Brasil, Independencia, politica

  • Postado por editora em em 20/07/2016 - 11:39

    Às vésperas da vinda da família real, nada indicava que em poucos anos os laços que uniam Portugal e América seriam desfeitos. Se, por um lado, os sinais de esgotamento não eram evidentes e tampouco unívocos, por outro, na virada do século XVIII para o XIX, a crítica à autoridade parecia se alastrar como praga em diferentes esferas da vida social. A partir de sólida pesquisa arquivística, erudição e poder de síntese, O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822) traz análises dos processos que envolveram a intrincada e muitas vezes imprevisível conjuntura que antecedeu a Independência do Brasil.

    Conversamos com Luiz Carlos Villalta, autor da obra O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822), que nos apresenta o cenário que antecedeu a indepedência e nos aponta os possíveis resultados desta herança.

    Confira:

    A transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro foi condição essencial para a Independência do Brasil?

    A resposta é não e, ao mesmo tempo, sim. Não, porque, na virada do século XVIII para o século XIX, a Independência da América Portuguesa, em partes separadas ou mantendo-se unida, era uma tendência, algo que tinha grandes possibilidades de acontecer num futuro impreciso, sobretudo após a Independência das Treze Colônias Inglesas da América do Norte, em 1776, e, ainda, do Haiti, em 1804. A Revolução Francesa, de 1789, além disso, enebriava alguns homens, ainda que atemorizasse uns e outros, sobretudo com os excessos do Terror, servindo também como fonte de inspiração para movimentos de insurreição. Na mesma direção, ademais, ia a combinação das ideias das Luzes com um processo de dessacralização, que vinha de longa data e que corroía autoridades e instituições, em Portugal e no Brasil, mas que passou a ter grande força a partir de meados do século XVIII, sendo importante para tanto as reformas iniciadas por Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e Marquês de Pombal, que disseminaram uma mentalidade racional e científica. Mas a resposta a pergunta é também sim, no seguinte sentido: a forma específica assumida pela Independência do Brasil, mantendo-se a monarquia, uma estrutura patrimonialista de poder, a escravidão, a predominância de valores aristocráticos e, ainda, a unidade da América portuguesa e a subordinação à dinastia de Bragança, é, sim, indissociável da transferência da Corte lusitana. Se não houvesse a transferência da Corte para o Rio de Janeiro em 1807-1808, no mínimo, teríamos uma fragmentação da América portuguesa, com a instalação de vários Estados, muito provavelmente republicanos, quanto mais que, até 1808, as várias capitanias que constituíam as possessões portuguesas na América tinham relações diretas com Lisboa, mesmo depois da supressão do Estado do Grão-Pará e Maranhão, com sua incorporação ao Estado do Brasil, em 1774. Foi com a presença do Príncipe Regente e, depois, rei D. João VI (a quem o general Lannes, embaixador francês em Portugal nos inícios do XIX, com certo desprezo, chamava de Monsieur du Brésil), que se viu um esforço de centralização política na América portuguesa; aliás, o Rio de Janeiro, a partir de então, tomou o lugar que antes era ocupado por Lisboa, sendo o centro para o qual as capitanias se dirigiam a partir de 1808, situação essa, como se veria em 1817, motivo de ódios no então Norte do Brasil, particularmente em Pernambuco e na Paraíba.

    Quais foram os principais rompimentos e as continuidades mais importantes com a transição do Antigo Regime para a nova ‘ordem liberal constitucional’ do Império do Brasil?

