50 anos rememorados em 2018, de um ano que ainda marca as gerações que o viveram, influencia as gerações dessas cinco décadas e influenciará as que ainda virão.
A obra 1968 em movimento, coordenada e escrita pela historiadora Angélica Müller, com textos de historiadores e sociólogos de diferentes gerações, como João Roberto Martins Filho, Marcelo Ridenti, Larissa R. Corrêa, Paulo Fontes, Pedro Ernesto Fagundes, Camille Goirand, Gislene Edwiges de Lacerda, Maria Ribeiro do Valle, Gabriela Costa, Maria Julia Dias e Rafael Hagemeyer, pretende trazer outros ângulos de observação e perspectivas sobre o momento daquele ano e sua época.
Entendendo 1968 como chave para o aprofundamento da ditadura militar, o livro apresenta novos enfoques para alguns eventos bastante – e outros pouco – conhecidos.
Sobretudo, dará atenção particular às reações, aos desdobramentos e às heranças que aqueles eventos suscitaram no e ao longo do tempo.
Confira a introdução da obra:
1968 foi um ano crucial, escreveu a jornalista italiana Oriana Fallaci em seu diário (Fallaci, 2017). Crucial pela importância que apresentou na história do século XX. Crucial porque cruzou diferentes formas de contestação e porque nele se cruzaram distintas dimensões do tempo: foi um ano que se espelhou num passado próximo, mas que, sobretudo, projetou futuros diversos. Como evento capital, 68 não pode ser reduzido apenas à sua cronometria: precisa ser entendido através de sua longa duração e questionado no que diz respeito a seus possíveis fins… Por ser crucial, torna-se imperativo reinterpretá-lo 50 anos depois à luz de um presente com pouco ou sem nenhum horizonte de expectativa.
No Brasil, o ano de 1968 continua a pautar o imaginário político, a incentivar narrativas memoriais dos seus participantes e a estimular análises dos acadêmicos. Das interpretações realizadas à chaud, na sequência dos fatos, até os eventos ligados à comemoração dos 40 anos da data, a produção historiográfica brasileira privilegiou os grandes acontecimentos políticos e culturais e a fala de seus grandes personagens, ancorados sobretudo no movimento estudantil e no movimento operário. Do “momento 68”, na curta duração do ano calendário, as perspectivas foram se expandindo para se entender à “época de 1968” através de seu caráter revolucionário (Ridenti, 2009:81-90).
Este livro pretende trazer outros ângulos de observação e perspectivas sobre o momento e sua época. Apresentar os movimentos de 1968 e aqueles que dele derivaram será o fio condutor dos textos aqui reunidos. Entendendo o ano de 1968 no Brasil como chave para o aprofundamento da ditadura militar, a ideia é trazer novos enfoques para alguns eventos bastante, e outros muito pouco, conhecidos. Mas, sobretudo, este livro dará uma atenção particular às reações, aos desdobramentos e heranças que aqueles eventos suscitaram no e ao longo do tempo. Quais foram os contatos, as apropriações e circulações de ideias de um mundo em ebulição que perpassaram pela singularidade do caso brasileiro?
Quais são as permanências (e as rupturas) projetadas na época que continuam presentes até os dias de hoje na nossa sociedade? As diversas gerações de estudantes que se formaram desde então são herdeiras daquela geração? Como é apresentado aquele contexto e as lutas travadas no plano memorial? Como foi rememorado 68 à luz de cada presente nestes últimos 40 anos? Neste percurso, começaremos examinando a trajetória de militarização do regime no Brasil desde o pós-1964 e as formas diversas e heterogêneas de reação do mundo civil, em particular a resistência encampada pelo movimento estudantil, como nos mostrará João Roberto Martins Filho.
Num mundo dominado pela Guerra Fria, a contestação como ideia tornou-se global, estendendo-se desde a radicalidade dos movimentos anarquistas e comunistas do Zangakuren japonês, e passando pelos movimentos de libertação nacional da Argélia, pelo longo ’68 studentesco italiano, pela contracultura e os novos movimentos sociais que surgiram nos Estados Unidos, pela barbárie do Massacre de Tatleloco, no México, até chegar ao Cordobazzo argentino. A historiografia brasileira não cansa, porém, de mostrar as especificidades do nosso caso. Já neste livro, procuramos apresentar as possíveis conexões que diferentes atores brasileiros apresentavam com outros contextos, bem como a circulação de ideias e influências vindas de outros países.
A preocupação dos militares com os estudantes não ficava restrita ao território brasileiro, até mesmo porque outro 68 abalava o mundo: o “maio francês” os inquietava pela desordem e a subversão, especialmente porque em Paris viviam mais de 100 estudantes brasileiros numa casa financiada pelo país na Cidade Universitária, como apresentarei em meu artigo.
