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  • Postado por editora em em 22/11/2022 - 08:28

    A II FESTA DO LIVRO NA UFF ou II FLUFF acontece em sua segunda edição, entre os dias 29, 30 de novembro e 1 de dezembro.

    A primeira edição realizada em 2019 foi um sucesso. Reuniu 40 editoras nacionais e mais de 5 mil títulos.

    A II FLUFF vai acontecer nas dependências da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Campus Gragoatá, nos Pilotis dos Blocos B, e C.
    Endereço: Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis, Bairro São Domingos, Niterói - RJ. Entre 9hs e 20hs.

    Confira as demais editoras participantes em www.iifluff.wordpress.com

  • Postado por editora em em 10/11/2022 - 11:55

    "A elite política não era contrária ao Exército. Ela, na verdade, elaborou e pôs em prática um vasto projeto de reforma militar. Considerando que as forças militares herdadas do Primeiro Reinado foram desmobilizadas pelos liberais de 1831, é possível afirmar que essa reforma de 1837 dá origem ao Exército brasileiro. Projeto que foi organizado a partir de diretrizes políticas específicas - o Exército brasileiro foi estruturado seguindo uma orientação do Partido Conservador [?], cuidando com zelo de preservar no Brasil uma herança colonizadora: a de uma monarquia assentada na grande propriedade e na escravidão."

    Confira o prefácio para a 2ª edição do livro de Adriana Barreto de Souza 'O Exército na consolidação do Império', escrito pela professora Keila Grinberg.

     

    Não poderia ser mais oportuna a publicação da segunda edição de O Exército na consolidação do Império, da historiadora Adriana Barreto de Souza. Lançado originalmente em 1999, o livro faz parte de uma intensa produção historiográfica que vem criticando e desconstruindo mitos importantes sobre a história das Forças Armadas no Brasil. A despeito dessa renovação, ainda encontram ressonância pública idealizações sobre as origens do Exército e seu papel nas décadas posteriores à independência do país.
    Uma delas é a alusão ao Exército imperial pelo nome de seu patrono, o duque de Caxias (1803-1880), que ainda em vida recebeu a alcunha de o “Pacificador do Brasil”. Guiado por Caxias, o Exército brasileiro desempenhou papel fundamental na desproporcional repressão às revoltas ocorridas ao longo das décadas de 1830 e 1840, como a Balaiada, no Maranhão, e a Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Anos mais tarde, durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), Caxias foi designado comandante máximo das Forças do Império. Quase cem anos depois, foi oficialmente nomeado Patrono do Exército Brasileiro. A associação da imagem do Exército à figura de Caxias, elogiando a ideia de “pacificação” e naturalizando a violência das ações militares desde então, é um dos mais poderosos e longevos mitos sobre a suposta vocação do Exército na mediação de conflitos.

    Originalmente dissertação de mestrado defendida no Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob orientação do professor Manoel Salgado Guimarães, e uma das vencedoras do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa 1997, O Exército na consolidação do Império é obra fundamental justamente porque se contrapõe a essas visões tradicionais sobre a história militar brasileira.

    Adriana Barreto demonstra como a fundação do Exército nacional em 1831 fez parte de um projeto conservador que se tornou hegemônico a partir do chamado Regresso, em 1837, quando os membros do Partido Conservador, representantes dos proprietários escravistas, assumiram o poder. Para além da atuação no combate às revoltas que então ocorriam em várias províncias do país, a própria estrutura interna da corporação reproduzia em sua burocracia os valores hierárquicos próprios da sociedade imperial, reservando a oficialidade aos membros das elites locais e as posições de soldados a pessoas como os pardos libertos, vistas como pouco idôneas e que colocavam riscos à tranquilidade pública. Isso não significa, no entanto, que o processo de formação do Exército brasileiro tenha espelhado a sociedade e o Estado brasileiros. Ao contrário, ele ocorreu de forma tensa, plena de interesses díspares e projetos opostos. Ao estudar o contexto mais amplo da formação do Exército e ao mesmo tempo a historicidade de seus interesses e tensões internas, a autora enfatiza a importância de analisar o Exército a partir de suas dinâmicas internas próprias, apontando os problemas da generalização do termo “militares” e chamando a atenção para a necessidade “de um exame mais preciso da organização interna do próprio Exército”. O resultado desse exame preciso é justamente este livro.
    O Exército na consolidação do Império é uma defesa da História como campo do saber e da validade de seus métodos para a construção do conhecimento científico. Não há nele nenhuma afirmação que não seja baseada na leitura crítica da historiografia e na análise rigorosa das fontes. Como já notado no prefácio à primeira edição por Manoel Salgado Guimarães, não por acaso o orientador deste trabalho, Adriana Barreto interroga os símbolos fundadores da história do Exército e dessacraliza sua mitificação, que evidentemente não resiste ao confronto 
    com a pesquisa documental. Com elegância e firmeza, é como se ela afirmasse ao final: o Exército brasileiro, este que foi fundado em 1831 com a reorganização do poder realizada após a abdicação de d. Pedro I, não é nem nunca foi o “de Caxias”. Ele é mais complexo, mais diverso e, por isso mesmo, mais real do que a idealização que ainda o vê, na figura de seu “patrono”, como a salvação do Estado e da unidade do território brasileiros.

    Lido nos dias de hoje, este livro também é uma defesa da importância da História para fundamentar nosso olhar para o presente. Afinal, por incrível que pareça, ainda hoje o Poder Executivo tenta usar o Exército como milícia própria e braço de apoio. São comuns variações da frase “nas mãos das Forças Armadas, o poder moderador [é] a certeza da garantia da nossa liberdade, da nossa democracia, e o apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação”.2 Ela é baseada em uma clara distorção das funções do Exército tal como estabelecidas pela Constituição em vigor. Ao Exército nunca coube dar “apoio total” a nenhum presidente, muito menos exercer poder moderador entre os demais poderes. Essa perspectiva corrobora a ideia bastante controversa de que, ao longo de sua existência, ao Exército caberia moderar os conflitos sociais, sem intervir na política. Ao procederem dessa maneira, nossos contemporâneos realizam a mesma projeção conservadora e mitológica sobre o passado empreendida pelos estadistas do Império, quando atribuíram ao Exército o papel da garantia da ordem e da unificação do território brasileiro.

    “Que se aproveitem as lições do passado para a segurança do futuro”, afirmou o líder conservador Paulino José Soares de Sousa, o visconde do Uruguai, em 1843. É com essa citação que Adriana Barreto abre a conclusão de seu livro, demonstrando como, já no século XIX, essa leitura do passado era, em si, um projeto hierárquico, centralizador, autoritário. A publicação da segunda edição deste livro, em 2022, é um apelo à urgência do combate às interpretações que falseiam a História e usam o passado para legitimar perspectivas igualmente hierárquicas, centralizadoras e autoritárias do nosso futuro.

     

    O Exército na consolidação do Império: um estudo sobre a política militar conservadora (1831-1850)

    Autora: Adriana Barreto de Souza

    2ª edição

  • Postado por editora em em 07/11/2022 - 16:24

    Este livro apresenta uma história conectada a múltiplas histórias da América Latina, na luta dos povos indígenas em defesa de suas terras, de sua cultura, de seu estilo de vida, de seus valores e princípios éticos. O historiador Alberto del Castillo Troncoso mapeia a trajetória da célebre fotografia "As mulheres de X'oyep", de Pedro Valtierra, que captou o instante em que duas mulheres 'tsotsiles' investem contra um dos militares em X'oyep após o massacre no povoado de Acteal. A obra apresenta as condições da produção da imagem, a busca documental empreendida por Valtierra e seu trabalho de edição. O autor analisa ainda os múltiplos aspectos que constituem o complexo processo de construção de uma imagem poderosa que, transcendendo a si mesma, se tornou um dos símbolos mais representativos da resistência indígena na América Latina.

    Confira o prefácio de Regina Beatriz Guimarães Neto e Antonio Torres Montenegro para esta versão em português, traduzida por Pablo F. de A. Porfirio e publicada por nós.

     

    O historiador Alberto del Castillo Troncoso é bastante conhecido na comunidade acadêmica do Brasil pelos artigos em diversas revistas, pela participação em congressos da Associação Nacional de História (Anpuh) e da Associação Brasileira de História Oral (Abho) e pela parceria com distintos grupos de pesquisa nacionais.
    Porém, foram seus livros direcionados com grande competência para a história de fotógrafos latino-americanos — privilegiando determinados conjuntos de fotografias produzidos sobre certos eventos — associada à metodologia da história oral que engendraram e consolidaram os laços com os historiadores do Brasil.
    A FGV Editora, ao publicar As mulheres de X’oyep, obra que recebeu o Prêmio Nacional de Ensaio sobre Fotografia, no México, concorre para ampliar as relações desse historiador com os leitores brasileiros.

    É importante destacar, além das qualidades analíticas excepcionais que o autor apresenta em seus livros e artigos, sua postura intelectual generosa — pois não se furta a sempre nomear os(as) diversos(as) colegas que têm colaborado com seu trabalho de historiador. No caso específico deste livro, destaca os significativos debates ocorridos em seminários de que participou em universidades do Brasil, além de numerosos colegas no México.
    Alberto del Castillo Troncoso, ao eleger a fotografia de imprensa para análise, articula as imagens visuais ao campo social e político e à representação estética. Alinha-se aos estudiosos que rompem com abordagens tradicionais, consideradas “científicas”, que de praxe defendem os “registros reais” ou as descrições “coladas à realidade”, como muitas vezes ocorre com o fotojornalismo em seu objetivo de informar e “provar”. Mas, como afirma Didi-Huberman (2006:49, grifo nosso), tal condição incorre em grave limitação: “[…] quererá não ver outra coisa além do que vê presentemente”.

    O historiador dessacraliza, na trilha dessa perspectiva, a imagem-objeto e procura o que excede ou transborda no movimento multiplicador de signos e espaços sensíveis. Importa observar que, para Alberto del Castillo, ao problematizar a multiplicidade de signos imagéticos que emanam da experiência visual com a fotografia e o fotojornalismo, em particular, a compreensão de “estar com” a imagem é válida até certo ponto, pois a imagem “viaja” e movimenta-se “além do horizonte”. Não há “devoção positivista ao objeto” (Didi-Huberman, 2006:176); o fotógrafo, como o artista, tratará da “produção da imagem” — esse é o ponto no qual recairá a análise. Como historiador exemplar, sem nenhuma intenção de totalizar o sentido das imagens, Castillo realiza um trabalho de artesão para desvelar e reconstituir os passos da construção da imagem que irá encenar-se no espaço público ao pesquisar as variadas formas de recepção/apropriação/ressignificação. De maneira muito particular, narra as trilhas percorridas e relatadas pelos jornalistas para a produção do registro visual — uma fotografia particular — do surpreendente embate de As mulheres de X’oyep, a fim de conferir ao “objeto visual” a singularidade do evento como acontecimento, como quer o historiador.
    O trabalho de documentar os diversos relatos dos jornalistas que estiveram presentes fotografando a luta das mulheres de X’oyep projeta o registro imagético em uma rede de forças políticas e sociais, em acirrada disputa. Nessa trilha, a imagem produzirá grande clamor público nacional e internacional e, como tal, efeito político de impacto, mobilizador de outras lutas.

    A tarefa do historiador Alberto del Castillo segue o caminho da reflexão rigorosa ao partir para realizar uma análise semântica da fotografia, dedicando-se a uma espécie de “crônica da produção fotográfica”, com vários desdobramentos na linha da interação e do diálogo com o fotógrafo-autor. A análise biográfica de Pedro Valtierra passa a ser um imperativo da pesquisa, em que o nome próprio de Valtierra encontra sua função: o nome desloca-se para o coletivo e adentra o espaço público no universo dialógico do fotojornalismo. Alberto del Castillo ainda nos presenteia, nesse contexto, com as reflexões sobre as inovações da produção da fotografia no México nas últimas décadas do século XX.

    A pesquisa historiográfica, nessa rica moldura, para intelectuais como Castillo é uma experiência teórica e prática a cada passo, sempre uma aprendizagem. Novas incursões se delinearam com base na imagem fotográfica, centro de seu interesse, que configurou a luta presente dos indígenas chiapanecos, com destaque para suas mulheres, e múltiplas mobilizações em espaços diferenciados não apenas no México, mas em outros países da América Latina. Sobretudo, impulsionou o imaginário político das lutas pelos direitos dos indígenas e pela força das mulheres, que compõem imagens icônicas.

    Alberto del Castillo elaborou sofisticadas interconexões críticas entre passado e presente, movimento que produziu fecundas análises sobre memória e testemunho, em que pontua os inícios do movimento zapatista (entre 1994 e 1995), os deslocamentos políticos dessa luta e as diversas recepções da fotografia produzida por Valtierra. Não há nem presenteísmo nem finalismo em sua narrativa historiográfica. O presente não é narrado como sucedendo ao passado, mas nesse passado se encontram inflexões significativas de práticas de poder que se constituem em referenciais para o estudo do presente. Há, nesse sentido, a força da contemporaneidade “que demarca uma singular relação com o próprio tempo” e o “interpela” (Agamben, 2009:64). Inaugura-se, desse modo, outro percurso metodológico e narrativo.
    No âmbito dessa experiência, o autor contribui com o relato sobre a fotografia das mulheres indígenas barrando o avanço dos militares, publicada na primeira página de um jornal. O texto que opera como registro do fato dado a ver em imagem exige conhecer a história do México. Nesse sentido, o historiador não se furta a dizer da aliança de algumas lideranças indígenas com setores do governo que reforçam o neoliberalismo de fins do século passado na América Latina e que devem também ser consideradas no embate paradoxal do exército de mulheres indígenas, documentado nessa foto.

    Segundo Alberto, outro fator que concorreu para a força icônica da imagem fotojornalística de Valtierra em X’oyep é o fato de ela ter sido agraciada com o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha. Ao mesmo tempo, em outro nível de análise, numa perspectiva do tempo da longa duração, haveria de se considerar o fato de algumas pesquisas afirmarem “o reconhecimento histórico e a lealdade das comunidades indígenas à instituição da monarquia ibérica”, forjados ao longo dos três séculos de dominação da Coroa espanhola.

    O autor detalha, para maior compreensão contextual, uma breve história biográfica dos principais trabalhos realizados por Valtierra, como a cobertura guerrilheira sandinista na Nicarágua e na Guatemala. Explica, ainda, em razão do exercício de distintos editores que revolucionaram o fotojornalismo no México, como as agências fotográficas serviram de escolas para Valtierra e sua geração.

