Arquivo de Agosto 2022

  • Postado por editora em em 31/08/2022 - 12:37

    O livro História do tempo presente: mutações e reflexões, organizado pelas professoras Angélica Müller e Francine Iegelski, reúne dez artigos de 16 historiadores de diferentes países e instituições que apresentam análises do estado atual dos estudos e de temas em pauta acerca da história do tempo presente dentro de suas respectivas agendas de pesquisa, oferecendo uma contribuição de grande relevância ao apresentar novas abordagens e novos problemas para os estudiosos desse campo.
    Na atual conjuntura no Brasil, na qual o processo de polarização tem se radicalizado, inviabilizando o diálogo, os historiadores da história do tempo presente têm um grande desafio e um grande papel a desempenhar.

    Para marcar o lançamento, vamos promover um bate-papo com as organizadoras Angélica Müller, profa. História do Brasil República da UFF, bolsista produtividade CNPq e Jovem Cientista Faperj e Francine Iegelski, profa de Teoria e filosofia da História da UFF, bolsista Jovem Cientista Faperj, com o prof. de Teoria da História da Unirio, Rodrigo Turin e a professora emérita da UFRJ e editora-executiva da FGV Editora, Marieta de Moraes Ferreira, na Livraria FGV (19/9, às 19h).

    Confira a seguir a apresentação da obra:

     

    O interesse pelo tempo presente tem aumentado na medida em que sentimos, cada vez mais, que ele se dilata, se acelera e transforma a ideia que outrora tivemos sobre o que foi o passado e o que poderá ser o futuro. O tempo presente, em outras palavras, tem se tornado cada vez mais opaco para nós, um tempo que é difícil de compreender. Essa impressão de que o presente é algo onipresente e fugidio, avesso às explicações, não é exatamente novidade e foi sentida em vários momentos da história.
    Este livro parte da indagação sobre o que é o tempo presente e como se escreve uma história do tempo presente (HTP), sem ignorar as contradições inerentes a esse desafio colocado para os historiadores. Assumimos, igualmente, a tarefa de pensar em caminhos para se seguir adiante, pois acreditamos que a escrita dessa história chegou a um novo momento, marcado por profundas alterações da própria disciplina histórica, que coincide com a conjuntura turbulenta das últimas décadas, com a passagem do século XX para o século XXI, as instabilidades políticas das primeiras décadas desse século, as crises do sistema capitalista, as mudanças climáticas e as intensas transformações nas relações humanas e sociais desencadeadas pela era digital. A internet, de fato, é um “análogo contemporâneo” do relógio — no sentido que governou as sociedades industrializadas nos dois últimos séculos. Os impactos da tecnologia de informação, como bem demonstrou Robert Hassan (2010:98), assumem padrões diferentes de outrora, uma vez que se mostram determinantes para entender as novas experiências sociais que são voláteis, imprevisíveis e flexíveis, assim como nossa percepção do tempo.
    Não por acaso, a categoria “tempo” tem sido, novamente, objeto de inúmeros estudos nessa última passagem de século nas ciências humanas, a exemplo da história (Hartog, 2003; 2020a; Baschet, 2018; Chakrabarty, 2018), geografia (Harvey, 1997), sociologia (Elias, 1998; Rosa, 2019) e antropologia (Viveiros de Castro, 2011). Essa sensibilidade voltada para a interpretação do tempo como uma experiência, cuja forma foi variando em diferentes sociedades e momentos, foi lida pelo historiador australiano Christopher Clark (2019:17) como um “giro temporal”, comparado ao giro linguístico ocorrido nas ciências e filosofia dos anos 1960 (Rorty, 1992:1-39) e ao giro cultural dos anos 1970 nas ciências humanas e sociais. Também nas artes têm aparecido inúmeras reflexões sobre as mudanças em relação às experiências temporais.
    Dessa maneira, a história do tempo presente, em vez de ficar mergulhada nas águas turvas do presente, pode justamente contribuir para o entendimento das significativas perturbações das nossas relações com o tempo, assim como dos desdobramentos dos múltiplos acontecimentos que nos afetam em diferentes escalas de nossa vida social. São novos desafios para os historiadores, pois essa história requer, de um lado, que avancemos em nossas cronologias e coloquemos em questão periodizações consolidadas com as quais operam diferentes áreas de investigação e, de outro, ela não pode prescindir das reflexões epistemológicas acerca do significado de se analisar acontecimentos que se desenvolvem diante de nossos olhos, quando o historiador se torna testemunha e intérprete da história.

