Ao longo da época moderna, milhares de recém-nascidos eram abandonados por suas famílias, fosse em instituições de acolhimento - com as conhecidas "rodas dos expostos" -, fosse nas soleiras das portas de estranhos.
'A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII', do professor Renato Franco, trata do abandono de recém-nascidos em Vila Rica (hoje Ouro Preto), onde, como em muitas cidades católicas de então, era corriqueiro encontrar, ou ouvir falar de "enjeitados".
Com o lançamento do livro marcado para esta quinta, dia 13, na Livraria FGV, o autor respondeu a 3 perguntas nossas. Confira:
1. Em seu livro, o senhor afirma que em todas as épocas da humanidade houve abandono. Qual a especificidade do período estudado em seu livro?
Realmente o ato de abandonar os próprios filhos, muitas vezes por motivos banais, encontra relatos em diferentes épocas da história. Muitas histórias de abandono faziam parte, inclusive, do imaginário popular, como o relato bíblico de Moisés, ou a história dos dois órfãos – Rômulo e Remo – que teriam sido alimentados por uma loba e, mais tarde, fundado a cidade de Roma. Mas se olharmos em retrospecto, o século XVIII pode ser apontado como o primeiro século de um enjeitamento em massa de crianças: do ponto de vista social, as práticas se alternavam e, especialmente o infanticídio – ato de matar a prole – foi sendo deixado de lado em favor da ideia do abandono. Ao mesmo tempo, as instituições de acolhimento que vão se sedimentando por toda a Europa e nos espaços coloniais faziam questão de manter o sigilo como condição imprescindível do abandono. Assim, na virada do século XVII para o século XVIII é possível constatar o aumento considerável de crianças enjeitadas, em índices que, muitas vezes, ultrapassavam os 20% dos nascidos. Não é puramente retórico, estamos falando de milhares de recém-nascidos que eram descartados pelas famílias e passavam a viver na casa de outros ou em instituições. Acho que é possível falar de uma verdadeira banalização do ato de abandonar, desresponsabilizando os pais. Claro que, em muitos casos, as famílias não tinham condições efetivas para criarem seus filhos, mesmo que quisessem, mas o fenômeno do abandono não se resumia a isso, muito pelo contrário. A atitude de abandonar passou a ser condenada e deixou de ser utilizada por algumas parcelas da população a partir do século XIX, mas demorou bastante para que o abandono se tornasse episódico. No Brasil, por exemplo, a última roda dos expostos data de meados do século XX.
2. No caso estudado, a câmara se negou, a princípio, a pagar a criação de enjeitados mestiços. O que determinava a lei em relação aos enjeitados?
Em todo o império português o financiamento dos expostos estava regulamentado desde o século XVI, com as chamadas Ordenações Manuelinas: era, em tese, uma obrigação das câmaras municipais, que, inclusive poderiam lançar impostos sobre a população para que custeassem a criação de todos os expostos até que completassem os sete anos de idade. Na América portuguesa, esse era um assunto controverso e muitas vezes negligenciado, em parte porque o financiamento universal dos expostos dizia respeito também a mestiços. Em Vila Rica nunca houve uma “roda dos expostos” que centralizasse o acolhimento de recém-nascidos; as crianças eram deixadas nas soleiras das portas, nas igrejas e ruas de maior movimento. Mas o maior empecilho inicial foi a relutância da câmara em financiar os enjeitados mestiços, porque considerava que a ajuda aumentaria o número de abandonados e que esse tipo de auxílio deveria se resumir a famílias brancas e honradas. Até agora, esse tipo de conflito pôde ser constatado, além de Vila Rica, em Mariana e em Recife.
3. Mas, segundo seu livro, houve muitas vilas que sequer instituíram o auxílio...
Sim, em muitas vilas e arraiais não houve auxílio, o que revela o caráter popular do abandono como prática social. A criação dos enjeitados era compreendida como uma tarefa comunitária, ou dos “outros”, como sugere o título do livro. No momento do nascimento o mais importante era o batismo como garantia da salvação da alma. Depois, o cotidiano do abandono conservou traços mais práticos: caso não pudesse mais ficar com o enjeitado, a família que o acolheu repassava-o para outras tantas quanto necessárias, havendo casos de crianças que circulavam por diversas famílias até poderem viver de forma mais independente.
O lançamento é nesta quinta, na Livraria FGV. Todos convidados!
A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII
Renato Franco
R$38