Arquivo de Abril 2017

  • Postado por editora em em 19/04/2017 - 14:37

    Um dos mais influentes filósofos do século XX, o francês Paul Ricoeur teve a sua obra analisada pelo historiador François Dosse em seu livro “Paul Ricoeur: um filósofo em seu século.

    A obra, que publicamos recentemente, apresenta a trajetória do filósofo que sempre teve um olhar para o futuro com esperança e expectativa, alcançando todos os que estejam interessados nos problemas cruciais da história da segunda metade do século XX e que transbordam para os dias de hoje.

    O trabalho de Ricoeur passa pela articulação das matrizes filosóficas da Europa e do mundo anglo-saxão e fornece uma alternativa para pensarmos a realidade contemporânea e a necessidade de invenção de novas formas de solidariedade entre os homens.

    Sua reflexão é apoiada em três vertentes: a escuta, o engajamento e o distan­ciamento. A escuta como “atenção ao outro”, acolhimento da diferença e da alteridade; o engajamento que não se limita a uma escolha entre opostos, mas busca ser um ponto de vista como o melhor “entre o pior e o medíocre”; e o distanciamento entendido não como síntese de um saber absoluto, mas como questio­namento e tensão de pensar “o mes­mo e o outro, o singular e o universal”.

    De acordo com Ricoeur, da mesma ma­neira que o indivíduo, a sociedade não pode se privar de ter um projeto, um horizonte de expectativa e de esperança, de ser uma fonte potencial de recursos para a construção do futuro, de uma convivência mais har­moniosa e justa. As reflexões e a filosofia de Paul Ricoeur ganham força e mantêm-se cada vez mais atuais e significativas quando tratamos do comportamento humano na sociedade contemporânea.

    Contra o ceticismo, o relativismo e o fatalismo, investido da tarefa de prefigurar o futuro pensando a partir do presente, o livro, a partir dos conceitos de Ricoeur, busca redefinir a dimensão da responsabilidade humana na tarefa de um convívio mais harmonioso e justo no âmbito da vida social.

    Confira a introdução da obra:

