Arquivo de Abril 2022

  • Postado por editora em em 28/04/2022 - 09:38

    A relação entre liberdade de expressão e democracia é inquestionável. Os termos dessa relação são controversos. Neste livro, Owen Fiss se posiciona sobre uma pergunta fundamental: afinal, a que serve a liberdade de expressão em uma democracia? A clareza de seus argumentos ensina que problemas contemporâneos urgentes de liberdade de expressão podem e devem ser tratados com profundidade e coerência.

    Esta obra, organizada por Clarissa Piterman Gross e Ronaldo Porto Macedo Junior, com prefácio de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto, apresenta, de forma clara e acessível para o grande público e em momento mais que oportuno, um debate acerca dos propósitos da liberdade de expressão relevante para diversas questões contemporâneas relacionadas à qualidade da democracia e trata de um tema fundamental para a democracia contemporânea: o papel do Estado na garantia das liberdades de expressão e de imprensa.

    Confira a introdução da obra a seguir: 

    A liberdade de expressão está entre nossos mais estimados direitos, porém ela tem sido o foco de constantes polêmicas. Durante a maior parte deste século, a liberdade de expressão esteve sujeita a inúmeras batalhas judiciais e dividiu profundamente a Suprema Corte. Com efeito, o caso Pentagon Papers, do início dos anos 1970, foi um dos episódios mais contenciosos da história da Suprema Corte, envolvendo uma disputa entre o Attorney General dos Estados Unidos e dois jornais altamente respeitados, o New York Times e o Washington Post, e deixando os juízes em conflito uns com os outros. A liberdade de expressão também foi intensamente debatida em círculos políticos, nos campi da nação e mesmo em torno de mesas de jantar — em contextos que variam desde o julgamento de Sacco e Vanzetti em 1921 à cruzada anticomunista dos anos 1950.

    Para alguns observadores, as controvérsias atuais sobre a liberdade de expressão podem não parecer especialmente relevantes; elas podem até mesmo ser um pouco cansativas. As questões podem ter mudado — ao invés da subversão e da alegada ameaça comunista, nós estamos agora preocupados com tópicos como discurso de ódio (hate speech)* - * a expressão “hate speech” no original será sempre traduzida como “discurso de ódio”. (N. do R.)e financiamento de campanha — mas as divisões e paixões que elas suscitam são todas bastante familiares. Eu acredito, contudo, que tal perspectiva sobre as controvérsias atuais em torno da liberdade de expressão — vendo-as como nada além de uma repetição do passado — é equivocada. Alguma coisa muito mais profunda e muito mais significativa está acontecendo. Nós estamos sendo convidados, ou mesmo intimados, a reexaminar a natureza do Estado moderno e verificar se ele possui algum papel na preservação das nossas liberdades mais básicas.

    Os debates do passado foram baseados na visão de que o Estado era um inimigo natural da liberdade. Era o Estado que estava procurando silenciar o orador (speaker) individual e era o Estado que deveria ser controlado. Há muita sabedoria nesta visão, mas ela representa apenas meia verdade. Certamente, o Estado pode ser um opressor, mas ele pode ser também uma fonte de liberdade. Por meio da consideração de uma ampla variedade de controvérsias sobre liberdade de expressão nas manchetes atuais — discurso de ódio, pornografia, financiamento de campanha, financiamento público das artes e o esforço para ganhar acesso aos meios de comunicação de massa —, eu procurarei explicar por que a tradicional presunção contra o Estado é enganosa e como o Estado poderia se tornar o amigo, ao invés do inimigo, da liberdade.

    Essa visão — inquietante para alguns — está calcada em várias premissas. Uma é o impacto que a concentração de poder privado tem sobre a nossa liberdade; algumas vezes o Estado é necessário apenas para contrapor essas forças. Fundamentalmente, essa visão é predicada em uma teoria da Primeira Emenda e de sua garantia de liberdade de expressão que enfatiza valores sociais ao invés de valores individualistas. A liberdade que o Estado pode ser chamado a promover é uma liberdade pública. Apesar de alguns verem a Primeira Emenda como uma proteção ao interesse individual de autoexpressão, uma teoria muito mais plausível, formulada inicialmente por Alexander Meiklejohn1 e agora abraçada por todo o espectro político, de Robert Bork a Willam Brennan, vê a Primeira Emenda como uma proteção da soberania popular. A intenção da lei é ampliar os termos da discussão pública de forma a possibilitar que cidadãos comuns tomem conhecimento das questões à sua frente e dos argumentos de todos os lados, e, então, persigam seus objetivos com liberdade e plenitude. Uma distinção, portanto, é traçada entre uma teoria libertária e uma teoria democrática da expressão, sendo esta última a que impulsiona meu questionamento sobre os caminhos por meio dos quais o Estado pode potencializar nossa liberdade.