    Este livro partiu de algumas perguntas: quais são as contribuições do continente latino-americano para os estudos de história do tempo presente, campo construído originalmente pelos historiadores europeus? Quais são os desafios, nesse novo cenário em que vivemos, para se fazer uma história do tempo presente? Quais são os temas fundamentais para se pensar o nosso presente? O historiador consegue escrever uma história neutralizando suas paixões políticas? Como pensar os novos tipos de produção de conteúdo, informações e desinformações, veiculadas de forma massificada em diversos tipos de redes na era digital? Qual é o papel social dos historiadores e quais suas implicações éticas nesse novo contexto? Essas questões surgiram acompanhadas da seguinte indagação central: o que tornou possível o nosso presente? Em busca de refletir sobre esses problemas, reunimos historiadores brasileiros, latino-americanos e europeus que também contribuíram com outros temas a esses conectados.
    Fazer uma história sobre eventos que estão se desenrolando requer do historiador colocar o presente em perspectiva temporal, apresentando, assim, o presente na densidade de sua historicidade. Ou seja, acreditamos que uma história do tempo presente se realiza pela relação dialética entre temporalidades: o historiador articula o estudo de diferentes acontecimentos de durações mais curtas e recentes àqueles de durações mais longas e afastadas temporalmente.
    Em seu capítulo, o historiador colombiano Hugo Fazio Vengoa nos apresenta uma reflexão sobre a urgência de se produzir um tipo de saber histórico que permita entender os fenômenos em curso dentro dos seus contextos, levando em conta, ao mesmo tempo, que vivemos em um momento de novas experimentações do tempo. Para tanto, ele decifra cada um dos termos da composição — história, tempo e presente — para apresentá-la de modo conectado às suas reflexões sobre o sentido da contemporaneidade e do que ele chamou de presente histórico.
    A história do tempo presente desenvolve-se em um momento de fortes rupturas e crises: era o mundo saído das duas Grandes Guerras. Na Europa, em especial na França e Alemanha, ela surge da preocupação dos historiadores por entender a “última catástrofe” (Rousso, 2016) vivida, direta ou indiretamente, pela maioria das sociedades ocidentais. Um novo campo de investigação se abria e surgia em reação a uma tragédia a respeito da qual os historiadores assumiram a responsabilidade histórica e social de não se deixar ser esquecida. Assim, nos anos 1970 na França, proliferaram estudos sobre os anos 1930 e 1940, momento de fortalecimento, de um lado, de uma história política renovada, encampada pelo grupo de René Remond, e, de outro, de institucionalização da história do tempo presente, especialmente com a criação do Instituto de História do Tempo Presente (IHTP), em 1978, tendo como uma de suas figuras emblemáticas o historiador François Bédarida.
    Nesses mesmos anos 1970, essas duas vertentes francesas chegam ao Brasil juntamente com a história pública e a história oral, vindas do debate americano. A história oral ganhava relevância — impulsionada sobretudo pelo CPDOC — e o estudo de outros períodos autoritários do passado do país, como a ditadura Vargas, se desenvolve com importantes produções feitas por cientistas sociais e políticos. Escrever uma história do tempo presente sobre a então ditadura militar em vigor não parecia ainda ser possível, nem politicamente, nem epistemologicamente. A forte censura, as perseguições políticas, os desaparecimentos e as mortes realizadas pelo regime contra aqueles que a ele se opunham, somados à ideia compartilhada pela maior parte dos historiadores de que uma análise sobre uma conjuntura em desenvolvimento não poderia atender aos protocolos críticos da produção de conhecimento sobre o passado e o presente recentes, são, para nós, os aspectos mais visíveis dessa então impossibilidade. Marieta de Moraes Ferreira apontou que o boom da história oral, e sua institucionalização nos anos 1990, levou à constatação “da carência de uma reflexão teórica mais sofisticada”. Momento quando “a história oral passou a funcionar como um laboratório de reflexão epistemológica” por conta dos desafios ante as demandas dos testemunhos vivos. Assim, os pesquisadores do campo encontraram nas propostas da história do tempo presente, particularmente nos trabalhos do IHTP, caminhos interessantes para superarem os desafios (Ferreira, 2018:91-92).
    Depois de um período de “militância” por sua existência, nesse contexto dos anos 1970, 1980 e 1990, em que seus praticantes se identificavam quase que pela autodeclaração, foi no início dos anos 2000 que a história do tempo presente se estabeleceu com mais força em nosso cenário historiográfico.