    A fotografia premiada, transformada em ícone da resistência indígena liderada pelas mulheres, foi também analisada por diferentes estudiosos que o historiador Castillo comentará e entrevistará. Apresenta-se, nesse caminho, a perspectiva do professor Ariel Arnal,1 do jornalista Rafael Cardona, da escritora Elena Poniatowska, bem como da professora Deborah Dorotinsky Alperstein. Ou seja, o autor se detém em uma cuidadosa reflexão acerca das diversas leituras que a fotografia engendrou. Ele observa:
    Talvez o mais relevante consista em poder situar o problema da constante mobilidade das interpretações e a maneira como distintas leituras dessa imagem seguirão contribuindo para um maior conhecimento das condições de vida das comunidades indígenas e sua luta para defender sua cultura a partir de sua projeção como um ícone fotográfico.

    Em continuidade à pesquisa, o autor desloca o foco para as formas de apropriação de distintos jornais e revistas: a revista Epoca, a revista de divulgação científica Bulletin of the Atomic Scientists, o semanário liberal norte-americano First of the Month. Alberto del Castillo conclui o capítulo “História de um ícone” assinalando que First of the Month, ao publicar a foto As mulheres de X’oyep, também coloca como legenda a pergunta “As fotografias mentem?”, atribuída ao subcomandante Marcos.
    Entretanto, o autor, em seu percurso narrativo, surpreende o leitor com um episódio inusitado. Em 2001, o subcomandante Marcos, em face da eleição do presidente Vicente Fox, que acenava com mudanças para amplos setores da população, deslocou-se da zona de Los Altos de Chiapas para a Cidade do México a fim de pressionar o governo pela reforma indígena que foi negociada nos Acordos de San Andrés. Ele se hospedou por 20 dias nas instalações da Escola Nacional de Antropologia e História (Enah), em Cuicuilco, ao sul da Cidade do México. Nesse período, realizou uma aula para os estudantes da Enah no maior auditório da escola, que esteve superlotado para ouvi-lo. E sua aula, para surpresa geral, teve como inspiração a fotografia de Valtierra, que Marcos abriu numa cartolina e colou num quadro, causando grande impacto e emoção. A fotografia foi a referência para a aula do comandante e “professor” Marcos. Segundo ele, ali estavam representados os dois blocos que se enfrentavam naquele momento na selva chiapaneca, fielmente representados na fotografia de Valtierra. Alberto conclui que “o principal líder do movimento zapatista conferiu, naquela singular ‘aula’ acadêmica da Enah, um reconhecimento explícito a essa fotografia como a referência visual mais notável do zapatismo em torno do conflito indígena”.

    Como é próprio aos historiadores de ofício, que não se deixam capturar pelas fronteiras dos campos do conhecimento, inspirados, talvez, no operar dos etnógrafos e dos antropólogos, Alberto decidiu visitar X’oyep. Tinham se passado quase 15 anos. Que marcas daquela experiência de confronto entre as mulheres indígenas e o Exército, registrada num átimo pelas lentes da câmera de Pedro Valtierra, estariam presentes na memória das pessoas do lugar?

    O leitor é surpreendido no último capítulo do livro com o relato dessa viagem, em que a paisagem vivenciada pelo historiador é conectada aos relatos das entrevistas concedidas a ele pelos jornalistas Valtierra e Balboa, quando documentaram o evento. Presente e passado, percepção e memória produzem em Alberto del Castillo Troncoso possibilidades de novas leituras, novas sensações, outros sentimentos, novas experiências, novos deslocamentos analíticos — a começar pelo inesperado encontro com o indígena Antonio López, que o recebe espontaneamente em sua casa para uma conversa/entrevista. Alberto descobre estar diante de um personagem central não apenas do evento que resultou na fotografia icônica As mulheres de X’oyep, mas do massacre de Acteal — em que foram alvo os indígenas em 22 de dezembro de 1997 —, homem com estreita conexão com o evento fotografado por Valtierra. Ao leitor, deixamos plantada a curiosidade para conhecer mais essa incursão do historiador e autor do livro nas plagas indígenas mexicanas do estado de Chiapas.

    Dessa forma, temos em mãos um livro de uma história conectada a múltiplas histórias da América Latina, na luta dos povos indígenas em defesa de suas terras, de sua cultura, de seu estilo de vida, de seus valores e princípios éticos. Uma obra de um historiador que apresenta análises sociais, políticas, econômicas, culturais e visuais que se atualizam em diversos níveis, produzindo a compreensão de que a história é movimento constante a reconstruir leituras e ressignificações de lutas e resistências.
    Desejamos instigantes leituras deste importante livro, que premiou um historiador incansável em sua trincheira de resistência.
     

     

    As mulheres de X'oyep: fotografia e memória

    Autor: Alberto del Castillo Troncoso

  • Postado por editora em em 07/11/2022 - 16:24

    Este livro apresenta uma história conectada a múltiplas histórias da América Latina, na luta dos povos indígenas em defesa de suas terras, de sua cultura, de seu estilo de vida, de seus valores e princípios éticos. O historiador Alberto del Castillo Troncoso mapeia a trajetória da célebre fotografia "As mulheres de X'oyep", de Pedro Valtierra, que captou o instante em que duas mulheres 'tsotsiles' investem contra um dos militares em X'oyep após o massacre no povoado de Acteal. A obra apresenta as condições da produção da imagem, a busca documental empreendida por Valtierra e seu trabalho de edição. O autor analisa ainda os múltiplos aspectos que constituem o complexo processo de construção de uma imagem poderosa que, transcendendo a si mesma, se tornou um dos símbolos mais representativos da resistência indígena na América Latina.

    Confira o prefácio de Regina Beatriz Guimarães Neto e Antonio Torres Montenegro para esta versão em português, traduzida por Pablo F. de A. Porfirio e publicada por nós.

     

    O historiador Alberto del Castillo Troncoso é bastante conhecido na comunidade acadêmica do Brasil pelos artigos em diversas revistas, pela participação em congressos da Associação Nacional de História (Anpuh) e da Associação Brasileira de História Oral (Abho) e pela parceria com distintos grupos de pesquisa nacionais.
    Porém, foram seus livros direcionados com grande competência para a história de fotógrafos latino-americanos — privilegiando determinados conjuntos de fotografias produzidos sobre certos eventos — associada à metodologia da história oral que engendraram e consolidaram os laços com os historiadores do Brasil.
    A FGV Editora, ao publicar As mulheres de X’oyep, obra que recebeu o Prêmio Nacional de Ensaio sobre Fotografia, no México, concorre para ampliar as relações desse historiador com os leitores brasileiros.

    É importante destacar, além das qualidades analíticas excepcionais que o autor apresenta em seus livros e artigos, sua postura intelectual generosa — pois não se furta a sempre nomear os(as) diversos(as) colegas que têm colaborado com seu trabalho de historiador. No caso específico deste livro, destaca os significativos debates ocorridos em seminários de que participou em universidades do Brasil, além de numerosos colegas no México.
    Alberto del Castillo Troncoso, ao eleger a fotografia de imprensa para análise, articula as imagens visuais ao campo social e político e à representação estética. Alinha-se aos estudiosos que rompem com abordagens tradicionais, consideradas “científicas”, que de praxe defendem os “registros reais” ou as descrições “coladas à realidade”, como muitas vezes ocorre com o fotojornalismo em seu objetivo de informar e “provar”. Mas, como afirma Didi-Huberman (2006:49, grifo nosso), tal condição incorre em grave limitação: “[…] quererá não ver outra coisa além do que vê presentemente”.

    O historiador dessacraliza, na trilha dessa perspectiva, a imagem-objeto e procura o que excede ou transborda no movimento multiplicador de signos e espaços sensíveis. Importa observar que, para Alberto del Castillo, ao problematizar a multiplicidade de signos imagéticos que emanam da experiência visual com a fotografia e o fotojornalismo, em particular, a compreensão de “estar com” a imagem é válida até certo ponto, pois a imagem “viaja” e movimenta-se “além do horizonte”. Não há “devoção positivista ao objeto” (Didi-Huberman, 2006:176); o fotógrafo, como o artista, tratará da “produção da imagem” — esse é o ponto no qual recairá a análise. Como historiador exemplar, sem nenhuma intenção de totalizar o sentido das imagens, Castillo realiza um trabalho de artesão para desvelar e reconstituir os passos da construção da imagem que irá encenar-se no espaço público ao pesquisar as variadas formas de recepção/apropriação/ressignificação. De maneira muito particular, narra as trilhas percorridas e relatadas pelos jornalistas para a produção do registro visual — uma fotografia particular — do surpreendente embate de As mulheres de X’oyep, a fim de conferir ao “objeto visual” a singularidade do evento como acontecimento, como quer o historiador.
    O trabalho de documentar os diversos relatos dos jornalistas que estiveram presentes fotografando a luta das mulheres de X’oyep projeta o registro imagético em uma rede de forças políticas e sociais, em acirrada disputa. Nessa trilha, a imagem produzirá grande clamor público nacional e internacional e, como tal, efeito político de impacto, mobilizador de outras lutas.

    A tarefa do historiador Alberto del Castillo segue o caminho da reflexão rigorosa ao partir para realizar uma análise semântica da fotografia, dedicando-se a uma espécie de “crônica da produção fotográfica”, com vários desdobramentos na linha da interação e do diálogo com o fotógrafo-autor. A análise biográfica de Pedro Valtierra passa a ser um imperativo da pesquisa, em que o nome próprio de Valtierra encontra sua função: o nome desloca-se para o coletivo e adentra o espaço público no universo dialógico do fotojornalismo. Alberto del Castillo ainda nos presenteia, nesse contexto, com as reflexões sobre as inovações da produção da fotografia no México nas últimas décadas do século XX.

    A pesquisa historiográfica, nessa rica moldura, para intelectuais como Castillo é uma experiência teórica e prática a cada passo, sempre uma aprendizagem. Novas incursões se delinearam com base na imagem fotográfica, centro de seu interesse, que configurou a luta presente dos indígenas chiapanecos, com destaque para suas mulheres, e múltiplas mobilizações em espaços diferenciados não apenas no México, mas em outros países da América Latina. Sobretudo, impulsionou o imaginário político das lutas pelos direitos dos indígenas e pela força das mulheres, que compõem imagens icônicas.

    Alberto del Castillo elaborou sofisticadas interconexões críticas entre passado e presente, movimento que produziu fecundas análises sobre memória e testemunho, em que pontua os inícios do movimento zapatista (entre 1994 e 1995), os deslocamentos políticos dessa luta e as diversas recepções da fotografia produzida por Valtierra. Não há nem presenteísmo nem finalismo em sua narrativa historiográfica. O presente não é narrado como sucedendo ao passado, mas nesse passado se encontram inflexões significativas de práticas de poder que se constituem em referenciais para o estudo do presente. Há, nesse sentido, a força da contemporaneidade “que demarca uma singular relação com o próprio tempo” e o “interpela” (Agamben, 2009:64). Inaugura-se, desse modo, outro percurso metodológico e narrativo.
    No âmbito dessa experiência, o autor contribui com o relato sobre a fotografia das mulheres indígenas barrando o avanço dos militares, publicada na primeira página de um jornal. O texto que opera como registro do fato dado a ver em imagem exige conhecer a história do México. Nesse sentido, o historiador não se furta a dizer da aliança de algumas lideranças indígenas com setores do governo que reforçam o neoliberalismo de fins do século passado na América Latina e que devem também ser consideradas no embate paradoxal do exército de mulheres indígenas, documentado nessa foto.

    Segundo Alberto, outro fator que concorreu para a força icônica da imagem fotojornalística de Valtierra em X’oyep é o fato de ela ter sido agraciada com o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha. Ao mesmo tempo, em outro nível de análise, numa perspectiva do tempo da longa duração, haveria de se considerar o fato de algumas pesquisas afirmarem “o reconhecimento histórico e a lealdade das comunidades indígenas à instituição da monarquia ibérica”, forjados ao longo dos três séculos de dominação da Coroa espanhola.

    O autor detalha, para maior compreensão contextual, uma breve história biográfica dos principais trabalhos realizados por Valtierra, como a cobertura guerrilheira sandinista na Nicarágua e na Guatemala. Explica, ainda, em razão do exercício de distintos editores que revolucionaram o fotojornalismo no México, como as agências fotográficas serviram de escolas para Valtierra e sua geração.

    A fotografia premiada, transformada em ícone da resistência indígena liderada pelas mulheres, foi também analisada por diferentes estudiosos que o historiador Castillo comentará e entrevistará. Apresenta-se, nesse caminho, a perspectiva do professor Ariel Arnal,1 do jornalista Rafael Cardona, da escritora Elena Poniatowska, bem como da professora Deborah Dorotinsky Alperstein. Ou seja, o autor se detém em uma cuidadosa reflexão acerca das diversas leituras que a fotografia engendrou. Ele observa:
    Talvez o mais relevante consista em poder situar o problema da constante mobilidade das interpretações e a maneira como distintas leituras dessa imagem seguirão contribuindo para um maior conhecimento das condições de vida das comunidades indígenas e sua luta para defender sua cultura a partir de sua projeção como um ícone fotográfico.

    Em continuidade à pesquisa, o autor desloca o foco para as formas de apropriação de distintos jornais e revistas: a revista Epoca, a revista de divulgação científica Bulletin of the Atomic Scientists, o semanário liberal norte-americano First of the Month. Alberto del Castillo conclui o capítulo “História de um ícone” assinalando que First of the Month, ao publicar a foto As mulheres de X’oyep, também coloca como legenda a pergunta “As fotografias mentem?”, atribuída ao subcomandante Marcos.
    Entretanto, o autor, em seu percurso narrativo, surpreende o leitor com um episódio inusitado. Em 2001, o subcomandante Marcos, em face da eleição do presidente Vicente Fox, que acenava com mudanças para amplos setores da população, deslocou-se da zona de Los Altos de Chiapas para a Cidade do México a fim de pressionar o governo pela reforma indígena que foi negociada nos Acordos de San Andrés. Ele se hospedou por 20 dias nas instalações da Escola Nacional de Antropologia e História (Enah), em Cuicuilco, ao sul da Cidade do México. Nesse período, realizou uma aula para os estudantes da Enah no maior auditório da escola, que esteve superlotado para ouvi-lo. E sua aula, para surpresa geral, teve como inspiração a fotografia de Valtierra, que Marcos abriu numa cartolina e colou num quadro, causando grande impacto e emoção. A fotografia foi a referência para a aula do comandante e “professor” Marcos. Segundo ele, ali estavam representados os dois blocos que se enfrentavam naquele momento na selva chiapaneca, fielmente representados na fotografia de Valtierra. Alberto conclui que “o principal líder do movimento zapatista conferiu, naquela singular ‘aula’ acadêmica da Enah, um reconhecimento explícito a essa fotografia como a referência visual mais notável do zapatismo em torno do conflito indígena”.