O binômio cultura e política, lido numa chave de cultura de contestação, é a marca da época de 1968. Nesse sentido, foi inegável a atração exercida por visões de mundo transformadoras que estavam presentes nas propostas das esquerdas naquele momento e que influenciaram fortemente o campo intelectual, atraindo para sua “órbita” intelectuais e revistas de início mais afinadas com a direita, como analisará Marcelo Ridenti com o caso da Cadernos Brasileiros.
A última obra publicada defendendo a singularidade do caso brasileiro, demonstrando pouco envolvimento com as questões que pautaram o 68 global é a de Hagemeyer (2016).
Se o comportamento e as ações da juventude e do movimento estudantil foram preponderantes naquela conjuntura, não menos importante foi o papel do movimento operário, sobretudo se lembrarmos das greves de Contagem e Osasco. Larissa Corrêa e Paulo Fontes vão além desse auge do 68 operário. Partindo do sindicalismo internacional e especificamente da influência americana, que investiu pesadamente na educação sindical dos trabalhadores latino-americanos, visando a “espalhar as sementes do sindicalismo livre e democrático”, os historiadores repensam os significados do ano para os trabalhadores a partir das ações do regime militar e das reações a ele.
Parafraseando Zuenir Ventura, o ano de 1968 terminou duas vezes para o movimento estudantil. O Ato Institucional no 5, sem dúvida, levou ao fechamento do regime. Mas um episódio que, entre todos os outros, ficou bastante conhecido na história e foi mitificado e glorificado na memória daqueles que o vivenciaram foi o XXX Congresso da UNE, na cidade de Ibiúna. O que poucos conhecem, de fato, são os detalhes da grande operação montada pelas polícias políticas para desbaratar o congresso e os eventos que a partir dela se desenrolaram, trabalho do historiador Pedro Ernesto Fagundes no texto “Operação Ibiúna”.
A socióloga francesa Camille Goirand colocará em perspectiva como o confronto entre manifestantes e policiais nas ruas contribuiu para acelerar o processo de construção de um regime autoritário em 1968, ou para fortalecer a ideia de transição para a democracia no final dos anos 1970. As técnicas eram as mesmas? Ainda comparando uma década com outra, a historiadora Gislene Lacerda tratará das “batalhas” pela construção da memória das gerações de 1968 e 1977. Quem, afinal, derrubou a ditadura?
A memória de uma geração heroica também foi (des)construída pela imprensa. A socióloga Maria Ribeiro do Valle analisará como o jornal O Estado de S. Paulo, que se posicionou contrariamente ao movimento estudantil em 1968 e nas décadas posteriores, reconstruirá a imagem daqueles jovens (e do próprio jornal) por ocasião das comemorações dos 30 anos, num contexto de grande repercussão midiática das manifestações e de fortalecimento da incipiente democracia brasileira.
Já as graduandas em história da UFF Gabriela Costa e Maria Júlia Dias, partindo da edição do dia 18 de janeiro de 2013 d’O Globo, cuja capa anunciava “A nova marcha dos 100 mil”, irão verificar como o jornal reconstruiu sua própria memória dos eventos e como continuou desconstruindo as manifestações contestatórias, lá e aqui.
Por fim, Rafael Hagemeyer nos brindará com um ensaio sobre os significados cambiantes de 1968, sempre reatualizados, e apresentará o encontro de um historiador com seu tema de pesquisa reincidente em diferentes contextos, refletindo, assim, o métier de historiador. Vale registrar, ainda, que 1968 em movimento, como fio vermelho deste livro, foi pensado também para ser um encontro. Aqui cruzam-se diferentes gerações: desde aqueles que viveram as utopias e a radicalidade do “ano mágico” aos que, nas décadas subsequentes, reconstruíram e adequaram propostas que também lá nasceram até chegar aos estudantes de hoje, que ainda estão em formação.
Esse encontro foi propiciado pelas diferentes leituras e abordagens de um tema que continua sendo agenda importante para os pesquisadores. Os historiadores e sociólogos aqui reunidos escreveram no tempo presente à luz de suas experiências de pesquisa e de vida. A todos eles, meu grande agradecimento pela colaboração. Agradeço também o trabalho sempre muito benfeito pela Editora FGV. Um agradecimento mais que especial à sua diretora, professora Marieta de Moraes Ferreira, que ajudou enormemente a delinear o formato deste projeto e acompanhou com dedicação todas as suas etapas. Seu espírito “soixante-huitard”, benévolo e entusiasta, foi fundamental para este livro chegar até você, caro leitor.
O lançamento será dia 16 de outubro, na Blooks Livraria de Botafogo, Rio de Janeiro.