    Enfim, nessa situação já marcada pelo processo de redemocratização do país, essa produção se voltou para os estudos sobre a ditadura militar brasileira, um passado presente em nossa vida política. Uma vasta e frutífera agenda historiográfica foi então produzida, abarcando temas que vão desde as resistências, passando pelos consensos e apoios da sociedade civil à ditadura, até os estudos sobre as estruturas e práticas dos governos militares que acabaram por gerar um debate sobre a natureza do regime.
    Caminho não muito diverso do país vizinho, a Argentina. No capítulo de Marina Franco e Daniel Lvovich, os autores nos mostram que a consolidação do campo da historia reciente também ocorreu na virada desse século, associada aos contextos políticos e memoriais e às transformações ocorridas nas esferas política, pública e judicial. Os temas que marcam essa história são particularmente sensíveis e ligados ao passado ditatorial, evidenciando as questões de direitos humanos, e têm se alastrado até hoje por meio de diferentes análises teóricas e recortes diversos. Historiadores se debruçam sobre uma agenda que apresenta uma relação entre certa maneira de fazer história e uma demanda de justiça. Como demonstram, os estudos sobre o terrorismo de Estado dos anos 1970 são contemporâneos a esse processo e a agenda temática de historia reciente é compartilhada por historiadores, assim como por outros profissionais da área de humanas e ciências sociais.
    De fato, a questão da violência de Estado é uma marca da história do tempo presente latino-americano. Muitos dos seus trabalhos se estruturaram pelo eixo da memória. Eugenia Allier Montaño e Laura Andrea Ferro Higuera, em seu capítulo, demonstram que, de maneira geral, há uma estreita relação entre as temáticas estudadas pelos acadêmicos dos distintos países da América Latina e as temáticas mais debatidas nas distintas arenas públicas nacionais. O foco dessas reflexões recai sobre os debates sobre as violações dos direitos humanos durante as ditaduras militares, conflitos armados internos e regimes autoritários.
    Essa tem sido a principal agenda da produção historiográfica sobre história do tempo presente em nosso continente. A questão da violência continua sendo importante para uma agenda que prescreva uma nova história do tempo presente e que abarque, de modo mais amplo, problemas inerentes ao século XXI, ou seja, que possa tratar de conteúdos e temporalidades que toquem no cerne da vida política, a exemplo da emergência de governos autoritários, da volta da predominância das religiões no cenário político e das transformações que as redes sociais processam no debate público e nas ações 
    de figuras políticas públicas, sem esquecer das questões econômicas e sociais que influenciam esse cenário.
    Consideramos que o conjunto das reflexões aqui reunidas testemunham o avanço das discussões dos historiadores sobre o campo, possibilitando uma evolução, do ponto de vista da abordagem cronológica, e, igualmente, da perspectiva de uma elaboração teórica e metodológica acerca da escrita dessa história. Acreditamos que desde o nosso continente temos uma rica via de possibilidades de produção historiográfica. No caso do Brasil, vem ocorrendo um fortalecimento e amadurecimento da história do tempo presente no último decênio. Entre os diferentes motivos para esse vigor, destaca-se a criação, em 2007, do primeiro programa de pós-graduação em história do tempo presente da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Nesse sentido, em seu capítulo, Silvia Maria Fávero Arend e Reinaldo Lindolfo Lohn nos apresentam não apenas a trajetória desse programa como o caminho percorrido para a construção, a partir de diferentes ferramentas teóricas, de uma perspectiva própria acerca da história do tempo presente e que tem permitido avançar cronologicamente os estudos da área.
    Ademais, Ferreira indicou, a partir da década de 2010, que ocorreu uma mudança no caráter dos estudos de história do tempo presente no país, além do aumento de teses e dissertações que podem ser enquadrados nesse tipo de abordagem, relacionando esse crescimento com a instauração da Comissão Nacional da Verdade e a Lei de Acesso à Informação (Ferreira, 2018:96). Vale igualmente destacar, nesse viés, o livro organizado por Flávia Varella, Helena Mollo, Mateus Pereira e Sérgio da Mata em 2012, Tempo presente e usos do passado. Na introdução da obra, Pereira e Mata apontam uma das obsessões dos intelectuais do século XXI, a saber, as discussões acerca das temporalidades, e afirmam a importância da produção de reflexões sobre o presente das experiências brasileiras e latino-americanas que considerem, mas que possam ir além dos períodos das ditaduras militares e dos regimes autoritários no continente. Eles também apresentam suas reticências em relação à importação do diagnóstico de François Hartog sobre o presentismo para o Brasil, ou seja, circunscrevem-no ao contexto francês e às experiências do tempo da Europa.
    Concordamos com as pontuações de Pereira e Mata. Entretanto, para o caso do Brasil, como apresentamos em nosso capítulo, pensamos que uma forte ruptura ocorreu após o golpe jurídico e parlamentar contra Dilma Rousseff, em 2016, com o apoio decisivo da mídia e dos militares, ajudando a acentuar a percepção de que a década de 2010 foi marcada por profundas transformações das experiências do tempo no país. Ainda mais se considerarmos a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, com a volta pública dos militares ao poder, poderíamos aproximar a experiência do tempo presente brasileiro da experiência europeia, tal como descrita por Hartog, sob o presentismo? Existem traços de continuidade e de ruptura em relação às experiências autoritárias que conhecemos no decorrer do século XX no Brasil, com Getúlio Vargas e depois com a ditadura militar, e os acontecimentos do século XXI, com a chegada do governo Bolsonaro, além dos próprios períodos considerados democráticos? O que dizer das experiências de outros espaços latino-americanos, como a Argentina e o México? A história comparada da historiografia do tempo presente, bem como o estudo de seus lugares e condições de enunciação, inclusive políticas, certamente são fundamentais para o desenvolvimento dessas novas investigações. Não se trata também, necessariamente, da defesa de uma história transnacional, tão em voga. Para além da comparação, integrar as histórias nacionais na paisagem continental pode permitir o aprofundamento de suas diferenças concretas e de suas rupturas e permanências demonstrando, dessa maneira, as originalidades de cada processo. Afinal, identidade e alteridade são um binômio que não podemos perder de vista. Acreditamos que a historiografia latino-americana pode nos oferecer uma perspectiva inovadora para a construção de um novo momento da história do tempo presente.
    A discussão sobre uma história do tempo presente, num contexto presentista, também requer, por parte do historiador, elaborar um diagnóstico sobre como chegamos até aqui. Mas o contexto presentista — de um presente perpétuo — tem inclusive nos levado a questionar o próprio sentido da história, tal como a conhecíamos, desde, ao menos, o século XIX, como nos explicou Michel Foucault (1966:355-398). Em Crer em história, publicado na França em 2013, e em Confrontations avec l’histoire, de 2021, Hartog traz reflexões sobre a dúvida acerca da efetividade do conhecimento histórico que se instaurou desde os anos 1970 e dos debates acadêmicos e não acadêmicos que concorreram para a emergência deste cenário. Em seu capítulo, Hartog reafirma seu diagnóstico sobre o presentismo e aprofunda considerações sobre seus impasses. Se o presente é onipresente no presentismo, a maneira de experimentá-lo não é uniforme: ele pode se configurar tanto como uma experiência estagnante quanto acelerada, a depender do lugar e das condições sociais. A experiência presentista de um homem de negócios é uma, a de um trabalhador desempregado, ou de um migrante que se vê obrigado a sair de seu país para sobreviver, é outra. De toda maneira, o futuro como promessa de tempos melhores parece ter saído de cena e, quando ele acena, é mais como ameaça. Hartog, e pensamos que esse aspecto é fundamental de ser sublinhado, estabelece uma conexão entre o presentismo e a descrença na história, situação que afeta e sufoca nossas sociedades movidas pela história, as chamadas sociedades quentes, como tão bem as definiu teoricamente Claude Lévi-Strauss ainda em meados do século XX (Lévi-Strauss e Charbonnier, 1961:38). Uma história do tempo presente pode nos ajudar a responder reflexivamente a esse presente que parece nos ter tirado perspectivas mais alvissareiras de futuro.