    Como é próprio aos historiadores de ofício, que não se deixam capturar pelas fronteiras dos campos do conhecimento, inspirados, talvez, no operar dos etnógrafos e dos antropólogos, Alberto decidiu visitar X’oyep. Tinham se passado quase 15 anos. Que marcas daquela experiência de confronto entre as mulheres indígenas e o Exército, registrada num átimo pelas lentes da câmera de Pedro Valtierra, estariam presentes na memória das pessoas do lugar?

    O leitor é surpreendido no último capítulo do livro com o relato dessa viagem, em que a paisagem vivenciada pelo historiador é conectada aos relatos das entrevistas concedidas a ele pelos jornalistas Valtierra e Balboa, quando documentaram o evento. Presente e passado, percepção e memória produzem em Alberto del Castillo Troncoso possibilidades de novas leituras, novas sensações, outros sentimentos, novas experiências, novos deslocamentos analíticos — a começar pelo inesperado encontro com o indígena Antonio López, que o recebe espontaneamente em sua casa para uma conversa/entrevista. Alberto descobre estar diante de um personagem central não apenas do evento que resultou na fotografia icônica As mulheres de X’oyep, mas do massacre de Acteal — em que foram alvo os indígenas em 22 de dezembro de 1997 —, homem com estreita conexão com o evento fotografado por Valtierra. Ao leitor, deixamos plantada a curiosidade para conhecer mais essa incursão do historiador e autor do livro nas plagas indígenas mexicanas do estado de Chiapas.

    Dessa forma, temos em mãos um livro de uma história conectada a múltiplas histórias da América Latina, na luta dos povos indígenas em defesa de suas terras, de sua cultura, de seu estilo de vida, de seus valores e princípios éticos. Uma obra de um historiador que apresenta análises sociais, políticas, econômicas, culturais e visuais que se atualizam em diversos níveis, produzindo a compreensão de que a história é movimento constante a reconstruir leituras e ressignificações de lutas e resistências.
    Desejamos instigantes leituras deste importante livro, que premiou um historiador incansável em sua trincheira de resistência.
     

     

    As mulheres de X'oyep: fotografia e memória

    Autor: Alberto del Castillo Troncoso

  • Postado por editora em em 07/11/2022 - 12:55

    Este livro foi a saída encontrada por seu autor/narrador, para escapar produtivamente da solidão impiedosa durante a pandemia de Covid-19. Isto, porque ler um bom livro nos leva a muitos e muitos lugares físicos, sociais, culturais, existenciais. O autor declara que ler e/ou reler os clássicos foi seu projeto e prática, por mais de cinquenta anos. Fizesse o que fizesse, estivesse onde estivesse, a leitura de autores clássicos sempre foi o seu foco. E durante o recolhimento da pandemia foi também um projeto de saúde mental. Misto de ficção e documentário, o livro é um belo achado de criatividade, inteligência narrativa e consistência de informações históricas, literárias, filosóficas. A edição conta ainda com o prefácio de autoria de Carlos José Fontes Diegues, o respeitadíssimo intelectual Cacá Diegues.

    Confira o prefácio:

    Para se ler um texto como este, como convém, não se deve correr atrás das frases e das palavras como animais que acabam de escapar do cercadinho em que vivem. E não convém correr, não adianta correr. As citações se impõem independente das relações delas com o que as antecedeu.
    Curioso que, na jovem literatura brasileira, há uma evidente tendência de fabricar mistérios no que é simples, mas este texto fabrica uma emoção literária bem oposta – o que é simples reage criando complexidades nos vocábulos que se articulam em frases aparentemente comuns.
    O que serve de alimento para suas citações, interpretações e aparentes conflitos não é, muitas vezes, o que deseja o autor original, tentando explicar o que não consegue entender no mundo diante dele. Uma espécie de negação daquilo que se foi buscar nos textos, o aproveitamento de palavras/ideias que não são as do autor para ilustrar sua angústia, iluminar pelo oposto o que se sente de verdade diante do mundo e das dificuldades que ele constrói para nós, quando menos esperamos. E nós não esperamos nada, nunca; embora isso dependa do momento em que vivemos.
    A literatura de Mauricio Murad é a fonte em que ele vai buscar suas ideias para hoje e para sempre. Um aproveitamento que se deseja contaminado pelo que ele pensou, até aqueles autores originais surgirem em sua vida.
    Como nem sempre é possível explicar por que aqueles desenhos de vida estão lhe interessando, o rompimento com o que é dito pelos outros pensadores se transforma numa manipulação muito bem-sucedida, enriquecendo com a soma disso tudo, o que para o autor devia ser só dele. O homem é sempre o resultado daquilo que ele pensa, somado ao que não quer pensar.
    Não sei se o que escrevi acima serve de algum modo ao leitor. Embora leia muito e de tudo um pouco, não tenho o direito de me meter em certos campos da ficção literária, não fui convenientemente preparado para isso.
    No fundo de seu coração, Mauricio Murad acha que podia transformar tudo isso numa espécie de filme. Mas o texto, como está, não me parece cinematográfico. É impossível filmar só ideias. Mas tudo no mundo pode virar cinema, inclusive esse passeio pela filosofia dos tempos modernos e os sonhos (ou pesadelos) que ela provoca. Para fazer isso, basta esquecer o que está feito em benefício dos sonhos que estão por trás das frases escritas. Aí elas têm que virar imagem e o resto do filme, frases afogadas em ideias que as construíram. Isso é que é arte. Ou a arte que interessa fazer.
    Para simplificar tudo isso, sugiro que quem lê comece essa tentativa de adaptação de uma arte para outra, pela última citação shakespeariana, uma bela e esperta síntese do que se encontra no clímax do texto. Shakespeare é sempre uma boa síntese de tudo, com um sorriso no canto da boca.

     

    Viagem na primeira classe: (re)encontrando autores imortais, suas obras e personagens

    Autor: Mauricio Murad

    Lançamento da obra dia 16 de dezembro, às 16h00, na Livraria FGV.

  • Postado por editora em em 30/09/2022 - 15:07

    Os estudos que compõem este livro pretendem pensar o arquivo e a história do cinema por meio dos outros filmes, explorando caminhos que, partindo da heterogeneidade e irredutibilidade das imagens em movimento, nos podem levar em várias direções. O arquivo liga-nos aos passados que vingaram
    no presente, mas também aos que o falharam e que agora reemergem, inspirando novas obras e pesquisas.

    Para marcar o lançamento desta obra, vamos promover um bate-papo com a presença de Thais Blank, professora da FGV CPDOC, Patricia Machado, professora da PUC Rio, Leandro Pimentel, professor da UERJ e Celso Castro, professor da FGV CPDOC, que possuem textos nesta publicação, na Blooks Livraria, dia 27/10, às 19h.

    Confira a introdução da obra:

    Os arquivos de imagens em movimento vistos à luz dos outros filmes: perspectivas de análise e desafios

     

    Esse livro resulta do trabalho desenvolvido ao longos dos últimos oito anos no âmbito do Grupo de Trabalho (GT) Outros Filmes, da Associação dos Investigadores da Imagem em Movimento (AIM). O GT foi criado em 2013 e encontrou nos Encontros da AIM um espaço regular de apresentação e discussão das pesquisas (muitas vezes preliminares ou ainda em curso) dos seus membros. Inicialmente, moveu-nos uma inquietação: como pesquisadores interessados pelas imagens não canônicas do cinema, percebíamos que existiam poucos espaços institucionais onde podíamos compartilhar nosso trabalho e percorrer juntos novos caminhos de pesquisa. Em um primeiro momento o uso do termo outros filmes causou um certo estranhamento. Que filmes seriam estes? De que seria composta essa alteridade do cinema? O que uniria essas imagens nesse guarda-chuva da alteridade? Alteridade constituída em relação a quem? Para haver o outro é preciso haver também um ponto de vista hegemônico; que hegemonia seria essa?

    Ao longo desses anos, nos encontros do GT, mas também nos trabalhos que fomos desenvolvendo, paralelamente à AIM, em várias geografias (Portugal, Brasil, França, Espanha), esses questionamentos foram tomando forma. Passado esse tempo, podemos afirmar que o campo dos outros filmes constitui-se como um campo de pesquisa interdisciplinar voltado para objetos fílmicos que possuem em comum a marca de terem sido excluídos das grandes narrativas e da historiografia clássica do cinema. Filmes institucionais, filmes turísticos e de atualidades, imagens amadoras e de câmara de vigilância, filmes científicos e com fins didáticos são exemplos de imagens que ficaram à margem dos estudos cinematográficos tradicionalmente centrados no filme de autor, na ficção e nos formatos de longa-metragem. Podíamos falar de muitos outros (como os filmes de animação ou publicitários), mas os trabalhos que nos chegaram não cobriram o amplo leque de possibilidades que se abre a esta profícua via de análise. Desde cedo, foram três os objetos de estudo que se destacaram nos nossos fóruns: os filmes (de) amadores (e, em especial, os filmes de família); as atualidades filmadas (também conhecidas por “cinejornais”); e os filmes de tipologia variada (documentário ou ficção) que recorrem ao arquivo para se apropriarem de imagens aí existentes, conferindo-lhes novos significados e oferecendo-lhes uma nova vida. Como veremos, esta preferência ou incidência investigativa encontra-se amplamente refletida na organização e nos conteúdos deste livro.

    Ao longo dos últimos anos tornou-se igualmente evidente que os outros filmes, como campo de investigação, possuíam sua própria história. Uma história, como não podia deixar de ser, muito anterior a 2013. As atualidades filmadas, bem como as imagens amadoras, remontam aos inícios do cinema, perdendo-se nesse “caldo” cultural híbrido e intermedial que antecedeu o “segundo nascimento” do cinema como uma instituição — para adotar a tese de André Gaudreault e Philippe Marion. A formação dos primeiros arquivos de imagens em movimento, em meados da década de 1930, bem como da Fédération Internationale des Archives du Film (FIAF), pouco tempo depois, tornaram possível a salvaguarda e conservação de imagens em risco de desaparecimento. O objetivo principal dessas instituições era a troca de cópias, com vista à disseminação de uma história universal do cinema como arte, construída a partir de uma seleção mais ou menos consensual de obras e autores e, consequentemente, da formação de um cânone (Dupin, 2013:44). Mas o sentido de missão patrimonial — muitas vezes aliado ao acaso — acabou por resultar também na recolha e coleção de um outro tipo de imagens — as de não ficção — que cedo se constituíram como uma parte numericamente significativa dos acervos.

    A história da formação e consagração dos estudos de cinema requereria uma seção à parte, que não nos compete aqui fazer, mas é importante sublinhar que essa história se desenvolveu, em grande parte, longe dos arquivos — já para não falar das imagens menores aí guardadas. Os cinejornais representam, de certo modo, um caso à parte. Frequentemente ligados a contextos de guerra e revolução, os cinejornais atraíram desde cedo a atenção de historiadores, cientistas políticos e estudiosos da comunicação, quer pela historicidade que lhes é inerente como testemunhos de uma época, quer pelos usos políticos e ideológicos a que se encontram igualmente associados. História e propaganda (e a relação de ambas com o cinema) têm sido, pois, os principais vetores de análise dos cinejornais. Mais recentemente, assistimos à multiplicação de iniciativas, dispersas por diferentes países e centros de investigação, que buscam chamar atenção para a necessidade da crítica e da história do cinema incorporarem em suas narrativas as imagens de não ficção, não canônicas ou marginais. Nos anos 1990, surge, no contexto anglo-saxão, a discussão em torno dos filmes órfãos, cujos autores são desconhecidos e sobre os quais não são investidos poderes e saberes que garantam sua durabilidade nos arquivos ou na história do cinema. No final da mesma década, são publicados os primeiros trabalhos do francês Roger Odin (1995) e da americana Patricia Zimmermann (1995) sobre o cinema amador. Na França, no mesmo período, foram criadas as primeiras Cinematecas Regionais, interessadas em salvaguardar a cultura local, que acabaram por se configurar como centros de preservação do cinema marginal ou não profissional. Dois outros momentos merecem uma menção, ainda que breve: em 1994, teve lugar, no Nederlands Filmmuseum de Amsterdã, um seminário sobre os primeiros filmes de não ficção da história do cinema; e em 1997, foram iniciados os trabalhos na National Film Preservation Foundation, que assumiu como missão “salvar os filmes americanos que provavelmente não sobreviveriam sem investimento público”.

    Os interesses acadêmico e arquivístico pelas outras imagens têm vindo a alimentar-se mutuamente. A academia passou a produzir teorias e métodos de abordagem para esse cinema que se encontrava, até então, à margem, e os arquivos audiovisuais começaram explicitamente a incorporar em suas agendas de trabalho a missão de salvaguardar e patrimonializar imagens entendidas por muitos como descartáveis. Assim, desenvolveram-se novos aportes teóricos e metodológicos concomitantemente a novas formas de pensar o arquivo, à criação de novos arquivos e — não menos importante — ao acesso de cada vez mais pesquisadores aos arquivos. As pesquisas desenvolvidas no âmbito do GT Outros Filmes são um produto de todas estas movimentações que afetaram, com diferentes graus de intensidade, os mundos acadêmicos e arquivísticos, no que às imagens em movimento dizem respeito, de Portugal e do Brasil. Nos diversos encontros em que participamos, foi evidente a necessidade de realizar uma reflexão profunda, não só acerca das imagens de arquivo que nos interessavam, mas também do próprio arquivo, entendido como um espaço para fora do qual as imagens se lançam em percursos migratórios. A trajetória dos outros filmes está intimamente ligada à história dos arquivos audiovisuais, pois é, em geral, no seio deles — arquivos públicos e privados — que essas imagens sobrevivem. É também no encontro com o arquivo que as imagens ganham novos sentidos, seja pela mão dos pesquisadores seja pela mão dos cineastas, como veremos.

    As pesquisas que integram o GT Outros Filmes, e que compõem este livro, interrogam as imagens a partir não apenas de um ponto de vista estético, mas também da sua materialidade, encarando-as como imagens sobreviventes e migrantes que resistem, apesar de tudo, às ações humanas e do tempo. Como indica Stuart Hall (2016), a “política das imagens” é uma política da representação, num campo onde os sentidos (pessoais, sociais, políticos) estão em permanente disputa. Mas ela é, também, uma política de seleção de visibilidade e permanência — nos arquivos como na história do cinema. Os estudos que compõem este livro propõem revisitar o não canônico, pensar novos objetos e, a partir deles, pensar novas formas do fazer histórico e cinematográfico. Ao revelar as imagens na sua mais crua materialidade, o arquivo acaba também por revelar os limites elásticos e porosos do cinema — esse fenômeno social tão difuso quanto criativo que nos traz ecos de tempos e vidas que já passaram, mas que continuam a assombrar-nos como fantasmas que conosco coabitam.