    Ao dar-lhe a primeira resposta, eu acabei por apontar alguns elementos de continuidade: sistema monárquico de governo, estrutura patrimonialista de poder, predominância de valores aristocráticos, a escravidão e a família de Bragança como casa reinante. Poderia acrescentar ainda outros elementos: o latifúndio, a centralidade da acumulação de capital a partir do desenvolvimento de atividades comerciais, a união entre Estado e Igreja sob o regime do padroado, a corrupção e o clientelismo. A grande ruptura está sublinhada no corpo da pergunta que você fez: o caráter liberal e constitucional da ordem política, um projeto que ganhou corpo com a Revolução do Porto de 1820 e que, ao mesmo tempo, dividiu em seguida os dois lados do Atlântico português, o europeu e o americano (poderíamos até mesmo falar sobre a África, mas isso representa fugir do objeto do livro), uma vez que se tornou objeto de desentendimentos e de desacordos entre estas duas partes. Havia uma tônica então: o anti-despotismo, frequentemente sinônimo de absolutismo, mas não só, uma vez que, ao menos cá, deste lado do Atlântico, comportava um quê anti-colonial. Outra ruptura importante foi gestada a partir de 1808, com a chamada “interiorização da metrópole”, expressão cunhada pela historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, com o Rio ocupando o lugar de Lisboa como centro de poder, que reunia, sob a batuta do monarca, burocratas, militares, nobres, grandes comerciantes, letrados etc., e ainda gentes das elites do Rio, São Paulo e Minas até então na periferia do poder, num processo que comportava a ocupação de postos públicos, o favorecimento no desenvolvimento de atividades econômicas, práticas de corrupção e, ao menos até 1821, de espoliação do resto da América e das outras partes do Império lusitano, bem como a subordinação de Portugal. Nos anos posteriores a 1821, viu-se que, no centro-sul do Brasil, se gestou o predomínio de uma certa unidade em meio a divergências e, mais do que isso, de parte dessas regiões, uma liderança no interior da nova ordem, muitas vezes objeto de resistências e contestações. A Independência, no formato que se saiu vitorioso, representou, assim, uma vitória, de um lado, dos interesses da casa de Bragança e, de outro, das forças mais conservadoras de Rio, São Paulo e Minas Gerais, que, não sendo possível manter a unidade com Portugal, lograram êxito perante as demais províncias (desde 1821, as capitanias passaram a ser chamadas províncias) e firmaram o projeto monárquico constitucional, unitário, aristocrático, patrimonialista e escravista de país independente. É preciso pensar que, com a Revolução do Porto e as Cortes Constituintes de Lisboa, se abriu um leque de possibilidades inauditas, bem como de temores: Cada capitania-província teria larga autonomia? Todas se subordinariam a Lisboa, com o fim do Rio de Janeiro como centro para onde todas convergiriam? Ou Rio e Lisboa se converteriam em dois polos de poder, num Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves? Ou haveria UMA Independência, do Reino do Brasil, mantendo-se sua unidade? Ou ainda as diversas províncias seguiriam seu rumo, cada uma delas independente em relação às demais? Desentendimentos havidos em Lisboa, com o funcionamento das Cortes Constituintes, nos idos de 1821-1822, separando “portugueses” e “brasileiros” e, inversamente, unindo “brasileiros”, e, mais, uma hegemonia construída pelo Príncipe Regente D. Pedro a partir de fins de 1821, com suporte de membros das elites de São Paulo, Rio e Minas, mas também com ramificações em outras partes do Brasil, conduziram à Independência, à instalação do Império do Brasil. Depois disso, veio um duplo desafio: construir as bases do Estado imperial e, algo ainda mais complexo, uma nação brasileira, processos estes que escapam do objetivo e dos marcos cronológicos do livro. Destaco, enfim, o ideal constitucional como a grande ruptura, mas também uma intensificação da centralização administrativa, esboçada por D. João e avançada, depois da Independência, pelo Império. Há algo interessante que eu gostaria de destacar: de fins do XVIII aos inícios do XIX, o questionamento do absolutismo, no Brasil e em Portugal, vinha, muitas vezes, acompanhado de manifestações de irreligiosidade. Como na França revolucionária no curso dos anos, a vaga irreligiosa aqui perdeu fôlego: nenhum vestígio dela sobrou no ápice da ruptura entre Portugal e Brasil, isto é, no momento da Independência. O que Tocqueville viu na França, portanto, vale também para o Brasil. Por fim, reforço uma permanência, permanência que nos sufoca até hoje, evidenciando-se nesta crise política presente, tendo enorme sobrevida com a ascensão de Michel Temer à presidência, com o seu PMDB, partidos satélites e o chamado “Centrão”: o patrimonialismo, que, qual como uma verdadeira praga, não nos abandona, tendo contaminado até mesmo os dois grandes partidos brasileiros que, no curso da redemocratização, nasceram contra ele, PSDB e PT, ambos, aliás, esmerando-se em denunciar um ao outro por práticas patrimonialistas, ao mesmo tempo que se enlamearam nelas e, além disso, permitiram ao PMDB sugar e chafurdar-se nos mesmos veios. O procurador geral da República, Janot, percebeu muito bem esta permanência. Só lamento que ele não tenha sido capaz de ver como o judiciário e o ministério público estão contaminados por ela!

