lançou mão de um viés denunciativo que, não raro, parece transformar o pesquisador em uma espécie de justiceiro e a História em um tribunal.

O tema do pós-Segunda Guerra Mundial e a atribuída fuga de expressivo número de criminosos nazistas para o Brasil, talvez pela recorrência com que surgiu também na literatura ficcional e no cinema, não atraiu por muito tempo os historiadores de ofício e acadêmicos. Nas últimas décadas, quando abordado, o objeto atraiu uma prática historiográfica considerada menor, a chamada história denunciativa. Talvez por esse motivo, o tema não tenha feito produzir um número significativo de trabalhos acadêmicos. O risco de terem seus nomes associados à história denunciativa possivelmente desestimulou e afugentou potenciais investigadores que cogitaram debruçar em pesquisas dentro desse assunto.

Do mesmo modo, enfrentar matéria a respeito da qual a opinião pública já possuía tantas certezas construídas por mitos – como o de que o então governo brasileiro teria atuado premeditadamente no sentido de receber e esconder no país criminosos de guerra nazistas foragidos – demanda trabalho dobrado por parte do pesquisador. Primeiro, é necessário demonstrar as inconsistências e a falta de lastro das versões ficcionais construídas que se repetiram e passaram a constituir o senso comum. A partir disso, efetivamente, narrar e explicar o que, efetivamente, as evidências apontam. Um tema absolutamente inédito ou pouco conhecido não demandaria esse duplo esforço. Tampouco encontraria a resistência de parte do público, que muitas vezes prefere acreditar na versão que lhe parece mais lógica e palatável, mesmo quando essa não possui amparo na investigação de natureza acadêmica.

Por essa razão, é com entusiasmo que os estudiosos da história do Brasil desse período e demais interessados no tema recebem o trabalho de Bruno Leal, fruto de uma brilhante tese de doutorado em história. Com muita perseverança, disposição, seriedade, rigor e fôlego, o autor encarou o que foi necessário enfrentar em termos de pesquisa documental e fontes. Com um texto objetivo e uma narrativa que não buscou atalhos menos pedregosos nem produziu digressões, apresenta um livro no qual relata, interpreta e explica exclusivamente o que as evidências coletadas em extensa pesquisa respaldam.

A criatividade é, sem dúvida, uma qualidade humana, do mesmo modo que o são a honestidade intelectual e o rigor científico. O leitor merece sempre ser informado de maneira clara se seus olhos percorrem obras que misturam realidade com ficção ou se, de fato, está lendo um texto historiográfico.

O presente livro é trabalho de historiador... e dos bons.

 

O homem dos pedalinhos: Herberts Cukurs - a história de um alegado nazista no Brasil do pós-guerra

Autor: Bruno Leal Pastor De Carvalho

Este conteúdo foi postado em 28/04/2022 - 09:20 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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