    O livro divide-se em três partes. A primeira parte, intitulada Outros arquivos, outros filmes, outras histórias, inclui três capítulos que abordam dois tipos de outros filmes — filmes de atualidades, nos dois primeiros casos, e filmes amadores, no terceiro caso — para com eles (re)visitar aspectos da história do Estado Novo português e de dois impérios coloniais, o português e o francês. A abrir a seção, Sofia Sampaio propõe uma leitura empírica das atualidades produzidas para o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN/SNI), nos primeiros anos do Estado Novo. Trata-se da série Jornal Português: Revista Mensal de Actualidades, recentemente editada em DVD pela Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, onde as imagens se encontram depositadas e preservadas. A autora socorre-se da sociologia da cultura e da teoria da comunicação para desenhar um retrato mais fino das relações que se estabeleceram, nesse período, entre o campo cinematográfico e o campo político. Um dos objetivos do texto é devolver ao cinejornal seu estatuto de objeto cinematográfico, reatando-o com a história do cinema (nomeadamente, com o “cinema de atrações”) e resgatando-o a uma tradição de análise cujo enfoque tem sido predominantemente propagandístico. No segundo capítulo, o historiador Marcos Cardão analisa as Atualidades de Angola, produzidas, entre 1957 e 1974, pela seção de publicidade da Direção dos Serviços de Fazenda e Contabilidade de Angola e, a partir de 1959, pelo Centro de Informação e Turismo de Angola (Cita). Num texto que lança algumas notas sobre os desafios do trabalho de investigação em arquivos audiovisuais, o autor seleciona um conjunto de temáticas — o turismo, os lazeres e entretenimentos, os rituais de Estado, certos núcleos de “modernidade” (indústria, planeamento urbanístico, arquitetura, meios de transporte, consumo) — para discutir a “viragem luso-tropical” que marcou o colonialismo tardio português. Não obstante seu papel como caixa de ressonância do poder colonial, Cardão conclui que as Atualidades de Angola “pouco fizeram para validar os postulados do excecionalismo português”.

    No capítulo seguinte, Beatriz Rodovalho aborda três coleções do fundo amador do Forum des Images, para analisar filmes do cirurgião-dentista e cineclubista Charles-Henri Leclerc-d’Orléac; do funcionário público, também cineclubista, Michel Guyot; e de um casal de professores, Alain e Janine Cachia (ele franco-tunisino, ela bretã). Do primeiro, a autora destaca “um filme de viagem peculiar”, que relata a viagem do cidadão francês à Costa do Marfim, em 1958, por ocasião da geminação da sua cidade com uma outra costa-marfinense. A_Proposito_Outros_Filmes.indd 11 04/08/2022 14:41:53
    Rodovalho vê nestas imagens exemplos de um “olhar etnocêntrico”. Já nos filmes de família de Guyot, que mostram as viagens do cineasta amador à Martinica, entre 1969 e 1998, em visita à família da sua esposa, a autora reconhece a capacidade de “ultrapassar fronteiras históricas e transitar pelo espaço simbólico da alteridade”. Por fim, numa análise de maior fôlego, que abarca vários filmes de viagem que a família Cachia realizou entre a Tunísia, a França e o Madagascar, durante as décadas de 1960 e 1970, e que se beneficiou do testemunho (recolhido por e-mail) do cineasta amador, a autora deslinda várias dimensões do filme doméstico — a dimensão mnêmica de “álbum de família”; a dimensão epistolar, de “filme-souvenir”; a dimensão relacional, ou mesmo territorial, em que a câmara amadora se torna um instrumento de construção de “territórios geoafetivos”.
    Ainda que partindo de áreas científicas distintas, quer Cardão quer Rodovalho interrogam o papel das imagens de arquivo (ou das “fontes audiovisuais”) na produção do conhecimento e da historiografia, vendo nelas um potencial complemento ou contraponto aos “objetos impressos” (no caso de Cardão) e às imagens não amadoras (no caso de Rodovalho). Nos três capítulos, os autores confrontam ausências conspícuas e presenças previsíveis, que carecem sempre da interpretação de quem as vê: é o caso das imagens do público, no Jornal Português; das representações da população negra, nas Atualidades de Angola; e das imagens amadoras que sobrepõem o olhar do visitante francês ao “outro”, em território africano (pós)colonial. Apesar das lacunas e aporias que rodeiam este tipo de pesquisa, os três autores desta seção vislumbram no arquivo de imagens em movimento novas possibilidades para a escrita da história — ou mesmo a possibilidade de uma “contra-história” (segundo Rodovalho).

    É na segunda parte, A circulação de imagens e os usos do arquivo, que reunimos quatro textos sobre um dos principais interesses de pesquisa do nosso GT: a migração de imagens para fora do arquivo e os diferentes sentidos que lhes vão sendo atribuídos ao longo das suas trajetórias no tempo e no espaço. Patrícia Machado começa por abordar a produção e circulação clandestina de imagens militantes produzidas no Brasil de 1968, em plena ditadura militar (1964-85).
    A autora concentra sua análise nas imagens amadoras de dois eventos ocorridos nesse ano, no Rio de Janeiro — as cerimônias fúnebres do estudante Edson Luís e a Passeata dos Cem Mil —, filmadas pelos jovens cinéfilos Eduardo Escorel e José Carlos Avellar. Partindo de filmes que usaram esse material bruto — nomeadamente, noticieros do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (Icaic) e documentários do francês Chris Marker, realizados entre 1969 e 1977 — e cruzando diferentes documentos produzidos em sua órbita, aos quais junta entrevistas recentes, Machado recupera a trajetória de imagens que, por décadas, foram dadas como desaparecidas, numa pesquisa que a leva a percorrer os arquivos das cinematecas em São Paulo e Rio de Janeiro, os acervos televisivos da TV Tupi, e o arquivo da produtora franco-belga Slon/Iskra. A autora acaba por identificar “uma rede de circulação de imagens clandestinas” entre o Brasil, Cuba e França, que promete estimular mais pesquisas do gênero.

    No capítulo seguinte, Maíra Bosi lança mão de uma estratégia semelhante para recuperar o sentido e a trajetória dos filmes de família produzidos em Super-8, entre as décadas de 1960 e 1980, na cidade de Fortaleza, e usados no filme de montagem de Danilo Carvalho, Supermemórias (2010). Por meio da análise da obra e do material bruto, bem como da realização de entrevistas ao realizador, aos cineastas amadores e seus familiares, Bosi propõe pensar a representação de Fortaleza nos filmes originais e a que resulta do filme de Carvalho, focando-se nas tensões latentes nas imagens entre o público e o privado. A autora destaca características que associamos a este tipo de filmes e formato — como o “valor de autenticidade”, em resultado de uma certa “precariedade técnica”, ou o “desejo oculto de sair do âmbito privado” — para analisar o potencial crítico do gesto de retomada que (por meio da montagem e da trilha sonora) confronta o espectador com as mudanças abruptas que acometeram a cidade, em grande parte provocadas por uma especulação imobiliária desenfreada. A partir de várias memórias privadas, o filme oferece, assim, uma memória pública a uma cidade que aparenta não a ter, constituindo-se dessa forma como um “lugar de memória”. O ponto alto do capítulo é, sem dúvida, a análise das imagens de demolição da casa de família da cineasta amadora Bárbara Mendes, cujo depoimento revela elementos que teriam permanecido inacessíveis se a autora se tivesse limitado a uma análise das imagens.
    O capítulo seguinte, de Adriana Martins, debruça-se igualmente sobre os processos criativos de ressignificação de imagens públicas e privadas do passado na criação de memórias subjetivas, familiares e coletivas. O objeto de análise é o filme ensaio autobiográfico de Catarina Mourão, A toca do lobo (2015), que procura reconstituir a história do seu avô, o escritor Tomás de Figueiredo (1902-70), a partir de imagens de arquivo (filmes domésticos e álbuns de fotografia) e outros documentos e objetos. À (meta)reflexão da realizadora sobre cinema, A_Proposito_Outros_Filmes.indd 13 04/08/2022  arquivo, história e memória — elaborada no âmbito quer do filme, quer da tese de doutoramento que o acompanha — a autora acrescenta uma reflexão sobre as políticas da memória e esquecimento do Estado Novo português, onde a apropriação de arquivos assumidamente “lacunares” e a construção de “cartografias da memória” mediante uma prática arquivística e cinematográfica criativa ocupam hoje um lugar central.

    Por fim, no último capítulo desta seção, Leandro Pimentel analisa o processo de migração das imagens no contexto televisivo, a partir do programa A revolução não será televisionada, de oito episódios, exibido pela TV USP em agosto de 2002. O autor demonstra como o coletivo ARNST se apropria de imagens produzidas para outros fins para construir, com a linguagem televisiva, uma narrativa contra-hegemônica. Inspirando-se no trabalho de Cildo Meirelles, Inserções em circuitos ideológicos (1970), Pimentel discute o potencial subversivo de várias estratégias de “interrupção” de práticas mediáticas tradicionais (ex.: a previsibilidade das emissões em direto, a edição em continuidade, o respeito pela quarta parede), que deslocam as imagens para fora dos seus contextos originais (ou convencionais) de produção, a fim de provocar a confusão temporária do espectador e estimular seu sentido crítico.
    Como a seção mostra, o estudo da circulação de imagens e dos usos do arquivo é indissociável das questões da memória. Machado sublinha a “precariedade da memória audiovisual brasileira” e a necessidade de preservar as imagens raras que conseguiram chegar até nós por meio de redes clandestinas de circulação de imagens (nas quais as cinematecas e os festivais de cinema desempenharam um papel fundamental). Ainda que de maneira diferente, Bosi e Martins realçam o papel do cinema amador e dos filmes de apropriação ou “retomada” como instrumentos de preservação e construção de memórias privadas “perdidas” (Martins) ou até “ocultas” (Bosi). Para estas três autoras, dos arquivos e da preservação de imagens depende a construção de uma memória coletiva crítica — seja da violência de Estado da ditadura militar, hoje negada por vastos setores da sociedade brasileira (Machado), seja de um capitalismo selvagem de longa duração com efeitos devastadores para uma cidade e seus habitantes (Bosi), seja ainda das instituições repressivas do Estado Novo, que marcaram — e, até certo ponto, ainda marcam — a vivência pública e privada de inúmeros portugueses (Martins). Já Pimentel encontra uma relação mais ativa e politicamente engajada com o arquivo nas intervenções “artivistas”, que recorrem à “pilhagem” de imagens dos média hegemônicos (como a TV) para expor as ideologias naturalizadas, bem como as práticas visuais e sociais “excludentes e alienantes” (nas palavras citadas de Ana Maria Maia), em que eles assentam. Em alguns destes textos, as escolhas metodológicas revelaram-se determinantes para a pesquisa, destacando-se as entrevistas e (no caso de Bosi) a realização de visionamentos dos filmes com as famílias como estratégias para fazer falar o arquivo.

    A terceira e última parte do livro reúne três textos que analisam as imagens e os arquivos audiovisuais como instrumentos científicos e pedagógicos, trazendo para a discussão alguns dos desafios inerentes a essas abordagens. No primeiro desses textos, Thais Blank reflete sobre sua experiência como coordenadora de oficinas de produção audiovisual que têm como principal objetivo a utilização de material de arquivo na criação de novos filmes. O ponto de partida dessa produção é o acervo de entrevistas de história oral e documentos textuais e iconográficos (imagens fixas e em movimento) do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC), especializado na guarda de arquivos pessoais. O capitulo se debruça sobre três documentários que resultaram das oficinas — Almerinda: a luta continua (2015), de Cibele Tenório; A bacharel e o presidente (2015), de Nay Araújo; e As constituintes de 88 (2018), de Gregory Baltz — para pensar os modos de ressignificação das imagens (e do arquivo onde estão depositadas) a partir dos processos de realização destes filmes em contexto de sala de aula. Todos eles “abordam, por diferentes perspetivas, as trajetórias, conquistas e lutas de mulheres que estiveram no centro do poder”. Inspirada nas propostas de Jacques Rancière do cinema como prática emancipatória e nos projetos da Rede Latino-Americana de Cinema e Educação (RedeKino), criada em 2009, Blank defende a ideia de que o encontro entre o arquivo e os diferentes olhares dos participantes das oficinas permite a produção de um local de criação de mundos, onde reside a pedagogia da imagem.
    A busca de um sentido pedagógico para as imagens é um desiderato antigo, como revela o capítulo seguinte, onde Thaís Lara mergulha na trajetória da escritora e professora Ilka Brunhilde Laurito (1925-2012), idealizadora da Cinemateca Infantil e figura central na criação e desenvolvimento do Departamento Infantil da Cinemateca Brasileira. Para a autora, Ilka Laurito projetou o Departamento “para pensar não somente na produção e exibição dos filmes, mas em uma pedagogia para as imagens”, o que faz dela uma pioneira no estudo dos atravessamentos entre cinema, arquivo e educação. Num estudo que cruza documentos de arquivo e entrevistas, a autora traz-nos “uma história não contada” sobre uma vertente do cinema pouco estudada. As principais questões identificadas há mais de 50 anos — a formação de técnicos especializados (nomeadamente, na área da programação); a questão do valor (i.e., do que constitui um “bom” ou “mau” filme); a formação de um acervo adequado; o equilíbrio entre perspetivas nacionais e internacionais — continuam a ser essenciais para pensar o papel das cinematecas nos dias de hoje, como agentes-chave na formação de públicos de cinema que se querem ativos na sua cidadania.

    O livro encerra com um importante capítulo sobre o uso do audiovisual nas ciências sociais. Tendo por base um projeto de pesquisa sobre a memória das ciências sociais no Brasil, Celso Castro e Arbel Griner refletem sobre os desafios e as mudanças que se operaram com a adoção dos registros audiovisuais para a produção de fontes históricas, no âmbito do programa de História Oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (FGV CPDOC). Os autores traçam o histórico desse processo, problematizando seus principais aspectos, entre eles: a resistência a métodos de registro alternativos à gravação em áudio; a falta de familiaridade da equipe com a produção audiovisual; as questões éticas colocadas pela suposta interferência da câmara e pela entrada da dimensão imagética no registro. O projeto veio ampliar o escopo e as possibilidades de um acervo histórico fundado em 1973, que é hoje uma referência internacional, revelando a importância da criação (e preservação) de arquivos que têm “como estrutura central a entrevista”. O capítulo termina com um balanço dos desafios experimentados e aponta para questões futuras associadas à virada digital e ao que ela pode significar no tratamento e na acessibilidade de um acervo que pretende ser “de uso coletivo”.