    Os negacionismos de toda a sorte, especialmente aqueles voltados contra as ciências, são um fator importante para a análise de contextos presentistas, marcados, como dissemos, pela falta de fé no futuro. As ciências, em geral, e as ciências humanas, em particular, têm sido atacadas por governos autoritários e grupos obscurantistas. O fato de a pandemia de Covid-19 — designada por alguns pesquisadores como sindemia — ter atingido, praticamente ao mesmo tempo, quase todos os lugares do globo numa duração prolongada maximizou o que o filósofo francês Frédéric Worms (2021) chamou de “viver em tempo real”. Essa realidade que está em andamento e se impondo, dotada de incertezas permanentes, traz consigo uma nova consciência temporal: a de que um outro tempo interrompeu o tempo que vivíamos (Worms, 2021:161). Essa percepção nos acompanha a cada instante da nossa existência de maneira coletiva e, por isso, histórica. Ademais, a pandemia colocou a nu o fato de o sistema capitalista somente sobreviver se continuar a promover um já aprofundado processo de destruição, seja da vida dos humanos, seja da dos não humanos. A crise abarca tudo o que envolve as relações e a existência do próprio homem e da natureza. Muitos trabalhos, sobretudo na antropologia e na filosofia, trataram das transformações na concepção das relações entre cultura e natureza e a deterioração da vida no planeta. Os trabalhos de Philippe Descola (2005), Bruno Latour (2012) e Dipesh Chakrabarty (2009) são importantes referências para o assunto. Em seu capítulo, Rodrigo Turin apresenta um tema que já é incontornável para todos que queiram analisar o tempo presente e que, no entanto, foi pouco discutido pela historiografia brasileira até o momento: os debates sobre o chamado antropoceno. Turin indica como os estudos sobre o antropoceno nos obrigam a pensar numa nova noção de história.
    Se percebemos as mudanças de um ponto de vista conjuntural, também as observamos no plano historiográfico. Por essa razão, retomamos aqui a constatação de que, desde meados dos anos 2000, tem havido uma transformação da produção historiográfica brasileira sustentada em novas pesquisas e debates epistemológicos, teóricos e metodológicos. Assim, não é difícil perceber a ampliação dos objetos, das fontes de pesquisa e o aprofundamento da complexidade de questões tratadas pelos historiadores. Se, de um lado, essas mudanças foram possibilitadas, entre outros fatores, pela abertura de novos acervos, de outro, elas também guardam uma relação com a consolidação da área de teoria da história e de historiografia no Brasil, tendência que começou a aparecer com força desde os anos 1980. Se em alguns lugares da Europa, como na França, a teoria e a história da historiografia parecem estar vivendo um momento de declínio ou recuo na última década (Hartog, 2020b:265), esse não é o caso do Brasil. De toda a maneira, tem havido debates importantes, em diferentes áreas, que contribuíram para esse novo momento da nossa historiografia.
    Para uma nova geração de historiadores, de diferentes áreas, que assumiram seu lugar na pesquisa e no ensino de história no país, fez toda a diferença a oportunidade de realizar parte de sua formação em instituições de diversos países, seja nas Américas, África ou na Europa, o que ocorreu durante os governos Lula e Dilma Rousseff. Esses intercâmbios se fortaleceram com a possibilidade de execução de projetos de pesquisa em redes por meio de financiamentos pelas agências brasileiras, destacando-se a Capes e o CNPq, além das estrangeiras. Esse foi um processo de internacionalização induzido e que surtiu efeitos positivos, diferente das exigências do aumento de produção, por meio da publicação de livros e artigos, a ele associado.
    Desse modo, pensar o fazer historiográfico, o papel da história no presente, bem como o papel do historiador, torna-se crucial. Crucial porque essas necessárias reflexões fazem parte de questões que ainda constituem os temas que compõem os critérios de racionalidade da história como disciplina, tais como as relações entre objetividade e subjetividade, distância e aproximação, parcialidade e imparcialidade, interpretação e julgamento de acontecimentos, além do debate sobre a ação pública do historiador versus o ultra-academicismo. Como escreveu Temístocles Cezar, as discussões acerca do papel do historiador ganham importância ainda mais nesse momento em que a história é reativada no debate público como tribunal, como valor nacional e como expectativa de redenção. Isto é, ela vem sendo animada menos como história disciplina e mais como memória (Cezar, 2018:90).
    O capítulo escrito por Mateus Henrique de Faria Pereira, Thiago Lima Nicodemo e Valdei Lopes de Araujo trata dos impactos que as desinformações criam para o historiador do tempo presente que precisa refletir sobre as novas configurações políticas, e que, muitas vezes, surgem da fabricação de realidades simuladas, como se vê em plataformas do Youtube, Facebook e congêneres. Os autores reafirmam a potencialidade de temporalidades não convencionais para a história que se pensa para além das condições atuais.
    De toda maneira, nosso tempo presente, considerado a partir de diferentes realidades, tem tornado evidente a aparição de governos cada vez mais autoritários — mesmo nas democracias antes consideradas as mais fortalecidas — que propagam embustes e inverdades históricas, ou que cometem abusos em relação à história, tal como nos descreve Antoon De Beats. Em seu capítulo, o historiador holandês aborda como essas conjunturas de instabilidades democráticas afetam a produção da escrita da história e o nosso papel como historiadores na construção da consciência histórica. Argumenta também a favor da importância do trabalho dos historiadores nos processos de justiça de transição como condição para debelar injustiças históricas.
    Nesse contexto, os historiadores retomam as reflexões sobre uma escrita ética da história. O que, para nós, implica a tarefa do historiador de investigar e oferecer uma interpretação sobre o significado dos acontecimentos para a história, algo que vai além de elencar uma constelação de fatos que possuem relações entre si. Se o historiador não deve apenas ocupar o território do passado, ele também não deve ser mais uma voz memorial do presente. As relações entre história como saber e ação pública são o tema do capítulo de Cristophe Prochasson. O historiador francês busca compreender melhor as condições em que atuam os atores políticos ao recorrer à história, os recursos que utilizam e os limites com os quais se encontram confrontados. Segundo Prochasson, a passagem do regime moderno para o presentista traz mudanças substanciais no que diz respeito tanto à análise da história por parte dos historiadores quanto ao uso cada vez mais cliomimético e, por vezes, apologético da história. As dificuldades aumentam quando o próprio historiador é um agente político.
    O historiador do tempo presente atua em um campo em que as múltiplas especialidades — seja o jornalismo, passando pela economia ou pelo direito — também operam. O trabalho do historiador, nesse caso, não pode prescindir das relações com as outras especialidades ou ciências, pois elas elaboram, cada uma a sua maneira, um tipo de abordagem, recorte e problematização do real (Martino, 2003:86-87). Numa história do tempo presente, o diálogo da história com diversas disciplinas se faz fundamental, pois proporciona, ao invés de um conhecimento fragmentado, uma análise mais aprofundada e ampla construída a partir de diversos enfoques sobre um determinado assunto. Esse diálogo deve ser construído não por meio de empréstimos descontextualizados de instrumentos teóricos e metodológicos, mas pela incorporação das reflexões realizadas por outras áreas do conhecimento. Esse processo, a nosso ver, é um dos meios pelos quais o historiador que analisa seu tempo dispõe para prover espessura em sua reflexão (Müller, 2018). Aproveitando a discussão já encampada pelos historiadores Emmanuel Droit e Franz Reichherzer (2013), o que nos parece interessante sublinhar é que essa história não busca a criação de uma nova disciplina. O diálogo com outras áreas serve, outrossim, para reforçar a singularidade da história como disciplina, centrada justamente nas discussões de tempo e temporalidades que nos caracterizam, e, ao contrário da agenda franco-alemã, não abandonar necessariamente uma história do tempo presente nacional baseada nas noções de “eventos”, “acontecimentos” e “momentos”, ligados às catástrofes históricas, mas sim aprofundá-las a partir da simultaneidade de diferentes temporalidades passadas que podem ajudar na inteligibilidade dos passados presentes.