    ““Você é incontestável”, disse-lhe um dia Emmanuel Levinas. Paul Rioeur é ao mesmo tempo retidão e abertura ao outro. Graças a uma ascese que sempre foi sua, à sua arte dos meandros, ele terá procurado esclarecer as questões em debate por meio da herança de dois milênios de cultura. Sua simplicidade em grau superior é simultaneamente nele a resultante de uma acumulação cultural e responde à preocupação de permanecer disponível ao outro, à inovação, à busca de mais justiça e de mais humanidade. Ele terá sido um extraordinário pensador da falibilidade do homem e da tragédia na história. Um gesto, que se desdobra em três momentos, atesta sua singularidade como filósofo: a escuta, o engajamento, o distanciamento. Em primeiro lugar, portanto, a atenção ao outro, o acolhimento fundamental à diferença, à alteridade, ao risco de sacudir sua identidade, essa diferença com a qual se caminha e que ele exerceu ao limite da fadiga psíquica e física, com um apetite sempre devorador na descoberta do novo. Suas “Leituras” tão numerosas, a partir das quais ele nos guia pelo labirinto dos textos da história e da filosofia, atestam sua preocupação em acompanhar o outro, de lhe atribuir crédito ao lhe acordar uma parte de verdade. Porém, contrariamente ao que poderiam julgar alguns detratores, tal não significa uma atitude de caudatário, pois Ricoeur destaca em sua leitura do outro uma distinção pela qual ele expressa seu engajamento pessoal, reafirmando as convicções que o levam a não seguir quaisquer iniciativas reducionistas, mecanicistas. Ele anuncia, assim, os prolegômenos de um engajamento que não deve ser entendido como uma escolha do branco contra o negro, mas a afirmação de um ponto de vista que percebe como o melhor entre o pior e o medíocre. É o momento da tomada de riscos, pois não há engajamento sem a exposição a um possível fracasso da causa que se defenda. O terceiro momento não é o de uma síntese processada por um saber absolutizado, a qual fosse formulada em um novo sistema, subsumindo-se as contradições para se chegar a uma síntese ideal. Paul Ricoeur apresenta, ao contrário, uma filosofia paradoxal, que mantém ao mesmo tempo o questionamento e a tensão resultante da necessidade de pensar em conjunto o mesmo e o outro, o universal e o singular, o tempo cosmológico e o íntimo, a narrativa e o referente. Para fazê-lo ele cria conceitos como o da identidade narrativa, da distinção no interior do eu entre o idem e o ipse, de representação... que são mediações diversas, sempre imperfeitas, para pensar em conjunto essas tensões. Diferentemente de um modo de pensar que esteve muito em voga nos anos 1970, segundo o qual convém forçar o tom ao extremo para se fazer entender, Paul Ricoeur tornou-se um mestre ao nos revelar os mecanismos do jogo das contas de vidro que é o nosso, em sua complexidade crescente. Pode- -se dizer hoje que ele o fez com o sacrifício de sua pessoa, porquanto para se complexificar, para se elevar em altura conceitual, perde-se em receptividade. Mas ele terá progredido, o que é reconfortante, em longo prazo, no reconhecimento daqueles, cada vez mais numerosos, que mediram a justeza de suas tomadas de posição. Ao longo de seu percurso filosófico, Paul Ricoeur terá contado com um mestre interior, o que lhe aclarava o acontecido, graças ao peso de toda a história do pensamento para esclarecer as questões da sociedade e instruir assim o debate democrático. Longe das luzes midiáticas e, ao mesmo tempo, sem desprezo pela mídia, a uma boa distância da atualidade, mas sempre respondendo ao atual, ele terá sido um vanguardeiro. Paul Ricoeur é, com efeito, essencialmente um pensador do agir, desde a tese em que expõe o que pode ser uma filosofia da vontade. Todo seu esforço especulativo terá sido voltado especialmente à ação propriamente humana, de insistir sobre a aptidão que termina sempre a triunfar sobre o trágico na história. Ele terá exposto um pensamento animado por uma vontade de presença — em sentido forte — em seu século. Daí seu esforço de pensar, de engajar-se ao extremo, até o último momento de sua morte para sustentar até o final as promessas da vida. Paul Ricoeur renunciou a um pensamento sistemático, assim como a toda postura de projeção ou a toda teleologia histórica, substituindo-as por uma atenção aos fenômenos emergentes e à incompletude que desemboca no inacabado. De onde uma lógica de sondagem, pela qual Paul Ricoeur retoma os “resíduos” das questões não resolvidas em cada um de seus estudos para fazer delas seu novo questionamento. Porém jamais em uma lógica solipsista: ele está sempre inserido em uma lógica síncrona de resposta ao contexto, aplicando-se a si mesmo suas próprias posições dialógicas, passando assim tanto pelo existencialismo, pelo estruturalismo, pela hermenêutica como pela filosofia analítica... para afirmar que a pessoa não é uma coisa e que antes convém pensar sobre o agir humano em suas potencialidades que se recriar um horizonte de expectativa. Ricoeur terá sido um magnífico viajante entre a filosofia continental (Husserl, Gadamer) e a filosofia analítica anglo-saxônica. Dessa maneira, ele nos curou dos dilemas empobrecedores ao substituí-los pela perspectiva de melhor compreender ao explicar em maior profundidade, e augurando uma nova fase do pensamento, o da reflexividade. No entrelaçamento entre pensar o presente e prefigurar o futuro, ele trabalhou para combater o ceticismo e o fatalismo para, a cada vez, fazer prevalecer a responsabilidade humana. Da mesma maneira que o indivíduo, a sociedade, segundo Paul Ricoeur, não se pode privar de ter um projeto, um horizonte de expectativa e de esperança, de onde o sentido que atribuía ao passado, de ser uma fonte potencial de recursos para a construção do futuro, de uma convivialidade mais harmoniosa e mais justa. Sempre resolutamente voltado para o futuro, ele defendia a ideia de uma utopia em sua função libertadora que “impede o horizonte de expectativa de se fundir com o campo da experiência. É o que mantém a distância entre a esperança e a tradição”. O luto das visões teleológicas pode então transformar-se em uma oportunidade para refundar um projeto de futuro comum, a partir do reexame das possibilidades não confirmadas de nosso passado.”

    Paul Ricoeur: um filósofo em seu século