    Antes de encerrar essa breve apresentação, não podemos deixar de notar os desafios que também nós enfrentamos para produzir este livro. Passaram-se mais de três anos entre sua concepção (quando pensamos, pela primeira vez, em marcar os cinco anos do GT Outros Filmes com uma antologia de textos) e sua publicação. A seleção dos textos foi feita depois de analisadas as propostas submetidas, por convite, pelos membros mais assíduos do GT ou que nele haviam apresentado trabalhos que nos pareciam interessantes para este projeto. Não podemos deixar de agradecer aos oito autores que generosamente nos confiaram seus textos, que gentilmente acederam a reescrevê-los à luz dos comentários dos revisores, que se esforçaram por respeitar nossos prazos e que, muito pacientemente, aguardaram o processo de submissão do manuscrito e responderam às solicitações dos editores, durante a fase de produção. Um sincero e enorme agradecimento é também devido aos membros da comissão científica que leram os textos com atenção e redigiram pareceres com sugestões perspicazes e pertinentes. A comissão científica foi formada por: Carolina Amaral de Aguiar, Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil; Teresa Castro, Université Sorbonne Nouvelle — Paris 3, França; Paulo Cunha, Universidade da Beira Interior, Portugal; Tiago Baptista, Instituto de História Contemporânea (IHC), FCSH-Nova, Portugal; Reinaldo Cardenuto, Universidade Federal Fluminense, Brasil; Lila Foster, Universidade de Brasília, Brasil; Anita Leandro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil; Eduardo Morettin, Universidade de São Paulo, Brasil; Lúcia Monteiro, Universidade Federal Fluminense, Brasil; Manuela Penafria, Universidade da Beira Interior, Portugal; José Quental, Université Paris 8/Institut d’Histoire du temps Présent (IHTP/CNRS)/Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil; Susana Sousa Dias, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Portugal; Robert Stock, Universidade de Konstanz, Alemanha e Rafael de Luna Freire, Universidade Federal Fluminense, Brasil. Sem o contributo de uns e de outros este livro não teria sido possível. O resultado aí está, para ser lido e discutido.

    É nosso intuito, com este livro, contribuir para o avanço e robustecimento do estudo dos outros filmes, dos arquivos de imagens em movimento e das imagens em movimento, em geral, em ambos os lados do Atlântico. Não é demais sublinhar a componente transatlântica que tem acompanhado, desde seu início, o GT, tornando-o um espaço aberto e dinâmico, feito de pontes e partilhas que nos têm enriquecido a todos. Em jeito de conclusão, diríamos que pensar o arquivo por meio dos outros filmes é pensar o cinema com e na história, explorando uma série de caminhos que, partindo da absoluta heterogeneidade e irredutibilidade das imagens em movimento, nos podem levar em várias direções. O arquivo liga-nos aos passados que ajudaram a construir nosso presente — ou que o falharam e foram ficando para trás, esquecidos. Mas também nos liga aos potenciais futuros que, expectantes, aguardam os resultados dos nossos pequenos atos de pesquisa e imaginação.
     

     

    Os arquivos de imagens em movimento vistos à luz dos outros filmes: perspectivas de análise e desafios

    Organizadoras: Thais Blank, Sofia Sampaio

     

  • Postado por editora em em 23/09/2022 - 11:14

    Estamos de volta às feiras de livros presenciais.

    Entre os dias 7 e 9 de outubro, das 10 às 19h, venha nos visitar na Primavera dos Livros do Rio, nos jardins do Museu da República, Catete - Rio.

    Estamos no estande número 6 com diversos livros dos mais variados temas, com mais 57 Editoras.

    O evento cultural incluído este ano no Calendário Oficial da Cidade,  será a maior edição de todos os tempos, com programação cultural intensa e A mulher na política como tema.

     

    Dia 9/10, das 12 às 14h, nossas autoras Fernanda da Escóssia (Invisíveis), Débora Thomé e Hildete Pereira de Melo (Mulheres e poder) participam da mesa Mulheres, poder, políticas públicas, com Renata Costa (candidata a deputada federal nessas últimas eleições) e mediação de Raquel Menezes.

     

     

     

     

  • Postado por editora em em 22/09/2022 - 13:05

     

    O ano de 1922 aglutinou uma sucessão de eventos que mudaram de forma significativa o panorama político e cultural brasileiro. A Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista do Brasil, o movimento tenentista, a criação do Centro Dom Vital, a comemoração do Centenário da Independência e a sucessão presidencial de 1922 foram indicadores importantes dos novos ventos que sopravam, colocando em questão os padrões culturais e políticos da Primeira República. A proposta deste livro é rever como questões cruciais para o país de 1922, após 100 anos, ainda estão ecoando na agenda, no presente.

     

    Confira a apresentação da obra:

    Nos anos 1920, a sociedade brasileira viveu um período de grande efervescência e profundas transformações. Mergulhado numa crise cujos sintomas se manifestaram nos mais variados planos, o país experimentou uma fase de transição cujas rupturas mais drásticas se concretizariam a partir do movimento de 1930.
    O ano de 1922, em especial, aglutinou uma sucessão de eventos que mudaram de forma significativa o panorama político e cultural brasileiro. A Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista do Brasil, o movimento tenentista, a criação do Centro Dom Vital, a comemoração do Centenário da Independência e a própria sucessão presidencial de 1922 foram indicadores importantes dos novos ventos que sopravam, colocando em questão os padrões culturais e políticos da Primeira República. Em meio a tais acontecimentos, foi assinada a criação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1920.
    Passados 100 anos, em 2022 comemora-se o Bicentenário da Independência do Brasil e ao mesmo tempo comemoram-se também vários eventos-chave que marcaram significativamente a história do Brasil.
    A proposta deste livro está focalizada em rever como questões cruciais para o país foram veiculadas no ano de 1922 e, após 100 anos, como ainda estão ecoando na agenda, no presente. Com essa perspectiva, as temáticas relativas às comemorações e memórias assumem um papel importante e nos levam a refletir sobre seus significados em 1922 e como repercutem e são relidos na atualidade.
    Nesse contexto cabe perguntar: o que significa comemorar? Comemoração é a cerimônia destinada a trazer de volta a lembrança de um evento, algo que indica a ideia de uma ligação entre homens e mulheres fundada sobre a memória. Essa ligação também pode ser chamada de identidade.
    E é exatamente porque permitem legitimar e atualizar identidades que as comemorações públicas ocupam um lugar central no universo político contemporâneo. As comemorações em torno de personagens focalizam aniversários de nascimento ou morte. Já os eventos fundadores privilegiam os momentos de fundação de nações, de Estados, instituições, empresas.
    Diante desse quadro, os historiadores procuraram dar respostas que levem em consideração as demandas de memória pela história e, ao mesmo tempo, produzam uma historização crítica da memória. Assim, mesmo reconhecendo o estímulo que a memória dá à história, eles chamam atenção para a função crítica desta última diante da ação inquisitorial da primeira.
    Dessa forma, revisitar os vários eventos e as manifestações de diferentes setores da sociedade brasileira que tiveram lugar em 1922 e nos anos seguintes, estimulados pelo Centenário da Independência, é um caminho instigante para perceber que elementos da memória e da identidade brasileira foram selecionados, exaltados e esquecidos e como agora no Bicentenário estão voltando à tona.
    Alguns pontos de convergência entre essas duas conjunturas podem ser destacados, uma sucessão presidencial marcada por uma crise política e forte polarização, o temor das notícias falsas, a busca de sustentação militar, os efeitos das pandemias e as lutas permanentes pela saúde, educação e combate às desigualdades.
    Apesar dos pontos em comum entre as conjunturas, há também grandes diferenças: a crise política atual e a forte polarização não são, como em 1922, decorrência de embates entre oligarquias que se polarizaram em torno de projetos distintos para o país, pois dizem mais respeito a conflitos entre as classes sociais do país e a polarizações em torno de questões que extrapolam o plano mais estrito da economia. Nesse sentido, a presença de fake news hoje se dá numa escala muito maior do que em 1922, espalhando-se, inclusive, para outros campos além da política, como o da atual pandemia, no que ela também adquire sentidos distintos da pan demia de 1919. Por outro lado, a busca de sustentação militar, em 1922, se defrontava com cisões visíveis nas Forças Armadas, o que hoje não se verifica.
    Com essa orientação este livro reúne 10 trabalhos de 12 autores destinados a revisitar os grandes temas que marcaram 1922 e de forma mais geral a década de 1920.
    O primeiro capítulo, “Sucessão presidencial e crise política em 1922”, apresenta um panorama do contexto político dos anos 1921/22 quando ocorria a acirrada disputa eleitoral entre Arthur Bernardes, apoiado por Minas e São Paulo, candidato da situação, e Nilo Peçanha, da oposição, apoiado pelos estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco. Esse pleito revestiu-se de um caráter especial em consequência da radicalização das duas facções políticas, por meio das tentativas de inviabilização do nome de Bernardes com a divulgação do que poderíamos chamar de fake news da época, as “cartas falsas”, que visavam incompatibilizar o candidato oficial com os militares. O pleito de 1922 ainda buscou mobilizar setores sociais normalmente afastados das disputas eleitorais, setores médios e militares. É nesse contexto que eclodiu a primeira revolta dos tenentes e foi decretado o estado de sítio indicando o clima de conflito que estava marcando as grandes comemorações de 1922.
    O segundo capítulo, de Marly Motta, sobre as comemorações da Independência do Brasil em 1922, tem como objeto de análise as diferentes leituras então feitas sobre a trajetória do país e as dificuldades existentes para que tivesse encontrado seu destino na superação do atraso e para ingressar no concerto das nações modernas. O texto analisa ainda os projetos de futuro desenhados naquele momento, por meio da Exposição Internacional do Centenário visando garantir a inserção do Brasil nos quadros da nova economia mundial do pós-Primeira Guerra.
    O capítulo de Lucia Lippi também focaliza o significado das comemorações do Centenário da Independência elegendo como eixo as relações Brasil/Portugal, o antilusitanismo desenvolvido ao longo das décadas republicanas e em especial a emergência de um forte nacionalismo no país. Um segundo eixo de análise volta-se para o significado da arquitetura como expressão de valorização do passado colonial brasileiro dando origem ao chamado estilo neocolonial que, exibido na Semana de Arte Moderna realizada São Paulo, foi considerado moderno e brasileiro. É importante registrar também o destaque da arquitetura neocolonial dominante em vários pavilhões e eventos realizados na Exposição Internacional do
    Centenário da Independência de 1922. O artigo menciona ainda como as comemorações do Centenário da Independência levaram à valorização e releitura de diferentes passados em São Paulo e no Rio de Janeiro, que deram origem à reinauguração do Museu Paulista em São Paulo e à criação do Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro.
    O quarto capítulo, escrito por Helena Bomeny, dedicado à educação, focaliza os educadores e os debates educacionais que tiveram lugar nos anos 1920. Articulando diferentes temporalidades, o texto retorna aos primeiros tempos da república para estabelecer o quadro desalentador da educação. Em seguida, apresenta as lutas do movimento da chamada Escola Nova nos anos 1920 para chegar aos desafios que continuam em pauta na atualidade.
    No capítulo de Simone Petraglia Kropf e Dominichi Miranda de Sá, “O valor social da ciência e o debate sobre a nação na década de 1920”, o objetivo é analisar as propostas de transformações do trabalho científico e os ideais de reforma social veiculados pela ciência com foco na atuação da Academia Brasileira de Ciências. Partindo da conjuntura comemorativa do Centenário da Independência, o texto recua no tempo para apresentar uma síntese acerca das discussões ao longo da Primeira República sobre o valor da ciência para o progresso nacional e as iniciativas de seus principais cientistas implementadas na década de 1920.
    O capítulo seguinte, de Antonio Augusto Passos Videira, “Ciência e universidade no Rio de Janeiro na década de 1920”, recupera importantes debates travados ao longo da Primeira República sobre a importância da ciência pura voltada para a produção do conhecimento teórico científico.
    Nesse contexto ficam evidenciadas as tensões existentes entre aqueles que defendiam uma abordagem pragmática e utilitarista e os cientistas aglutinados em torno da Associação Brasileira de Ciência, que consideravam que o apoio à ciência pura era a fonte principal de riqueza do país. Para a concretização dessas propostas, era fundamental a criação de universidades onde poderiam ser desenvolvidas políticas científicas consistentes. A luta pela criação da Universidade do Rio de Janeiro visava atingir esses objetivos, mas na prática sua efetivação ficou muito distante daquelas intenções.
    O capítulo sétimo, de Gilberto Hochman, “Depois de uma pandemia: a saúde pública no Brasil nos anos 1920”, tem como objeto as ações governamentais voltadas para enfrentar os problemas de saúde pública no país, especialmente evidenciados com a epidemia da gripe espanhola de 1919. No momento das comemorações do Centenário da Independência em que todos os esforços deveriam estar concentrados em mostrar um país moderno, era fundamental implementar as políticas centralizadoras que por meio do recém-criado Departamento de Saúde Pública atribuíam ao governo federal papel de grande relevância em relação às responsabilidades junto à saúde da população. O artigo chama a atenção ainda para o fato de que, a despeito dos esforços realizados, as expectativas enunciadas durante as comemorações de 1922 não equacionaram os problemas estruturais que caracterizavam a sociedade brasileira, como racismo, desigualdade, mandonismo e violência política. O enfrentamento desses problemas continuaria em pauta ainda por muito tempo.
    O capítulo de Hildete Pereira de Melo e Débora Thomé, “Um olhar de gênero nas comemorações da Independência do Brasil: 1922-2022”, tem como objetivo apresentar um quadro geral das lutas das mulheres pela cidadania no Brasil, tendo como eixo os eventos ocorridos em 1922. Retrocedendo à proclamação da República, as autoras recuperam as lutas feministas por ocasião da Constituição de 1891 para obter o direito de participação política no novo regime e os projetos de lei que pretendiam conquistar a obtenção do sufrágio feminino, ao longo das décadas seguintes. O texto destaca ainda o papel das principais lideranças femininas, especialmente Bertha Lutz, na criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), em 9 de agosto de 1922. Os eventos comemorativos pelo Centenário da Independência do Brasil representaram momentos importantes para ativar as lutas feministas e recolocar em pauta o direito de voto das mulheres.
    O capítulo de Flávio dos Santos Gomes, “Dos ‘negros modernos’: sobre personagens, debates e experiências ausentes, c. 1920, São Paulo”, apresenta um panorama da atuação dos intelectuais negros na década de 1920 por meio da imprensa negra em São Paulo, formada por inúmeros periódicos que defendiam agendas que articulavam narrativas e expectativas de inclusão. Essa militância se tornou especialmente importante considerando as ideias racistas que depois de décadas da abolição continuavam dominantes no cenário político dos anos 1920. As manifestações racistas mostraram-se especialmente chocantes quando, em 1921, emergiram projetos e debates que advogavam promover uma imigração de negros norte-americanos para o país. A reação negativa a essas iniciativas, sob a
    alegação de que uma imigração negra poderia despertar o ódio racial, deixava evidenciado o arraigado preconceito racial e as enormes dificuldades de inclusão da população negra na sociedade brasileira. Numa conjuntura em que estavam em curso eventos políticos e culturais comemorativos pelos 100 anos da Independência do Brasil e ressaltava-se a importância de uma unidade da nação, os negros estariam de fora desse projeto.
    O último capítulo “Tempo, fonografia e o ser moderno com a tecnologia na década de 1920”, de Denise da Silva de Oliveira, procura compreender como era a experiência de escutar som fonográfico há quase 100 anos, quando o fonógrafo e os discos estavam presentes em discursos que buscavam domesticar e institucionalizar essa tecnologia considerada então símbolo da modernidade. No Brasil, o esforço de legitimação da fonografia empreendido por vários atores — de comerciantes a músicos profissionais, de intelectuais brasileiros à Liga das Nações, precursora da ONU — se consolidaria no anseio pela criação de discotecas públicas, cujas bases se encontrariam num ideal de construção de um futuro progressivamente melhor a partir dos avanços tecnológicos vividos no presente, este, de forma ambígua, alicerçado em um passado já bem conhecido e tido como legítimo e mais seguro.
    Com este conjunto de textos, esperamos contribuir para um maior conhecimento da história do Brasil e para as lutas em prol da consolidação da democracia e combate às desigualdades no país.