    Outro ponto relevante para mencionar sobre o futuro que se abre para uma nova história do tempo presente é a possibilidade de escrevê-la por meio da história conceitual, considerando tanto conceitos políticos quanto estéticos. A história conceitual pode ser uma abordagem instigante para se pensar o tempo presente porque ela busca entender justamente os conceitos em sua transformação e em sua dimensão transformadora (Fernández-Sebastián, 2021:475). A história conceitual se produz na perspectiva, comungada pela história intelectual, de textualizar os contextos, como apontou Dominick LaCapra (1980:246). Isto é, a história conceitual é capaz de lançar novas e originais possibilidades de entendimento acerca de conjunturas sociais, políticas, econômicas e culturais a partir de conceitos que são produzidos e agem sobre realidades que os excedem. Em relação aos conceitos estéticos, podemos indicar a instigante relação entre história e literatura, em como a ficção ajudou a construir ideias e imagens que estão em ação e são uma via para interpretar o presente latino-americano, a exemplo do realismo mágico, gênero literário que marcou o continente entre os anos 1940 e 1960 (Iegelski, 2021). Uma história conceitual do tempo presente voltada para conceitos políticos usados pelos políticos e por diferentes agentes da esfera política para justificar suas propostas e ações pode se mostrar igualmente instigante. No que se refere à história da república brasileira, o conceito de limpeza, por exemplo, pode ser entendido como um importante fio condutor para se compreender projetos conservadores e reacionários e que possuem o interesse deliberado de “enxugamento” do Estado, ou seja, de privatizações e de desmantelamento de políticas e serviços públicos, associados ao discurso contra a corrupção.
    A história do tempo presente pode apresentar um viés ensaístico, pois ela é escrita em um contexto mais sabidamente volátil. O pensamento brasileiro viu uma importante geração de ensaístas elaborarem suas interpretações do país por meio de uma crítica social, especialmente nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Historiadores, críticos literários e sociólogos, como Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado e Antonio Candido, escreveram ensaios notáveis. Com o desenvolvimento da pós-graduação, a partir dos anos 1970, os ensaios foram minorados pelos historiadores em prol dos artigos científicos e dos livros que apresentam resultados das pesquisas, caminho trilhado para a continuidade do processo de formalização e profissionalização da área. Acreditamos que o historiador do tempo presente pode conjugar os diferentes gêneros de escrita, ensaística e acadêmica, sem prejuízo científico. O ensaio, como já refletiu Theodor Adorno, busca liberar as forças, as formas de conjunções e concreções, do que se nos mostra como um objeto opaco (Adorno, 2003:44).
    É preciso que o historiador assuma seu lugar no presente e que ele seja capaz de analisar contextos históricos mais recentes, com fortes impactos na vida contemporânea. O historiador do tempo presente, ao comunicar a opacidade dessas conjunturas, desencava aquilo que está vivo, oferece uma compreensão não necessariamente fugaz do nosso presente. Talvez, ao contrário, ele proporcione uma interpretação sobre as transformações do presente que nos permitirá entendê-lo para além da transitoriedade dos instantes.