    A visão libertária — de que a Primeira Emenda é uma proteção da autoexpressão — faz um apelo para o éthos individualista que tanto domina nossa cultura popular e nossa cultura política. A liberdade de expressão é vista como análoga à liberdade de religião, que também é protegida pela Primeira Emenda. Todavia, essa teoria não consegue explicar por que os interesses daqueles que produzem o discurso deveriam ter prioridade sobre os interesses dos indivíduos objeto do discurso, ou dos indivíduos que devem escutar o discurso, quando esses dois conjuntos de interesses conflitam. Ela também não consegue explicar por que o direito de liberdade de expressão deveria ser estendido para várias instituições e organizações — CBS, NAACP, ACLU, First National Bank of Boston, Pacific Gas & Electric, Turner Broadcast System, VFW — que são rotineiramente protegidas pela Primeira Emenda, apesar do fato de essas entidades não representarem o interesse individual de autoexpressão. O discurso é tão valorizado pela Constituição, eu sustento, não porque ele é uma forma de autoexpressão ou autorrealização, mas porque ele é essencial para a autodeterminação coletiva. A democracia permite que as pessoas escolham a forma de vida que desejam viver e pressupõe que essa escolha seja feita em um contexto no qual o debate público seja, para usar a agora famosa fórmula do Juiz Brennan, “desinibido, robusto e amplamente aberto”. No original, uninhibited, robust, and wide open. (N. do T.).

    Em algumas instâncias, instrumentos do Estado tentarão inibir o debate livre e aberto, e a Primeira Emenda é o mecanismo testadoe aprovado que impede e previne tais abusos do poder estatal. Em outras instâncias, contudo, o Estado pode ter que agir para promover a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos — distribuir megafones — para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes, simplesmente não há outra forma. O ônus deste livro é explorar quando tais exercícios do poder estatal para alocar e regular são necessários, e como eles podem ser reconciliados com, ou mesmo sustentados por, a Primeira Emenda.

     

    A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública

    Autor: Owen M. Fiss

  • Postado por editora em em 28/04/2022 - 09:20

    Em 1950, o imigrante letão Herberts Cukurs, então proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, foi acusado de ter cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. O "caso Cukurs" logo se tornou conhecido no Brasil e no exterior e mobilizou governos, entidades judaicas e não judaicas, parlamentares e opinião pública. Percorrendo documentos inéditos, disponíveis no Brasil e no exterior, este livro examina a complexa construção do histórico "caso Cukurs", sobretudo a posição das autoridades brasileiras diante dele.

    Confira a seguir o prefácio de Fabio Koifman, professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde leciona nas graduações de história e de relações internacionais.

    UMA DAS HISTÓRIAS QUE ME RECORDO de ouvir em casa durante minha juventude era a que meu pai contava relacionada a uma tarde na qual ele e um grupo de amigos foram à Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro “andar de pedalinhos”. Os pedalinhos eram pequenas embarcações para dois passageiros que, por meio do acionamento de pedais, faziam girar um conjunto de pás que produziam movimento sob a água. De acordo com o relato, sem saber ao certo como, logo que o grupo chegou ao píer um senhor estrangeiro que cuidava da atração os recebeu e rapidamente os identificou como judeus. Em seguida, apontou para eles uma jovem moça que estava em companhia dele, informando que ela também era judia. Durante o passeio, parte do grupo acabou atravessando uma parte do espelho d’água repleto de folhagens que se prenderam ao sistema que produzia o movimento da pequena embarcação, fazendo com que os pedalinhos ficassem parados, sem a possibilidade de movimento, a uma distância razoável da margem. Como outra parte dos membros do grupo não sofreu o mesmo contratempo, alguns dos jovens alertaram o responsável para o fato, esperando que ele tratasse de resgatá-los. A mesma situação ocorria eventualmente com outros usuários e, fazendo uso de um pequeno barco, aquele senhor prontamente se dirigia ao local e soltava os pedalinhos presos nas plantas submersas. O tempo foi passando e, para a surpresa do grupo, o “homem dos pedalinhos” ignorou a desagradável situação dos que permaneciam imóveis em um canto um pouco mais remoto da lagoa sem poder se mexer e não providenciou o resgate.

    Na ausência de ajuda, os jovens buscaram então, eles mesmos, se desprender, e depois de algum esforço obtiveram sucesso sem compreender a razão de terem sido negligenciados. Aborrecidos com o ocorrido, decidiram nunca mais voltar ao lugar. Tempos depois, acreditaram ter lido nos jornais a razão do estranho comportamento do homem e compreendido o tratamento que ele destinou ao grupo: aquele era Herberts Cukurs, um “criminoso de guerra nazista”. Não há dúvida de que a situação pudesse ter decorrido da maneira que foi por mero acaso ou coincidência. Mas em que contexto estavam esses jovens para compreender os atos de um homem acusado de ter sido um cruel assassino?