     

    1922: o passado no presente - permanências e transformações

    Coordenadora: Marieta De Moraes Ferreira

  • Postado por editora em em 31/08/2022 - 12:37

    O livro História do tempo presente: mutações e reflexões, organizado pelas professoras Angélica Müller e Francine Iegelski, reúne dez artigos de 16 historiadores de diferentes países e instituições que apresentam análises do estado atual dos estudos e de temas em pauta acerca da história do tempo presente dentro de suas respectivas agendas de pesquisa, oferecendo uma contribuição de grande relevância ao apresentar novas abordagens e novos problemas para os estudiosos desse campo.
    Na atual conjuntura no Brasil, na qual o processo de polarização tem se radicalizado, inviabilizando o diálogo, os historiadores da história do tempo presente têm um grande desafio e um grande papel a desempenhar.

    Para marcar o lançamento, vamos promover um bate-papo com as organizadoras Angélica Müller, profa. História do Brasil República da UFF, bolsista produtividade CNPq e Jovem Cientista Faperj e Francine Iegelski, profa de Teoria e filosofia da História da UFF, bolsista Jovem Cientista Faperj, com o prof. de Teoria da História da Unirio, Rodrigo Turin e a professora emérita da UFRJ e editora-executiva da FGV Editora, Marieta de Moraes Ferreira, na Livraria FGV (19/9, às 19h).

    Confira a seguir a apresentação da obra:

     

    O interesse pelo tempo presente tem aumentado na medida em que sentimos, cada vez mais, que ele se dilata, se acelera e transforma a ideia que outrora tivemos sobre o que foi o passado e o que poderá ser o futuro. O tempo presente, em outras palavras, tem se tornado cada vez mais opaco para nós, um tempo que é difícil de compreender. Essa impressão de que o presente é algo onipresente e fugidio, avesso às explicações, não é exatamente novidade e foi sentida em vários momentos da história.
    Este livro parte da indagação sobre o que é o tempo presente e como se escreve uma história do tempo presente (HTP), sem ignorar as contradições inerentes a esse desafio colocado para os historiadores. Assumimos, igualmente, a tarefa de pensar em caminhos para se seguir adiante, pois acreditamos que a escrita dessa história chegou a um novo momento, marcado por profundas alterações da própria disciplina histórica, que coincide com a conjuntura turbulenta das últimas décadas, com a passagem do século XX para o século XXI, as instabilidades políticas das primeiras décadas desse século, as crises do sistema capitalista, as mudanças climáticas e as intensas transformações nas relações humanas e sociais desencadeadas pela era digital. A internet, de fato, é um “análogo contemporâneo” do relógio — no sentido que governou as sociedades industrializadas nos dois últimos séculos. Os impactos da tecnologia de informação, como bem demonstrou Robert Hassan (2010:98), assumem padrões diferentes de outrora, uma vez que se mostram determinantes para entender as novas experiências sociais que são voláteis, imprevisíveis e flexíveis, assim como nossa percepção do tempo.
    Não por acaso, a categoria “tempo” tem sido, novamente, objeto de inúmeros estudos nessa última passagem de século nas ciências humanas, a exemplo da história (Hartog, 2003; 2020a; Baschet, 2018; Chakrabarty, 2018), geografia (Harvey, 1997), sociologia (Elias, 1998; Rosa, 2019) e antropologia (Viveiros de Castro, 2011). Essa sensibilidade voltada para a interpretação do tempo como uma experiência, cuja forma foi variando em diferentes sociedades e momentos, foi lida pelo historiador australiano Christopher Clark (2019:17) como um “giro temporal”, comparado ao giro linguístico ocorrido nas ciências e filosofia dos anos 1960 (Rorty, 1992:1-39) e ao giro cultural dos anos 1970 nas ciências humanas e sociais. Também nas artes têm aparecido inúmeras reflexões sobre as mudanças em relação às experiências temporais.
    Dessa maneira, a história do tempo presente, em vez de ficar mergulhada nas águas turvas do presente, pode justamente contribuir para o entendimento das significativas perturbações das nossas relações com o tempo, assim como dos desdobramentos dos múltiplos acontecimentos que nos afetam em diferentes escalas de nossa vida social. São novos desafios para os historiadores, pois essa história requer, de um lado, que avancemos em nossas cronologias e coloquemos em questão periodizações consolidadas com as quais operam diferentes áreas de investigação e, de outro, ela não pode prescindir das reflexões epistemológicas acerca do significado de se analisar acontecimentos que se desenvolvem diante de nossos olhos, quando o historiador se torna testemunha e intérprete da história.

    Este livro partiu de algumas perguntas: quais são as contribuições do continente latino-americano para os estudos de história do tempo presente, campo construído originalmente pelos historiadores europeus? Quais são os desafios, nesse novo cenário em que vivemos, para se fazer uma história do tempo presente? Quais são os temas fundamentais para se pensar o nosso presente? O historiador consegue escrever uma história neutralizando suas paixões políticas? Como pensar os novos tipos de produção de conteúdo, informações e desinformações, veiculadas de forma massificada em diversos tipos de redes na era digital? Qual é o papel social dos historiadores e quais suas implicações éticas nesse novo contexto? Essas questões surgiram acompanhadas da seguinte indagação central: o que tornou possível o nosso presente? Em busca de refletir sobre esses problemas, reunimos historiadores brasileiros, latino-americanos e europeus que também contribuíram com outros temas a esses conectados.
    Fazer uma história sobre eventos que estão se desenrolando requer do historiador colocar o presente em perspectiva temporal, apresentando, assim, o presente na densidade de sua historicidade. Ou seja, acreditamos que uma história do tempo presente se realiza pela relação dialética entre temporalidades: o historiador articula o estudo de diferentes acontecimentos de durações mais curtas e recentes àqueles de durações mais longas e afastadas temporalmente.
    Em seu capítulo, o historiador colombiano Hugo Fazio Vengoa nos apresenta uma reflexão sobre a urgência de se produzir um tipo de saber histórico que permita entender os fenômenos em curso dentro dos seus contextos, levando em conta, ao mesmo tempo, que vivemos em um momento de novas experimentações do tempo. Para tanto, ele decifra cada um dos termos da composição — história, tempo e presente — para apresentá-la de modo conectado às suas reflexões sobre o sentido da contemporaneidade e do que ele chamou de presente histórico.
    A história do tempo presente desenvolve-se em um momento de fortes rupturas e crises: era o mundo saído das duas Grandes Guerras. Na Europa, em especial na França e Alemanha, ela surge da preocupação dos historiadores por entender a “última catástrofe” (Rousso, 2016) vivida, direta ou indiretamente, pela maioria das sociedades ocidentais. Um novo campo de investigação se abria e surgia em reação a uma tragédia a respeito da qual os historiadores assumiram a responsabilidade histórica e social de não se deixar ser esquecida. Assim, nos anos 1970 na França, proliferaram estudos sobre os anos 1930 e 1940, momento de fortalecimento, de um lado, de uma história política renovada, encampada pelo grupo de René Remond, e, de outro, de institucionalização da história do tempo presente, especialmente com a criação do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), em 1978, tendo como uma de suas figuras emblemáticas o historiador François Bédarida.
    Nesses mesmos anos 1970, essas duas vertentes francesas chegam ao Brasil juntamente com a história pública e a história oral, vindas do debate americano. A história oral ganhava relevância — impulsionada sobretudo pelo CPDOC — e o estudo de outros períodos autoritários do passado do país, como a ditadura Vargas, se desenvolve com importantes produções feitas por cientistas sociais e políticos. Escrever uma história do tempo presente sobre a então ditadura militar em vigor não parecia ainda ser possível, nem politicamente, nem epistemologicamente. A forte censura, as perseguições políticas, os desaparecimentos e as mortes realizadas pelo regime contra aqueles que a ele se opunham, somados à ideia compartilhada pela maior parte dos historiadores de que uma análise sobre uma conjuntura em desenvolvimento não poderia atender aos protocolos críticos da produção de conhecimento sobre o passado e o presente recentes, são, para nós, os aspectos mais visíveis dessa então impossibilidade. Marieta de Moraes Ferreira apontou que o boom da história oral, e sua institucionalização nos anos 1990, levou à constatação “da carência de uma reflexão teórica mais sofisticada”. Momento quando “a história oral passou a funcionar como um laboratório de reflexão epistemológica” por conta dos desafios ante as demandas dos testemunhos vivos. Assim, os pesquisadores do campo encontraram nas propostas da história do tempo presente, particularmente nos trabalhos do IHTP, caminhos interessantes para superarem os desafios (Ferreira, 2018:91-92).
    Depois de um período de “militância” por sua existência, nesse contexto dos anos 1970, 1980 e 1990, em que seus praticantes se identificavam quase que pela autodeclaração, foi no início dos anos 2000 que a história do tempo presente se estabeleceu com mais força em nosso cenário historiográfico.