     

     

    História do tempo presente: mutações e reflexões

    Angélica Müller e Francine Iegelski 

     

     

  • Postado por editora em em 10/08/2022 - 14:40

    A partir da Constituição Federal de 1988, a educação básica virou um direito e ganhou uma relevância que nunca teve na agenda pública brasileira, em prol da universalização do acesso e da melhoria da qualidade da escola pública. Nesse cenário, a oferta educacional, que já dependia fortemente da liderança dos estados e municípios, ganhou contornos ainda mais descentralizados, com os governos subnacionais adquirindo importante protagonismo e realizando múltiplas tentativas de reformas de seus sistemas públicos. Considerando que os resultados de reformas educacionais subnacionais têm sido muito heterogêneos, mesmo entre localidades de nível socioeconômico similar, a obra busca evidenciar o porquê dessas diferenças, em particular no que concerne aos caminhos que vêm sendo seguidos por aqueles que destoam positivamente da média - os "pontos fora da curva", tendo como base dois dos mais bem-sucedidos casos brasileiros: as reformas no Ceará e em Pernambuco.

    Considerando que os resultados das reformas educacionais subnacionais têm sido muito heterogêneos, mesmo entre localidades de nível socioeconômico similar, a obra busca evidenciar o porquê dessas diferenças, em particular no que concerne aos caminhos que vêm sendo seguidos por aqueles que destoam positivamente da média, os “pontos fora da curva”, tendo como base dois dos mais bem-sucedidos casos brasileiros: as reformas no Ceará e em Pernambuco.

    Nesse sentido, o livro Pontos fora da curva: por que algumas reformas educacionais no Brasil são mais efetivas do que outras e o que isso significa para o futuro da educação básica, do atual Diretor Executivo do ‘Todos Pela Educação’, Olavo Nogueira Filho, visa não só contribuir para o debate público, mas também servir como referência para subsidiar a tomada de decisão de gestores públicos educacionais na tarefa de promover o fortalecimento dos sistemas educacionais.

     

    Confira a apresentação da obra escrita pelo professor Fernando Luiz Abrucio:

