Além do cânone

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Ao organizar a obra Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais, o professor Celso Castro teve como objetivo ampliar o campo de possibilidades do cânone, sugerindo
novas perspectivas para a compreensão da realidade social. Os textos reunidos nesta coletânea, bem como suas autoras e autores, devem ser mais lidos e conhecidos. "Teremos, assim, ciências sociais mais abrangentes, diversas e renovadas."

Conheça a apresentação da obra a seguir e também as autoras, os autores e seus textos:

Esta não é uma coletânea contra o cânone tradicional das ciências sociais, nem que pretenda ser alternativa. Os autores tradicionalmente considerados clássicos têm seus motivos e méritos para tal. São fundamentais para qualquer aprendizado sério das ciências sociais. Gosto muito deles e já organizei duas seleções de “textos básicos” de sociologia e antropologia seguindo essa tradição.1 Eles não são, contudo, os únicos autores que podemos e devemos conhecer hoje, se quisermos ter uma visão mais abrangente e diversificada das ciências sociais.
Quando comecei minha formação como cientista social, em 1981, os cursos de introdução incluíam obrigatoriamente, porém exclusivamente, três “pais fundadores”: Marx, Durkheim e Weber. Mais tarde, um quarto autor, Simmel, de quem gosto em particular, passou a ser com frequência incluído nesse seleto grupo. Acho equivocado reduzir o fato de eles terem se tornado clássicos — bem como vários outros autores fundamentais, como Mauss, Malinowski, Lévi-Strauss, Bourdieu, Goffman, Elias etc. — à condição de serem todos, sem exceção, homens, europeus ou norte-americanos e brancos. Sem dúvida, a institucionalização das ciências sociais seguiu as condições sociais e os privilégios mais gerais das sociedades patriarcais e europeias ou norte-americana no seio das quais se desenvolveu. Mas hoje podemos, e devemos, perguntar: onde estão, na tradição das ciências sociais, as mães fundadoras, ou as autoras e autores não ocidentais, ou não brancos?
Busquei, nesta coletânea, ir além do cânone tradicional, incluindo outros textos, de 16 autoras e autores, a maioria inéditos no Brasil e aqui traduzidos pela primeira vez para o português. Eles foram selecionados a partir de três critérios.

O primeiro, de não estarem presentes nas coletâneas tradicionais dos principais cientistas sociais. Pode-se argumentar de início que algumas das escolhas aqui feitas não se referem a autoras ou autores que se insiram estritamente ou “a rigor” no campo específico das ciências sociais, tal como ele se institucionalizou na Europa ou na América do Norte. Ou, então, que não seriam suficientemente “teóricos” (portanto, generalizáveis). Respondo chamando a atenção para o fato histórico de que a definição estrita (e estreita) desse campo científico é justamente parte do problema, sobre o qual devemos ter uma visão crítica, não eurocêntrica e desnaturalizadora.

Grande parte das autoras e autores aqui reunidos podem aparecer em coletâneas específicas sobre cientistas sociais, organizadas sob diferentes rótulos: “mulheres”, “feministas”, “negros”, “não ocidentais”, “decoloniais”, “do Sul” etc. Dificilmente, por exemplo, Du Bois deixaria de aparecer em uma coletânea sobre sociólogos negros, ou Jane Addams em uma sobre sociólogas mulheres. Minha seleção, contudo, sem desconhecer a relevância de iniciativas específicas a cada um desses recortes, buscou ser “ecumênica”. O que se perde em profundidade, espero ganhar em diversidade.

O segundo critério foi o do pioneirismo ou do impacto que tiveram em seus contextos nacionais ou regionais. Alguns textos são importantes por terem sido dos primeiros a tratar de algum tema, ou pela recepção que tiveram. Harriet Martineau é, a meu ver, a primeira cientista social, independentemente do gênero. Ela publicou um notável manual sobre “como observar a moral e os costumes” em 1838, nada menos de 57 anos antes de Durkheim publicar suas regras do método sociológico. O antropólogo negro haitiano Anténor Firmin desafiou a pretensão científica do racismo do conde de Gobineau em 1885. O texto de Manuel Gamio, criticando os preconceitos contra os indígenas mexicanos, pode parecer trivial hoje, mas não o era quando foi publicado, no México de 1916. Ou o impacto, ainda forte, do  texto de 1960 de Takeuchi Yoshimi sobre a “Ásia como método”. Além de europeus e americanos, há aqui textos de autoras ou autores de Haiti, Índia, Japão, Turquia, Irã e México. Vejo em todas e todos qualidades suficientes, por si sós, para fazer parte de um repertório mais alargado. Trata-se, a meu ver, de ampliar o campo de possibilidades do cânone.