    Enfim, nessa situação já marcada pelo processo de redemocratização do país, essa produção se voltou para os estudos sobre a ditadura militar brasileira, um passado presente em nossa vida política. Uma vasta e frutífera agenda historiográfica foi então produzida, abarcando temas que vão desde as resistências, passando pelos consensos e apoios da sociedade civil à ditadura, até os estudos sobre as estruturas e práticas dos governos militares que acabaram por gerar um debate sobre a natureza do regime.
    Caminho não muito diverso do país vizinho, a Argentina. No capítulo de Marina Franco e Daniel Lvovich, os autores nos mostram que a consolidação do campo da historia reciente também ocorreu na virada desse século, associada aos contextos políticos e memoriais e às transformações ocorridas nas esferas política, pública e judicial. Os temas que marcam essa história são particularmente sensíveis e ligados ao passado ditatorial, evidenciando as questões de direitos humanos, e têm se alastrado até hoje por meio de diferentes análises teóricas e recortes diversos. Historiadores se debruçam sobre uma agenda que apresenta uma relação entre certa maneira de fazer história e uma demanda de justiça. Como demonstram, os estudos sobre o terrorismo de Estado dos anos 1970 são contemporâneos a esse processo e a agenda temática de historia reciente é compartilhada por historiadores, assim como por outros profissionais da área de humanas e ciências sociais.
    De fato, a questão da violência de Estado é uma marca da história do tempo presente latino-americano. Muitos dos seus trabalhos se estruturaram pelo eixo da memória. Eugenia Allier Montaño e Laura Andrea Ferro Higuera, em seu capítulo, demonstram que, de maneira geral, há uma estreita relação entre as temáticas estudadas pelos acadêmicos dos distintos países da América Latina e as temáticas mais debatidas nas distintas arenas públicas nacionais. O foco dessas reflexões recai sobre os debates sobre as violações dos direitos humanos durante as ditaduras militares, conflitos armados internos e regimes autoritários.
    Essa tem sido a principal agenda da produção historiográfica sobre história do tempo presente em nosso continente. A questão da violência continua sendo importante para uma agenda que prescreva uma nova história do tempo presente e que abarque, de modo mais amplo, problemas inerentes ao século XXI, ou seja, que possa tratar de conteúdos e temporalidades que toquem no cerne da vida política, a exemplo da emergência de governos autoritários, da volta da predominância das religiões no cenário político e das transformações que as redes sociais processam no debate público e nas ações 
    de figuras políticas públicas, sem esquecer das questões econômicas e sociais que influenciam esse cenário.
    Consideramos que o conjunto das reflexões aqui reunidas testemunham o avanço das discussões dos historiadores sobre o campo, possibilitando uma evolução, do ponto de vista da abordagem cronológica, e, igualmente, da perspectiva de uma elaboração teórica e metodológica acerca da escrita dessa história. Acreditamos que desde o nosso continente temos uma rica via de possibilidades de produção historiográfica. No caso do Brasil, vem ocorrendo um fortalecimento e amadurecimento da história do tempo presente no último decênio. Entre os diferentes motivos para esse vigor, destaca-se a criação, em 2007, do primeiro programa de pós-graduação em história do tempo presente da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Nesse sentido, em seu capítulo, Silvia Maria Fávero Arend e Reinaldo Lindolfo Lohn nos apresentam não apenas a trajetória desse programa como o caminho percorrido para a construção, a partir de diferentes ferramentas teóricas, de uma perspectiva própria acerca da história do tempo presente e que tem permitido avançar cronologicamente os estudos da área.
    Ademais, Ferreira indicou, a partir da década de 2010, que ocorreu uma mudança no caráter dos estudos de história do tempo presente no país, além do aumento de teses e dissertações que podem ser enquadrados nesse tipo de abordagem, relacionando esse crescimento com a instauração da Comissão Nacional da Verdade e a Lei de Acesso à Informação (Ferreira, 2018:96). Vale igualmente destacar, nesse viés, o livro organizado por Flávia Varella, Helena Mollo, Mateus Pereira e Sérgio da Mata em 2012, Tempo presente e usos do passado. Na introdução da obra, Pereira e Mata apontam uma das obsessões dos intelectuais do século XXI, a saber, as discussões acerca das temporalidades, e afirmam a importância da produção de reflexões sobre o presente das experiências brasileiras e latino-americanas que considerem, mas que possam ir além dos períodos das ditaduras militares e dos regimes autoritários no continente. Eles também apresentam suas reticências em relação à importação do diagnóstico de François Hartog sobre o presentismo para o Brasil, ou seja, circunscrevem-no ao contexto francês e às experiências do tempo da Europa.
    Concordamos com as pontuações de Pereira e Mata. Entretanto, para o caso do Brasil, como apresentamos em nosso capítulo, pensamos que uma forte ruptura ocorreu após o golpe jurídico e parlamentar contra Dilma Rousseff, em 2016, com o apoio decisivo da mídia e dos militares, ajudando a acentuar a percepção de que a década de 2010 foi marcada por profundas transformações das experiências do tempo no país. Ainda mais se considerarmos a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, com a volta pública dos militares ao poder, poderíamos aproximar a experiência do tempo presente brasileiro da experiência europeia, tal como descrita por Hartog, sob o presentismo? Existem traços de continuidade e de ruptura em relação às experiências autoritárias que conhecemos no decorrer do século XX no Brasil, com Getúlio Vargas e depois com a ditadura militar, e os acontecimentos do século XXI, com a chegada do governo Bolsonaro, além dos próprios períodos considerados democráticos? O que dizer das experiências de outros espaços latino-americanos, como a Argentina e o México? A história comparada da historiografia do tempo presente, bem como o estudo de seus lugares e condições de enunciação, inclusive políticas, certamente são fundamentais para o desenvolvimento dessas novas investigações. Não se trata também, necessariamente, da defesa de uma história transnacional, tão em voga. Para além da comparação, integrar as histórias nacionais na paisagem continental pode permitir o aprofundamento de suas diferenças concretas e de suas rupturas e permanências demonstrando, dessa maneira, as originalidades de cada processo. Afinal, identidade e alteridade são um binômio que não podemos perder de vista. Acreditamos que a historiografia latino-americana pode nos oferecer uma perspectiva inovadora para a construção de um novo momento da história do tempo presente.
    A discussão sobre uma história do tempo presente, num contexto presentista, também requer, por parte do historiador, elaborar um diagnóstico sobre como chegamos até aqui. Mas o contexto presentista — de um presente perpétuo — tem inclusive nos levado a questionar o próprio sentido da história, tal como a conhecíamos, desde, ao menos, o século XIX, como nos explicou Michel Foucault (1966:355-398). Em Crer em história, publicado na França em 2013, e em Confrontations avec l’histoire, de 2021, Hartog traz reflexões sobre a dúvida acerca da efetividade do conhecimento histórico que se instaurou desde os anos 1970 e dos debates acadêmicos e não acadêmicos que concorreram para a emergência deste cenário. Em seu capítulo, Hartog reafirma seu diagnóstico sobre o presentismo e aprofunda considerações sobre seus impasses. Se o presente é onipresente no presentismo, a maneira de experimentá-lo não é uniforme: ele pode se configurar tanto como uma experiência estagnante quanto acelerada, a depender do lugar e das condições sociais. A experiência presentista de um homem de negócios é uma, a de um trabalhador desempregado, ou de um migrante que se vê obrigado a sair de seu país para sobreviver, é outra. De toda maneira, o futuro como promessa de tempos melhores parece ter saído de cena e, quando ele acena, é mais como ameaça. Hartog, e pensamos que esse aspecto é fundamental de ser sublinhado, estabelece uma conexão entre o presentismo e a descrença na história, situação que afeta e sufoca nossas sociedades movidas pela história, as chamadas sociedades quentes, como tão bem as definiu teoricamente Claude Lévi-Strauss ainda em meados do século XX (Lévi-Strauss e Charbonnier, 1961:38). Uma história do tempo presente pode nos ajudar a responder reflexivamente a esse presente que parece nos ter tirado perspectivas mais alvissareiras de futuro.
    Os negacionismos de toda a sorte, especialmente aqueles voltados contra as ciências, são um fator importante para a análise de contextos presentistas, marcados, como dissemos, pela falta de fé no futuro. As ciências, em geral, e as ciências humanas, em particular, têm sido atacadas por governos autoritários e grupos obscurantistas. O fato de a pandemia de Covid-19 — designada por alguns pesquisadores como sindemia — ter atingido, praticamente ao mesmo tempo, quase todos os lugares do globo numa duração prolongada maximizou o que o filósofo francês Frédéric Worms (2021) chamou de “viver em tempo real”. Essa realidade que está em andamento e se impondo, dotada de incertezas permanentes, traz consigo uma nova consciência temporal: a de que um outro tempo interrompeu o tempo que vivíamos (Worms, 2021:161). Essa percepção nos acompanha a cada instante da nossa existência de maneira coletiva e, por isso, histórica. Ademais, a pandemia colocou a nu o fato de o sistema capitalista somente sobreviver se continuar a promover um já aprofundado processo de destruição, seja da vida dos humanos, seja da dos não humanos. A crise abarca tudo o que envolve as relações e a existência do próprio homem e da natureza. Muitos trabalhos, sobretudo na antropologia e na filosofia, trataram das transformações na concepção das relações entre cultura e natureza e a deterioração da vida no planeta. Os trabalhos de Philippe Descola (2005), Bruno Latour (2012) e Dipesh Chakrabarty (2009) são importantes referências para o assunto. Em seu capítulo, Rodrigo Turin apresenta um tema que já é incontornável para todos que queiram analisar o tempo presente e que, no entanto, foi pouco discutido pela historiografia brasileira até o momento: os debates sobre o chamado antropoceno. Turin indica como os estudos sobre o antropoceno nos obrigam a pensar numa nova noção de história.
    Se percebemos as mudanças de um ponto de vista conjuntural, também as observamos no plano historiográfico. Por essa razão, retomamos aqui a constatação de que, desde meados dos anos 2000, tem havido uma transformação da produção historiográfica brasileira sustentada em novas pesquisas e debates epistemológicos, teóricos e metodológicos. Assim, não é difícil perceber a ampliação dos objetos, das fontes de pesquisa e o aprofundamento da complexidade de questões tratadas pelos historiadores. Se, de um lado, essas mudanças foram possibilitadas, entre outros fatores, pela abertura de novos acervos, de outro, elas também guardam uma relação com a consolidação da área de teoria da história e de historiografia no Brasil, tendência que começou a aparecer com força desde os anos 1980. Se em alguns lugares da Europa, como na França, a teoria e a história da historiografia parecem estar vivendo um momento de declínio ou recuo na última década (Hartog, 2020b:265), esse não é o caso do Brasil. De toda a maneira, tem havido debates importantes, em diferentes áreas, que contribuíram para esse novo momento da nossa historiografia.
    Para uma nova geração de historiadores, de diferentes áreas, que assumiram seu lugar na pesquisa e no ensino de história no país, fez toda a diferença a oportunidade de realizar parte de sua formação em instituições de diversos países, seja nas Américas, África ou na Europa, o que ocorreu durante os governos Lula e Dilma Rousseff. Esses intercâmbios se fortaleceram com a possibilidade de execução de projetos de pesquisa em redes por meio de financiamentos pelas agências brasileiras, destacando-se a Capes e o CNPq, além das estrangeiras. Esse foi um processo de internacionalização induzido e que surtiu efeitos positivos, diferente das exigências do aumento de produção, por meio da publicação de livros e artigos, a ele associado.
    Desse modo, pensar o fazer historiográfico, o papel da história no presente, bem como o papel do historiador, torna-se crucial. Crucial porque essas necessárias reflexões fazem parte de questões que ainda constituem os temas que compõem os critérios de racionalidade da história como disciplina, tais como as relações entre objetividade e subjetividade, distância e aproximação, parcialidade e imparcialidade, interpretação e julgamento de acontecimentos, além do debate sobre a ação pública do historiador versus o ultra-academicismo. Como escreveu Temístocles Cezar, as discussões acerca do papel do historiador ganham importância ainda mais nesse momento em que a história é reativada no debate público como tribunal, como valor nacional e como expectativa de redenção. Isto é, ela vem sendo animada menos como história disciplina e mais como memória (Cezar, 2018:90).
    O capítulo escrito por Mateus Henrique de Faria Pereira, Thiago Lima Nicodemo e Valdei Lopes de Araujo trata dos impactos que as desinformações criam para o historiador do tempo presente que precisa refletir sobre as novas configurações políticas, e que, muitas vezes, surgem da fabricação de realidades simuladas, como se vê em plataformas do Youtube, Facebook e congêneres. Os autores reafirmam a potencialidade de temporalidades não convencionais para a história que se pensa para além das condições atuais.
    De toda maneira, nosso tempo presente, considerado a partir de diferentes realidades, tem tornado evidente a aparição de governos cada vez mais autoritários — mesmo nas democracias antes consideradas as mais fortalecidas — que propagam embustes e inverdades históricas, ou que cometem abusos em relação à história, tal como nos descreve Antoon De Beats. Em seu capítulo, o historiador holandês aborda como essas conjunturas de instabilidades democráticas afetam a produção da escrita da história e o nosso papel como historiadores na construção da consciência histórica. Argumenta também a favor da importância do trabalho dos historiadores nos processos de justiça de transição como condição para debelar injustiças históricas.
    Nesse contexto, os historiadores retomam as reflexões sobre uma escrita ética da história. O que, para nós, implica a tarefa do historiador de investigar e oferecer uma interpretação sobre o significado dos acontecimentos para a história, algo que vai além de elencar uma constelação de fatos que possuem relações entre si. Se o historiador não deve apenas ocupar o território do passado, ele também não deve ser mais uma voz memorial do presente. As relações entre história como saber e ação pública são o tema do capítulo de Cristophe Prochasson. O historiador francês busca compreender melhor as condições em que atuam os atores políticos ao recorrer à história, os recursos que utilizam e os limites com os quais se encontram confrontados. Segundo Prochasson, a passagem do regime moderno para o presentista traz mudanças substanciais no que diz respeito tanto à análise da história por parte dos historiadores quanto ao uso cada vez mais cliomimético e, por vezes, apologético da história. As dificuldades aumentam quando o próprio historiador é um agente político.
    O historiador do tempo presente atua em um campo em que as múltiplas especialidades — seja o jornalismo, passando pela economia ou pelo direito — também operam. O trabalho do historiador, nesse caso, não pode prescindir das relações com as outras especialidades ou ciências, pois elas elaboram, cada uma a sua maneira, um tipo de abordagem, recorte e problematização do real (Martino, 2003:86-87). Numa história do tempo presente, o diálogo da história com diversas disciplinas se faz fundamental, pois proporciona, ao invés de um conhecimento fragmentado, uma análise mais aprofundada e ampla construída a partir de diversos enfoques sobre um determinado assunto. Esse diálogo deve ser construído não por meio de empréstimos descontextualizados de instrumentos teóricos e metodológicos, mas pela incorporação das reflexões realizadas por outras áreas do conhecimento. Esse processo, a nosso ver, é um dos meios pelos quais o historiador que analisa seu tempo dispõe para prover espessura em sua reflexão (Müller, 2018). Aproveitando a discussão já encampada pelos historiadores Emmanuel Droit e Franz Reichherzer (2013), o que nos parece interessante sublinhar é que essa história não busca a criação de uma nova disciplina. O diálogo com outras áreas serve, outrossim, para reforçar a singularidade da história como disciplina, centrada justamente nas discussões de tempo e temporalidades que nos caracterizam, e, ao contrário da agenda franco-alemã, não abandonar necessariamente uma história do tempo presente nacional baseada nas noções de “eventos”, “acontecimentos” e “momentos”, ligados às catástrofes históricas, mas sim aprofundá-las a partir da simultaneidade de diferentes temporalidades passadas que podem ajudar na inteligibilidade dos passados presentes.

    Outro ponto relevante para mencionar sobre o futuro que se abre para uma nova história do tempo presente é a possibilidade de escrevê-la por meio da história conceitual, considerando tanto conceitos políticos quanto estéticos. A história conceitual pode ser uma abordagem instigante para se pensar o tempo presente porque ela busca entender justamente os conceitos em sua transformação e em sua dimensão transformadora (Fernández-Sebastián, 2021:475). A história conceitual se produz na perspectiva, comungada pela história intelectual, de textualizar os contextos, como apontou Dominick LaCapra (1980:246). Isto é, a história conceitual é capaz de lançar novas e originais possibilidades de entendimento acerca de conjunturas sociais, políticas, econômicas e culturais a partir de conceitos que são produzidos e agem sobre realidades que os excedem. Em relação aos conceitos estéticos, podemos indicar a instigante relação entre história e literatura, em como a ficção ajudou a construir ideias e imagens que estão em ação e são uma via para interpretar o presente latino-americano, a exemplo do realismo mágico, gênero literário que marcou o continente entre os anos 1940 e 1960 (Iegelski, 2021). Uma história conceitual do tempo presente voltada para conceitos políticos usados pelos políticos e por diferentes agentes da esfera política para justificar suas propostas e ações pode se mostrar igualmente instigante. No que se refere à história da república brasileira, o conceito de limpeza, por exemplo, pode ser entendido como um importante fio condutor para se compreender projetos conservadores e reacionários e que possuem o interesse deliberado de “enxugamento” do Estado, ou seja, de privatizações e de desmantelamento de políticas e serviços públicos, associados ao discurso contra a corrupção.
    A história do tempo presente pode apresentar um viés ensaístico, pois ela é escrita em um contexto mais sabidamente volátil. O pensamento brasileiro viu uma importante geração de ensaístas elaborarem suas interpretações do país por meio de uma crítica social, especialmente nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Historiadores, críticos literários e sociólogos, como Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado e Antonio Candido, escreveram ensaios notáveis. Com o desenvolvimento da pós-graduação, a partir dos anos 1970, os ensaios foram minorados pelos historiadores em prol dos artigos científicos e dos livros que apresentam resultados das pesquisas, caminho trilhado para a continuidade do processo de formalização e profissionalização da área. Acreditamos que o historiador do tempo presente pode conjugar os diferentes gêneros de escrita, ensaística e acadêmica, sem prejuízo científico. O ensaio, como já refletiu Theodor Adorno, busca liberar as forças, as formas de conjunções e concreções, do que se nos mostra como um objeto opaco (Adorno, 2003:44).
    É preciso que o historiador assuma seu lugar no presente e que ele seja capaz de analisar contextos históricos mais recentes, com fortes impactos na vida contemporânea. O historiador do tempo presente, ao comunicar a opacidade dessas conjunturas, desencava aquilo que está vivo, oferece uma compreensão não necessariamente fugaz do nosso presente. Talvez, ao contrário, ele proporcione uma interpretação sobre as transformações do presente que nos permitirá entendê-lo para além da transitoriedade dos instantes.