    Pontos fora da curva é um livro que representa bem o perfil híbrido de seu autor. Olavo Nogueira Filho é um pesquisador fino da educação brasileira e trabalha cotidianamente com os atores que formulam e implementam as políticas educacionais em todos os cantos do país, do menor município até o MEC. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, a qual tive o privilégio de orientar, mas também resulta de sua experiência na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e de sua atuação no movimento Todos Pela Educação, ajudando a produzir diagnósticos e prognósticos de vários temas educacionais. Daí o caráter reflexivo e prático do trabalho, que poderá ter impacto tanto no debate acadêmico quanto na definição de estratégias de políticas públicas para políticos e gestores.
    A pergunta central do livro é instigante: qual é o melhor caminho das reformas educacionais, especialmente no Brasil? Como resposta, não se propõe um receituário fechado sobre o que fazer, mas se apresenta uma nova maneira de pensar o como fazer, em particular no que se refere à construção do processo de formulação e sua relação com a implementação. Tendo como base a literatura internacional recente e um amplo diagnóstico das mudanças educacionais brasileiras desde 1988, Olavo selecionou dois casos muito bem-sucedidos de reforma: as políticas educacionais dos estados do Ceará e de Pernambuco.
    O sucesso desses dois casos pode ser constatado de algumas formas. A primeira tem a ver com o avanço de ambos nos indicadores educacionais de larga escala, mormente o Ideb. É impressionante a melhoria no Ceará, particularmente no fundamental, e a realizada em Pernambuco, marcadamente no ensino médio. Esse progresso no aprendizado dos alunos é ainda mais impressionante tomando como base seu ponto de partida: os dois estados não são os mais desenvolvidos do país, muito pelo contrário. Vale ressaltar ainda, como faz Olavo, que os resultados positivos combinaram melhoria da qualidade com maior equidade. O êxito dos casos cearense e pernambucano também se deve ao fato de que outros estados têm se inspirado nos modelos de alfabetização por regime de colaboração – o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic) do Ceará e o do ensino médio em tempo integral em Pernambuco.
    Todos os marcadores de sucesso apresentados são importantes para classificar as experiências de Pernambuco e do Ceará como bem-sucedidas. Mas há um elemento central que é a base do argumento do livro: a forma como foram feitas essas reformas é tão ou mais importante do que seu conteúdo. Olavo elenca cinco características que são essenciais para produzir um caminho reformista efetivo.
    A primeira característica é ter uma governança mais ampla da reforma, envolvendo um conjunto maior de atores. A segunda é articular bem a formulação com a implementação. A terceira é pensar a reforma educacional como um projeto contínuo e de mais longo prazo – a continuidade é uma peça-chave do êxito desses casos. A quarta é ter uma visão sistêmica da política educacional, que se baseie na articulação das partes e não na concentração em um dos elementos, pois o avanço reformista está muito ligado à boa coordenação entre atores e ações governamentais.
    Por fim, o sucesso do caminho reformista dos casos do Ceará e de Pernambuco está numa diretriz mais vinculada à chamada terceira geração de reformas educacionais, cujo ponto central é combinar bem, de um lado, uma ação estratégica no campo dos insumos e suportes educacionais – como a qualificação dos professores, melhoria nos processos de seleção de diretores e apoio maior do estado às secretarias municipais e às escolas – com, de outro, a utilização de instrumentos de incentivo, mensuração e aprendizado frente aos resultados educacionais.
    Olavo realça que só é possível melhorar o desempenho dos sistemas educacionais se houver uma ênfase maior nos meios (ou nos “comos”), o que implica apostar mais numa gestão qualificada dos profissionais da educação, numa articulação constante e colaborativa entre as organizações (particularmente entre a secretaria e as escolas) e entre os entes federativos para aprimorar a relação entre formulação e implementação, num foco mais estratégico na política pedagógica e, como corolário, adotar uma visão sistêmica ampla de todo o processo de mudança.
    A construção do argumento explicativo do sucesso dos casos do Ceará e de Pernambuco já torna o livro de Olavo uma referência fundamental para o debate. Somaria a isso outro aspecto que se destaca no trabalho, que é desmontar sete mitos presentes na discussão sobre reforma educacional no Brasil.
    O primeiro mito é o de que a educação brasileira piorou nos últimos tempos porque não houve reformas adequadas. Na verdade, a partir principalmente de 1988, o Brasil começou um ciclo longo de mudanças que alçaram a política educacional a um novo patamar. Ao contrário do que diz o senso comum, que espalha a ideia de que “boa era a escola pública do passado”, a trajetória histórica do país foi de um processo muito lento de mudança educacional, marcado por um modelo elitista que não garantia o ensino a grande parcela da população e que “expulsava”, de várias maneiras, os mais pobres da escola. Além disso, não havia uma política nacional efetiva nem um financiamento minimamente adequado para a educação básica, de modo que existia um sistema fortemente estadualizado e fragmentado, no qual imperava uma enorme desigualdade territorial de acesso e qualidade de ensino.
    A pesquisa de Olavo ressalta que nunca houve tantas mudanças positivas na educação brasileira quanto no período de 30 anos que vai de 1988 a 2018. A lista de transformações é grande, sendo possível citar alguns aspectos aqui. Houve uma política bem-sucedida de universalização do ensino fundamental, de ampliação dos concluintes do ensino médio, de expansão inédita de educação infantil e, mais recentemente, das creches, além da inclusão de pessoas com deficiência no sistema de ensino regular e a ampliação de alunos pobres e negros no ensino superior. Houve muitos avanços no financiamento, com o Fundef e o Fundeb, ampliação da descentralização municipalista para captar os alunos que as redes estaduais não pegavam, criação de modelos de avaliação dos resultados educacionais, maior qualificação dos professores e a construção de carreiras docentes desvinculadas do processo político clientelista (que era a norma no país), maior participação da sociedade e o surgimento de inovações nas políticas educacionais de governos subnacionais.
    Obviamente que ainda há vários desafios a enfrentar, mas essa primeira geração de reformas colocou a política educacional num novo patamar e, pela primeira vez na história do país e de forma muito atrasada em relação aos países desenvolvidos ou mesmo em contraste com nações vizinhas, constituiu-se um sistema escolar de massa, para todos os brasileiros. Olavo nota ainda, novamente contra o senso comum, que até no campo do desempenho mensurado por avaliações de larga escala houve avanços importantes, que não foram maiores em parte porque nosso ponto de partida era muito ruim no plano da comparação internacional.