O terceiro critério é o da beleza que atribuo aos textos selecionados. Aqui, assumo plenamente minhas preferências pessoais e a subjetividade de minhas escolhas. Em cada texto de apresentação indico os motivos da seleção, mas devo desde já dizer que gosto de todos eles, cada qual com seu estilo e em seu contexto histórico. Algumas escolhas podem obedecer a dois dos critérios acima mencionados. Jane Addams, por exemplo, é “mulher” e “pioneira”, mas a meu ver também compartilha, com todas e todos os demais, a beleza de seu texto. Louise Varga, por outro lado, dificilmente seria incluída em coletâneas organizadas sob esses mesmos critérios. Aqui, foi incluída pela impressionante força e beleza que vejo em sua etnografia do nazismo, publicada em 1937, quando esse movimento ainda estava em seu início.

Acima de tudo, acho que os textos aqui reunidos, bem como suas autoras e autores, deveriam ser mais lidos e conhecidos. Conhecê-los representou um alargamento da percepção de minha própria ignorância em relação ao mundo, vasto mundo, das ciências sociais. Isso não é pouco. Espero que a seleção aqui feita ajude a formar uma geração de cientistas sociais que estudem a realidade social a partir de perspectivas mais amplas, diversas e coloridas do que aquelas que presidiram minha formação. Teremos assim ciências sociais mais abrangentes, diversas e renovadas. O alargamento do cânone ajudará a estimular a “imaginação sociológica” de que nos fala C. Wright Mills, num texto de 1959: a “capacidade de mudar de uma perspectiva para outra, e, nesse processo, consolidar uma visão adequada de uma sociedade total e de seus componentes”.

Sobre a imagem da capa:

O desenho do artista uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949), conhecido como “América invertida”, representa um mapa invertido da América do Sul. Torres García viveu no exterior entre 1891 e 1934 – Barcelona, Nova York, Paris e Madri. De volta ao Uruguai, criou em 1935 a Asociación de Arte Constructivo e em 1936 a revista Circulo y Cuadrado, em cujo primeiro número aparece a representação invertida da América do Sul, aqui reproduzida.3 A versão que foi utilizada na capa, contudo, foi a de 1943, mais limpa de elementos, e que se tornou sua obra mais conhecida.
Torres García não rejeita a tradição artística europeia, com a qual afirma termos muito a aprender. Rejeita, porém, a submissão a um único cânone artístico hegemônico e homogeneizante, a orientação a partir de uma única bússola. Defende a necessidade de termos perspectivas diferentes de nossa posição no mundo, e para tal incorpora e reinventa em sua arte a tradição indígena sul-americana.
É esse o sentido que quis transmitir ao livro, indicando essa imagem para a capa. Que os textos e autores aqui reunidos nos ajudem a ver o mundo de uma maneira mais complexa e diversa – e, por isso mesmo, ecumênica.

 

A coletânea traz os textos indicados a seguir, antecedidos pelas apresentações de suas autoras e seus autores:

Como observar a moral e os costumes, de 1838, da inglesa Harriet Martineau, britânica e que o organizador considera a fundadora das ciências sociais;

Hierarquização fictícia das raças humanas, de 1885, do haitiano Anténor Firmin; Infância, de 1887, da indiana Pandita Ramabai;

Preconceito de cor, de 1899, do norte-americano e pioneiro da sociologia urbana W. E. B. Du Bois

Autoridade e autonomia no casamento, de 1912, da alemã Marianne Weber; o escrito de 1916,

Preconceitos sobre a raça indígena e sua história, do mexicano Manuel Gamio;

Memórias de mulheres: transmitindo o passado, como ilustrado pela história do Bebê Diabo, de 1916, da americana e segunda mulher a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, Jane Addams;

A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social, texto de 1937, da austríaca Lucie Varga

Contradições culturais e papéis sexuais, de 1946, da russa Mirra Komarovsky;

Teoria e psicologia do ultranacionalismo, de 1946, do japonês Masao Maruyama;

Uma aristocracia africana, do ano de 1947, da antropóloga sul-africana Hilda Kuper;

Burguesia negra, de 1955, do americano E. F. Frazier;

Nota sobre sanscritização e ocidentalização, de 1956, do indiano M. N. Srinivas;

Ásia como método, de 1961, do japonês Yoshimi Takeuchi;

Ocidentose: uma praga do Ocidente. Diagnosticando uma doença, de 1962, do iraniano Jalāl Āl-e Ah.mad;

Relações centro-periferia: uma chave para a política turca?, do turco Şerif Mardin, do ano de 1973.

 

Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais | Organizador: Celso Castro

 

Este conteúdo foi postado em 03/02/2022 - 19:20 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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