    Como a conjuntura internacional, a exemplo da Revolução Francesa, influenciou no processo de independência do Brasil?

    Acho que eu já respondi a essa pergunta. Nossa Independência é filha do seu tempo. É filha de uma situação em que as colônias das Américas adquiriam força e ambições de autonomia, impulsionadas pela Independência dos EUA, à qual se seguiram as Independências do Haiti, da América espanhola (com exceção de Cuba) e do Brasil. É filha do seu tempo também por causa da Revolução Francesa. No caso do Brasil em particular, é importante pensar que, sem Napoleão, sem a invasão de Portugal pelas tropas de Junot, o projeto de transferência da corte portuguesa para o Brasil, embora antigo, não se tornaria realidade, ao menos não naqueles tempos. E, como já disse ao responder à primeira questão, sem transferência da Corte, a Independência do Brasil não ganharia o formato que ela teve. José Murilo de Carvalho sublinha um aspecto importante, que faz parte dessa conjuntura, não propriamente internacional, mas imperial lusitana: as reformas ilustradas iniciadas por Pombal (em 1770-1772) na Universidade de Coimbra e, por consequência, a constituição e a transmigração de uma elite intelectual e burocrática de Portugal para o Brasil e que, cá, tiveram um papel decisivo na Independência. Ele tem razão. As Luzes e as reformas ilustradas portuguesas exerceram um papel importante para a Independência. Só gostaria de tornar o quadro um pouco mais complexo: nossas elites e as Luzes luso-brasileiras marcaram-se por heterogeneidades. Interesses, Luzes e projetos distintos estiveram por trás da Independência. Não tenho dúvida que teve destaque a elite coimbrã, mas não só ela. Essa elite, além disso, tinha dissonâncias. Duas expressões dessas dissonâncias são, de um lado, o grande José Bonifácio de Andrada e Silva e, de outro, Cipriano Barata de Almeida (ainda que este último não tenha concluído seus estudos em Coimbra e comumente seja inserido na chamada elite brasílica).

    Qual o principal objetivo desta obra?

    O objetivo da obra é compreender justamente a Independência do Brasil, o formato por ela assumido, os aspectos de continuidade e ruptura que ela trouxe, no interior da crise do Antigo Regime português. Entender também como os sujeitos políticos, na virada do século XVIII para o século XIX, concebiam a ordem que combatiam, o chamado Antigo Regime, por alguns desses sujeitos simplesmente sintetizado no termo “despotismo” e, no caso de um deles em particular, “estado antigo”. O livro, em versão inicial, foi concluído em 2013, com alguns pequenos remendos feitos ainda no ano passado, nada que mudasse sua orientação. Ele teve, portanto, redação anterior às manifestações de 2013 e, muito mais, ao golpe de Estado (judicial, midiático e burocrático) em curso no Brasil desde fins do ano passo e início deste ano de 2016. No entanto, talvez o livro ajude a compreender o que se passa hoje, à medida que nos fornece informações sobre as continuidades que marcaram um momento crucial na nossa história e que, tristemente, nos perseguem até hoje, como se fossem um fardo legado pelos portugueses e por nós, com muito zelo, cultivado, aprimorado e tornado ainda mais perverso. Digo mais: os debates dos tempos da Independência, cá, no Brasil, e em Lisboa, eram mais sofisticados, engenhosos e fundamentados que aqueles que vemos florescer, sobretudo se considerarmos o campo das instituições de Estado, por mais que, como mostram os trabalhos de historiadoras com Lúcia Bastos Pereira das Neves e Isabel Lustosa, por exemplo, se usassem então de estereótipos, reducionismos, simplificações e preconceitos nos embates políticos daquela época. O que se viu no dia 17 de abril de 2016, pela sua precariedade moral, política e intelectual, foi um retrato imensamente piorado e aviltado daquele observado nos idos de 1820-1823: espetáculo grotesco, de baixíssimo nível, expressão exacerbada de uma estrutura patrimonialista, que guindou ao poder justamente as forças mais habilidosas na arte de confundir o público e o privado e de valer-se da corrupção, na chamada “Arte de furtar” a coisa pública.

     

    O lançamento será dia 21/7, na Livraria da Travessa

    O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822)

    Luiz Carlos Villalta

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