    O segundo mito derrubado por Olavo refere-se à ideia de que há um único e redentor tipo de reforma, quase atemporal e mágico. Essa assertiva vale tanto para o conteúdo quanto para o formato dos processos reformistas. O livro mostra que há várias fases de reformismo (primeira, segunda e terceira gerações) e todas elas têm sido importantes para os países melhorarem suas políticas públicas. Se na primeira onda o importante é construir as bases de um sistema educacional de massas, na segunda o ponto central é estabelecer diagnósticos e modelos de avaliação do aprendizado. Ambas são importantes, mas limitadas, de modo que o padrão que ganha hoje força no mundo é aquele que, de forma sistêmica, articula melhor os “comos”, com ênfase na construção de capacidades profissionais, pedagógicas e de governança educacional. Cabe apontar que elementos de cada uma dessas gerações podem ser necessários em contextos específicos.
    Derrubar o segundo mito (o da reforma única e redentora), no fundo, é entender o caráter histórico e contextual das reformas educacionais, mostrando que ao longo do tempo novas questões e temas surgem, e os reformadores têm de ser capazes de aprender com o que se constata ser o melhor caminho daquele momento. De todo modo, Olavo ressalta que, atualmente, o modelo de terceira geração é o mais relevante para os casos mais bem-sucedidos no mundo e se encaixa como uma luva na forma como as reformas ocorreram e tiveram sucesso nos casos cearense e pernambucano.
    Também é preciso abandonar as falsas dicotomias que alimentam boa parte do debate sobre reformas educacionais no Brasil. Esse é um terceiro mito, segundo o qual deve-se optar ou por uma ênfase na valorização dos profissionais da educação, ou buscar resultados, ou então deve-se procurar modelos mais competitivos de reformismo por meio de incentivos aos que têm maior desempenho, ou então se deve apenas procurar maior cooperação entre os atores. O exemplo do Ceará de alfabetização revela o contrário: é possível e necessário combinar profissionalização e apoio às escolas com uma gestão por resultados, do mesmo modo que é possível e desejável compatibilizar a competição com a colaboração.
    Ainda na linha de visões dicotômicas, há outro mito recorrente – o quarto dessa lista –, que é o da concentração das respostas educacionais no nível das secretarias ou no plano das escolas. Centralização excessiva nas mãos dos policymakers versus uma autonomia completa e descoordenada das unidades escolares é o tipo de oposição que se deve evitar. O melhor caminho está na melhor articulação das duas instâncias, numa via de mão dupla.
    O livro de Olavo capta muito bem essa ideia, colocando-se tanto contra a adoção de um modelo uniformizador criado de maneira top-down, como igualmente se contrapõe à crença de que todas as escolas conseguiriam, sozinhas, resolver seus problemas com a mesma efetividade, algo que, num país como o Brasil, seria impossível dada a enorme desigualdade territorial e entre as unidades escolares.
    Para evitar a armadilha de uma visão linear da relação entre formulação e implementação, Olavo mostra que a combinação de planejamento estratégico, apoio e coordenação das secretarias com um modelo de escolas fortes institucionalmente e alicerçadas num trabalho coletivo e colaborativo com os atores que fazem parte de sua dinâmica é a via que favorece o maior sucesso das reformas educacionais – como, aliás, fica claro nos dois casos estudados.
    Um quinto mito reformista vai além da política educacional e abarca muito dos discursos daqueles que pretendem modernizar o Estado brasileiro. Trata-se da ideia de que o melhor caminho das reformas está em fazer mudanças rápidas e “completas”. Essa ideia maximalista aparece igualmente em debates sobre reforma política ou administrativa e vê em qualquer demora, necessidade de diálogo ou de ajuste de rota formas de veto à “verdadeira transformação”. Olavo aponta que as boas experiências pelo mundo e as experiências bem-sucedidas do Ceará e de Pernambuco são, por natureza, incrementais, pois exigem um bom tempo de maturação, com o uso do aprendizado adquirido para corrigir ou aperfeiçoar as propostas ou a implementação.
    Mais do que isso, os sucessos cearense e pernambucano – e poderia citar aqui também os casos do Espírito Santo, de Sobral ou da cooperação intermunicipal da região da Chapada, na Bahia – se devem fortemente à capacidade de criar continuidade de ações, à construção de uma sustentabilidade intertemporal da política educacional. Na verdade, não faltam no Brasil mudanças abruptas em governos locais ou no plano federal, até com medidas corretas para a melhoria do ensino, que foram descontinuadas com a passagem do tempo. Olavo ensina que o mais importante é descobrir como produzir uma longa, coerente e sempre incompleta reforma, capaz de se aperfeiçoar continuamente.
    De forma mais sutil, a leitura do livro desmonta outro mito (o sexto): o de que existe uma forma de gestão que possa ser usada como instrumento neutro em qualquer política pública. Gestão sempre é uma forma de gerenciar que se acopla à lógica de cada setor ou à forma de cada organização. Olavo faz uma leitura que não é tecnocrática da política educacional. A política é importante; o diálogo, o convencimento e o engajamento dos atores são essenciais; a governança adequada, utilizando os meios adaptados à dinâmica do mundo da educação, é imprescindível. Nesse sentido, as reformas que deram certo usaram a gestão a serviço dos objetivos e valores que guiam o ensino público.
    Por fim, o mito mais incrustado no debate nacional é o de que não temos nada a aprender com a experiência brasileira, marcada por um desastre completo. Como sétima mitologia, talvez seja essa a mais daninha para os rumos da nossa política educacional. A análise acurada dos casos do Paic cearense e da escola de tempo integral pernambucana, mostrando suas ideias, trajetória e resultados bem-sucedidos, faz deste livro uma leitura fundamental porque nos livra da síndrome de vira-latas, para lembrar Nelson Rodrigues, que ainda predomina no Brasil. Tais modelos mostram que é possível reformar profundamente a educação mesmo quando as condições iniciais não são as mais favoráveis. Basta entender que a chave do sucesso está nos caminhos reformistas, que oferecem mais um quadro geral de ação do que uma receita de bolo.
    Ao completar sua argumentação, Olavo anuncia que o próximo passo está em disseminar esses modelos reformistas de terceira geração pelo país afora, não só para os governos subnacionais, mas também para o MEC, que nos últimos anos entrou numa agenda completamente estranha aos efetivos problemas educacionais brasileiros. Algumas sementes que se inspiram nos casos cearense e pernambucano já começaram a se espalhar para outros estados, mas a caminhada ainda será longa para expandir e consolidar essa via bem-sucedida de mudança. A leitura e debate do presente livro podem ser uma alavanca poderosa nesse processo transformador da educação brasileira.

     

    Pontos fora da curva: por que algumas reformas educacionais no Brasil são mais efetivas do que outras e o que isso significa para o futuro da educação básica

    Autor: Olavo Nogueira Filho