     

     

    História do tempo presente: mutações e reflexões

    Angélica Müller e Francine Iegelski 

     

     

  • Postado por editora em em 10/08/2022 - 14:40

    A partir da Constituição Federal de 1988, a educação básica virou um direito e ganhou uma relevância que nunca teve na agenda pública brasileira, em prol da universalização do acesso e da melhoria da qualidade da escola pública. Nesse cenário, a oferta educacional, que já dependia fortemente da liderança dos estados e municípios, ganhou contornos ainda mais descentralizados, com os governos subnacionais adquirindo importante protagonismo e realizando múltiplas tentativas de reformas de seus sistemas públicos. Considerando que os resultados de reformas educacionais subnacionais têm sido muito heterogêneos, mesmo entre localidades de nível socioeconômico similar, a obra busca evidenciar o porquê dessas diferenças, em particular no que concerne aos caminhos que vêm sendo seguidos por aqueles que destoam positivamente da média - os "pontos fora da curva", tendo como base dois dos mais bem-sucedidos casos brasileiros: as reformas no Ceará e em Pernambuco.

    Considerando que os resultados das reformas educacionais subnacionais têm sido muito heterogêneos, mesmo entre localidades de nível socioeconômico similar, a obra busca evidenciar o porquê dessas diferenças, em particular no que concerne aos caminhos que vêm sendo seguidos por aqueles que destoam positivamente da média, os “pontos fora da curva”, tendo como base dois dos mais bem-sucedidos casos brasileiros: as reformas no Ceará e em Pernambuco.

    Nesse sentido, o livro Pontos fora da curva: por que algumas reformas educacionais no Brasil são mais efetivas do que outras e o que isso significa para o futuro da educação básica, do atual Diretor Executivo do ‘Todos Pela Educação’, Olavo Nogueira Filho, visa não só contribuir para o debate público, mas também servir como referência para subsidiar a tomada de decisão de gestores públicos educacionais na tarefa de promover o fortalecimento dos sistemas educacionais.

     

    Confira a apresentação da obra escrita pelo professor Fernando Luiz Abrucio:

    Pontos fora da curva é um livro que representa bem o perfil híbrido de seu autor. Olavo Nogueira Filho é um pesquisador fino da educação brasileira e trabalha cotidianamente com os atores que formulam e implementam as políticas educacionais em todos os cantos do país, do menor município até o MEC. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, a qual tive o privilégio de orientar, mas também resulta de sua experiência na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e de sua atuação no movimento Todos Pela Educação, ajudando a produzir diagnósticos e prognósticos de vários temas educacionais. Daí o caráter reflexivo e prático do trabalho, que poderá ter impacto tanto no debate acadêmico quanto na definição de estratégias de políticas públicas para políticos e gestores.
    A pergunta central do livro é instigante: qual é o melhor caminho das reformas educacionais, especialmente no Brasil? Como resposta, não se propõe um receituário fechado sobre o que fazer, mas se apresenta uma nova maneira de pensar o como fazer, em particular no que se refere à construção do processo de formulação e sua relação com a implementação. Tendo como base a literatura internacional recente e um amplo diagnóstico das mudanças educacionais brasileiras desde 1988, Olavo selecionou dois casos muito bem-sucedidos de reforma: as políticas educacionais dos estados do Ceará e de Pernambuco.
    O sucesso desses dois casos pode ser constatado de algumas formas. A primeira tem a ver com o avanço de ambos nos indicadores educacionais de larga escala, mormente o Ideb. É impressionante a melhoria no Ceará, particularmente no fundamental, e a realizada em Pernambuco, marcadamente no ensino médio. Esse progresso no aprendizado dos alunos é ainda mais impressionante tomando como base seu ponto de partida: os dois estados não são os mais desenvolvidos do país, muito pelo contrário. Vale ressaltar ainda, como faz Olavo, que os resultados positivos combinaram melhoria da qualidade com maior equidade. O êxito dos casos cearense e pernambucano também se deve ao fato de que outros estados têm se inspirado nos modelos de alfabetização por regime de colaboração – o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic) do Ceará e o do ensino médio em tempo integral em Pernambuco.
    Todos os marcadores de sucesso apresentados são importantes para classificar as experiências de Pernambuco e do Ceará como bem-sucedidas. Mas há um elemento central que é a base do argumento do livro: a forma como foram feitas essas reformas é tão ou mais importante do que seu conteúdo. Olavo elenca cinco características que são essenciais para produzir um caminho reformista efetivo.
    A primeira característica é ter uma governança mais ampla da reforma, envolvendo um conjunto maior de atores. A segunda é articular bem a formulação com a implementação. A terceira é pensar a reforma educacional como um projeto contínuo e de mais longo prazo – a continuidade é uma peça-chave do êxito desses casos. A quarta é ter uma visão sistêmica da política educacional, que se baseie na articulação das partes e não na concentração em um dos elementos, pois o avanço reformista está muito ligado à boa coordenação entre atores e ações governamentais.
    Por fim, o sucesso do caminho reformista dos casos do Ceará e de Pernambuco está numa diretriz mais vinculada à chamada terceira geração de reformas educacionais, cujo ponto central é combinar bem, de um lado, uma ação estratégica no campo dos insumos e suportes educacionais – como a qualificação dos professores, melhoria nos processos de seleção de diretores e apoio maior do estado às secretarias municipais e às escolas – com, de outro, a utilização de instrumentos de incentivo, mensuração e aprendizado frente aos resultados educacionais.
    Olavo realça que só é possível melhorar o desempenho dos sistemas educacionais se houver uma ênfase maior nos meios (ou nos “comos”), o que implica apostar mais numa gestão qualificada dos profissionais da educação, numa articulação constante e colaborativa entre as organizações (particularmente entre a secretaria e as escolas) e entre os entes federativos para aprimorar a relação entre formulação e implementação, num foco mais estratégico na política pedagógica e, como corolário, adotar uma visão sistêmica ampla de todo o processo de mudança.
    A construção do argumento explicativo do sucesso dos casos do Ceará e de Pernambuco já torna o livro de Olavo uma referência fundamental para o debate. Somaria a isso outro aspecto que se destaca no trabalho, que é desmontar sete mitos presentes na discussão sobre reforma educacional no Brasil.
    O primeiro mito é o de que a educação brasileira piorou nos últimos tempos porque não houve reformas adequadas. Na verdade, a partir principalmente de 1988, o Brasil começou um ciclo longo de mudanças que alçaram a política educacional a um novo patamar. Ao contrário do que diz o senso comum, que espalha a ideia de que “boa era a escola pública do passado”, a trajetória histórica do país foi de um processo muito lento de mudança educacional, marcado por um modelo elitista que não garantia o ensino a grande parcela da população e que “expulsava”, de várias maneiras, os mais pobres da escola. Além disso, não havia uma política nacional efetiva nem um financiamento minimamente adequado para a educação básica, de modo que existia um sistema fortemente estadualizado e fragmentado, no qual imperava uma enorme desigualdade territorial de acesso e qualidade de ensino.
    A pesquisa de Olavo ressalta que nunca houve tantas mudanças positivas na educação brasileira quanto no período de 30 anos que vai de 1988 a 2018. A lista de transformações é grande, sendo possível citar alguns aspectos aqui. Houve uma política bem-sucedida de universalização do ensino fundamental, de ampliação dos concluintes do ensino médio, de expansão inédita de educação infantil e, mais recentemente, das creches, além da inclusão de pessoas com deficiência no sistema de ensino regular e a ampliação de alunos pobres e negros no ensino superior. Houve muitos avanços no financiamento, com o Fundef e o Fundeb, ampliação da descentralização municipalista para captar os alunos que as redes estaduais não pegavam, criação de modelos de avaliação dos resultados educacionais, maior qualificação dos professores e a construção de carreiras docentes desvinculadas do processo político clientelista (que era a norma no país), maior participação da sociedade e o surgimento de inovações nas políticas educacionais de governos subnacionais.
    Obviamente que ainda há vários desafios a enfrentar, mas essa primeira geração de reformas colocou a política educacional num novo patamar e, pela primeira vez na história do país e de forma muito atrasada em relação aos países desenvolvidos ou mesmo em contraste com nações vizinhas, constituiu-se um sistema escolar de massa, para todos os brasileiros. Olavo nota ainda, novamente contra o senso comum, que até no campo do desempenho mensurado por avaliações de larga escala houve avanços importantes, que não foram maiores em parte porque nosso ponto de partida era muito ruim no plano da comparação internacional.
    O segundo mito derrubado por Olavo refere-se à ideia de que há um único e redentor tipo de reforma, quase atemporal e mágico. Essa assertiva vale tanto para o conteúdo quanto para o formato dos processos reformistas. O livro mostra que há várias fases de reformismo (primeira, segunda e terceira gerações) e todas elas têm sido importantes para os países melhorarem suas políticas públicas. Se na primeira onda o importante é construir as bases de um sistema educacional de massas, na segunda o ponto central é estabelecer diagnósticos e modelos de avaliação do aprendizado. Ambas são importantes, mas limitadas, de modo que o padrão que ganha hoje força no mundo é aquele que, de forma sistêmica, articula melhor os “comos”, com ênfase na construção de capacidades profissionais, pedagógicas e de governança educacional. Cabe apontar que elementos de cada uma dessas gerações podem ser necessários em contextos específicos.
    Derrubar o segundo mito (o da reforma única e redentora), no fundo, é entender o caráter histórico e contextual das reformas educacionais, mostrando que ao longo do tempo novas questões e temas surgem, e os reformadores têm de ser capazes de aprender com o que se constata ser o melhor caminho daquele momento. De todo modo, Olavo ressalta que, atualmente, o modelo de terceira geração é o mais relevante para os casos mais bem-sucedidos no mundo e se encaixa como uma luva na forma como as reformas ocorreram e tiveram sucesso nos casos cearense e pernambucano.
    Também é preciso abandonar as falsas dicotomias que alimentam boa parte do debate sobre reformas educacionais no Brasil. Esse é um terceiro mito, segundo o qual deve-se optar ou por uma ênfase na valorização dos profissionais da educação, ou buscar resultados, ou então deve-se procurar modelos mais competitivos de reformismo por meio de incentivos aos que têm maior desempenho, ou então se deve apenas procurar maior cooperação entre os atores. O exemplo do Ceará de alfabetização revela o contrário: é possível e necessário combinar profissionalização e apoio às escolas com uma gestão por resultados, do mesmo modo que é possível e desejável compatibilizar a competição com a colaboração.
    Ainda na linha de visões dicotômicas, há outro mito recorrente – o quarto dessa lista –, que é o da concentração das respostas educacionais no nível das secretarias ou no plano das escolas. Centralização excessiva nas mãos dos policymakers versus uma autonomia completa e descoordenada das unidades escolares é o tipo de oposição que se deve evitar. O melhor caminho está na melhor articulação das duas instâncias, numa via de mão dupla.
    O livro de Olavo capta muito bem essa ideia, colocando-se tanto contra a adoção de um modelo uniformizador criado de maneira top-down, como igualmente se contrapõe à crença de que todas as escolas conseguiriam, sozinhas, resolver seus problemas com a mesma efetividade, algo que, num país como o Brasil, seria impossível dada a enorme desigualdade territorial e entre as unidades escolares.
    Para evitar a armadilha de uma visão linear da relação entre formulação e implementação, Olavo mostra que a combinação de planejamento estratégico, apoio e coordenação das secretarias com um modelo de escolas fortes institucionalmente e alicerçadas num trabalho coletivo e colaborativo com os atores que fazem parte de sua dinâmica é a via que favorece o maior sucesso das reformas educacionais – como, aliás, fica claro nos dois casos estudados.
    Um quinto mito reformista vai além da política educacional e abarca muito dos discursos daqueles que pretendem modernizar o Estado brasileiro. Trata-se da ideia de que o melhor caminho das reformas está em fazer mudanças rápidas e “completas”. Essa ideia maximalista aparece igualmente em debates sobre reforma política ou administrativa e vê em qualquer demora, necessidade de diálogo ou de ajuste de rota formas de veto à “verdadeira transformação”. Olavo aponta que as boas experiências pelo mundo e as experiências bem-sucedidas do Ceará e de Pernambuco são, por natureza, incrementais, pois exigem um bom tempo de maturação, com o uso do aprendizado adquirido para corrigir ou aperfeiçoar as propostas ou a implementação.
    Mais do que isso, os sucessos cearense e pernambucano – e poderia citar aqui também os casos do Espírito Santo, de Sobral ou da cooperação intermunicipal da região da Chapada, na Bahia – se devem fortemente à capacidade de criar continuidade de ações, à construção de uma sustentabilidade intertemporal da política educacional. Na verdade, não faltam no Brasil mudanças abruptas em governos locais ou no plano federal, até com medidas corretas para a melhoria do ensino, que foram descontinuadas com a passagem do tempo. Olavo ensina que o mais importante é descobrir como produzir uma longa, coerente e sempre incompleta reforma, capaz de se aperfeiçoar continuamente.
    De forma mais sutil, a leitura do livro desmonta outro mito (o sexto): o de que existe uma forma de gestão que possa ser usada como instrumento neutro em qualquer política pública. Gestão sempre é uma forma de gerenciar que se acopla à lógica de cada setor ou à forma de cada organização. Olavo faz uma leitura que não é tecnocrática da política educacional. A política é importante; o diálogo, o convencimento e o engajamento dos atores são essenciais; a governança adequada, utilizando os meios adaptados à dinâmica do mundo da educação, é imprescindível. Nesse sentido, as reformas que deram certo usaram a gestão a serviço dos objetivos e valores que guiam o ensino público.
    Por fim, o mito mais incrustado no debate nacional é o de que não temos nada a aprender com a experiência brasileira, marcada por um desastre completo. Como sétima mitologia, talvez seja essa a mais daninha para os rumos da nossa política educacional. A análise acurada dos casos do Paic cearense e da escola de tempo integral pernambucana, mostrando suas ideias, trajetória e resultados bem-sucedidos, faz deste livro uma leitura fundamental porque nos livra da síndrome de vira-latas, para lembrar Nelson Rodrigues, que ainda predomina no Brasil. Tais modelos mostram que é possível reformar profundamente a educação mesmo quando as condições iniciais não são as mais favoráveis. Basta entender que a chave do sucesso está nos caminhos reformistas, que oferecem mais um quadro geral de ação do que uma receita de bolo.
    Ao completar sua argumentação, Olavo anuncia que o próximo passo está em disseminar esses modelos reformistas de terceira geração pelo país afora, não só para os governos subnacionais, mas também para o MEC, que nos últimos anos entrou numa agenda completamente estranha aos efetivos problemas educacionais brasileiros. Algumas sementes que se inspiram nos casos cearense e pernambucano já começaram a se espalhar para outros estados, mas a caminhada ainda será longa para expandir e consolidar essa via bem-sucedida de mudança. A leitura e debate do presente livro podem ser uma alavanca poderosa nesse processo transformador da educação brasileira.

     

    Pontos fora da curva: por que algumas reformas educacionais no Brasil são mais efetivas do que outras e o que isso significa para o futuro da educação básica

    Autor: Olavo Nogueira Filho

     

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