    Na virada dos anos 1940 para 1950, entre os jovens da comunidade israelita do Rio de Janeiro, o genocídio de que foram vítimas os judeus – que passaria nas décadas seguintes a ser conhecido em português como Holocausto e em hebraico como Shoah (calamidade) – não era considerado um “assunto de criança” ou de jovens adolescentes na faixa de idade deles. Mas foi muitas vezes evidenciado por notícias do desaparecimento de avós, tios e primos que, diferentemente dos pais que imigraram para o Brasil, haviam permanecido na Europa. Depois da Segunda Guerra Mundial, a chegada de alguns parentes ou de pessoas circulando nos espaços comunitários, mesmo que não dividindo com os demais suas histórias e memórias – conforme o mais usual –, menos ainda com os jovens, tinham suas experiências em muitos casos denunciadas pelos estranhos números tatuados nos braços, trazendo para um pouco mais perto ou tornando um pouco mais claras as conversas dos adultos eventualmente escutadas pela metade. A descrição do Holocausto para os mais jovens, de modo geral, era reduzida à informação de que parte da família acabou morta, contabilizada entre os milhões que foram assassinados pelos nazistas.

    Com a revelação de que estaria ali tão próximo na Lagoa Rodrigo de Freitas um homem apontado como um dos responsáveis pela tragédia, era natural que o fato produzisse a reação que suscitou entre alguns dos judeus residentes na cidade. Para o público, assim como para o grupo deixado à deriva nos pedalinhos naquele dia, as versões que apareciam nos jornais já esclareciam e materializavam a figura de um criminoso de guerra.

    Um tema tão sensível e carregado de emoções como esse se prestava e se presta a atrair o público e vender publicações – a incidência do rosto de Hitler em bancas de jornal supera a de Jesus, sendo os dois rostos os mais recorrentes nas capas de revistas, em especial, as que exploram curiosidades –, não necessariamente zelosas com a precisão histórica dos fatos. Já o enfrentamento do assunto por um historiador de ofício, de modo diferente, requer extremo cuidado, boa metodologia, minuciosa e criteriosa pesquisa, complementados por esforço contínuo de estabelecer o necessário distanciamento pessoal e emocional do objeto de estudo. Muitas são as tensões, tentações e os potenciais desvios e influências quando se enfrenta temáticas dessa natureza e complexidade.

    Com tanto interesse do público no assunto, alguns jornalistas se ocuparam dos temas relacionados ao nazismo ou da presença de nazistas no Brasil.

    Não somente eles, como também parte dos historiadores – no mais das vezes, não em textos acadêmicos, mas em entrevistas concedidas aos meios de comunicação – deixou-se seduzir pelo canto da sereia dos holofotes da mídia e lançou mão de um viés denunciativo que, não raro, parece transformar o pesquisador em uma espécie de justiceiro e a História em um tribunal.

    O tema do pós-Segunda Guerra Mundial e a atribuída fuga de expressivo número de criminosos nazistas para o Brasil, talvez pela recorrência com que surgiu também na literatura ficcional e no cinema, não atraiu por muito tempo os historiadores de ofício e acadêmicos. Nas últimas décadas, quando abordado, o objeto atraiu uma prática historiográfica considerada menor, a chamada história denunciativa. Talvez por esse motivo, o tema não tenha feito produzir um número significativo de trabalhos acadêmicos. O risco de terem seus nomes associados à história denunciativa possivelmente desestimulou e afugentou potenciais investigadores que cogitaram debruçar em pesquisas dentro desse assunto.

    Do mesmo modo, enfrentar matéria a respeito da qual a opinião pública já possuía tantas certezas construídas por mitos – como o de que o então governo brasileiro teria atuado premeditadamente no sentido de receber e esconder no país criminosos de guerra nazistas foragidos – demanda trabalho dobrado por parte do pesquisador. Primeiro, é necessário demonstrar as inconsistências e a falta de lastro das versões ficcionais construídas que se repetiram e passaram a constituir o senso comum. A partir disso, efetivamente, narrar e explicar o que, efetivamente, as evidências apontam. Um tema absolutamente inédito ou pouco conhecido não demandaria esse duplo esforço. Tampouco encontraria a resistência de parte do público, que muitas vezes prefere acreditar na versão que lhe parece mais lógica e palatável, mesmo quando essa não possui amparo na investigação de natureza acadêmica.

    Por essa razão, é com entusiasmo que os estudiosos da história do Brasil desse período e demais interessados no tema recebem o trabalho de Bruno Leal, fruto de uma brilhante tese de doutorado em história. Com muita perseverança, disposição, seriedade, rigor e fôlego, o autor encarou o que foi necessário enfrentar em termos de pesquisa documental e fontes. Com um texto objetivo e uma narrativa que não buscou atalhos menos pedregosos nem produziu digressões, apresenta um livro no qual relata, interpreta e explica exclusivamente o que as evidências coletadas em extensa pesquisa respaldam.

    A criatividade é, sem dúvida, uma qualidade humana, do mesmo modo que o são a honestidade intelectual e o rigor científico. O leitor merece sempre ser informado de maneira clara se seus olhos percorrem obras que misturam realidade com ficção ou se, de fato, está lendo um texto historiográfico.

    O presente livro é trabalho de historiador... e dos bons.

     

    O homem dos pedalinhos: Herberts Cukurs - a história de um alegado nazista no Brasil do pós-guerra

    Autor: Bruno Leal Pastor De Carvalho