Crônicas de uma crise anunciada

Os economistas Pedro Cavalcanti e Renato Fragelli debateram, em artigos publicados no Jornal Valor Econômico entre os anos de 2010 e 2015, suas impressões sobre a realidade econômica brasileira, apontando os limites e desequilíbrios gerados pelo modelo de crescimento adotado pelos governos do período. O resultado está no livro Crônicas de uma crise anunciada: a falência da economia brasileira documentada mês a mês, que publicamos agora.

Confira a introdução da obra, que tem prefácio do ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga.

Introdução

"Em finais de 2015, o Brasil passava por sua pior crise econômica desde a recessão provocada pelo Plano Collor há um quarto de século. O produto caminhava para uma retração de 4%. O investimento e a produção industrial caíam há oito semestres, enquanto a taxa de desemprego se elevava mês a mês. A inflação anual já alcançara os dois dígitos. Tudo indicava que a melhoria na distribuição de renda estava sendo parcialmente revertida.
A crise atual poderia ter sido evitada. Os problemas por que passa o Brasil não foram causados por choques externos, por crise internacional ou por qualquer força alheia ao controle do país. Foram problemas autoinfligidos. Começaram a ser gestados pela política econômica intervencionista adotada após a crise do subprime em 2008 e intensificada ao longo do primeiro governo de Dilma Rousseff.
O conjunto dessas políticas, que recebeu a alcunha de “nova matriz econômica”, significou uma guinada de 180 graus em relação à rota seguida durante o governo Fernando Henrique Cardoso e o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. A racionalidade econômica que havia colocado o Brasil em uma saudável trajetória de crescimento e baixa inflação foi deliberadamente abandonada devido a um diagnóstico errado.
A nova matriz econômica consistiu na implantação de ideias gestadas em escolas de economia heterodoxas – principalmente Unicamp, UFRJ e, em alguma medida, Eesp-FGV – ao longo de vários anos. Após ter sido defendida pela grande maioria dos economistas desenvolvimentistas, hoje muitos de seus inspiradores rejeitam sua paternidade. Afinal, como se diz popularmente, filho feio não tem pai. Havia quase unanimidade nesse campo a seu favor e mesmo um grande entusiasmo, dado que se esperava aceleração do crescimento, um grande ciclo virtuoso para a indústria nacional, bem como contínua redução da pobreza.
Seus principais itens eram a redução forçada da taxa de juros – que chegou a 7,25% ao ano em 2012 –, o controle da taxa real de câmbio, a expansão acelerada dos gastos públicos, os empréstimos do Tesouro aos bancos públicos, o aumento da proteção comercial, a ampliação das políticas industriais – via crédito subsidiado, isenções tributárias e favorecimento –, assim como o controle de preços de derivados de petróleo e da energia elétrica.
O experimento desenvolvimentista fracassou retumbantemente, como se sabe. Muitas das políticas foram gradualmente abandonadas ao longo do tempo, mas deixaram como herança uma enorme desorganização das contas públicas, o crescimento acelerado da dívida pública bruta, o abandono do tripé macroeconômico – metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário –, a estagnação da indústria, a deterioração acentuada do ambiente de negócios, o alto endividamento das empresas estatais – principalmente Petrobras e Eletrobras –, entre outras mazelas que acabaram desaguando na perda do grau de investimento. Tratou-se de uma constatação nítida e bastante dolorosa da inconsistência das ideias heterodoxas.
Sem querer ser pedantes ou cabotinos, não foi por falta de aviso que o Brasil chegou à situação atual. Essa coleção de artigos publicados no jornal Valor Econômico não teve como objetivo primário, quando do início de sua publicação em março de 2010, a discussão das ideias desenvolvimentistas ou a crítica da política econômica adotada no período. Buscava-se discutir a realidade econômica brasileira, em linguagem acessível ao público não especializado, utilizando conceitos e avanços da moderna teoria econômica dominante. Escritas por macroeconomistas com pesquisas em teoria monetária, crescimento econômico e desenvolvimento, temas nestes campos foram inicialmente dominantes nas crônicas.
À medida que a política econômica implantada no período passou a contrastar crescentemente com as ideias apresentadas nos artigos, sentimo-nos obrigados a apontar para os leitores do Valor Econômico as inconsistências das ações governamentais em curso. A partir de certo momento, quase a totalidade de nosso espaço foi dedicada àquela empreitada. Obviamente, não estávamos sozinhos, mas desde muito cedo cumprimos nossa missão de alertar para o perigoso caminho adotado. Diante de suas profundas incongruências, aquela política econômica não tinha a menor chance de dar certo.
Alguns temas, dada sua importância, foram recorrentes. Por exemplo, em um bom número de artigos, chamamos atenção para o fato óbvio de que a taxa real de câmbio e os juros reais são preços determinados por inúmeras forças de mercado – sendo uma das principais a taxa de poupança doméstica. Como tal, estão fora do controle dos formuladores de políticas nos médio e longo prazos. Infelizmente, muitos economistas teimavam e ainda teimam em ignorar fatos tão simples. Alguns dos principais fundamentos da nova matriz econômica não levavam em conta premissas elementares como essas. Uma teoria equivocada leva a um diagnóstico errado que, uma vez implantado, gera resultados desastrosos para a economia.
Outro exemplo está ligado à atuação dos bancos públicos, em especial do BNDES. Já em nossos primeiros artigos, chamávamos a atenção para o fato de que não compete ao Estado escolher quais serão as empresas vencedoras da economia. A atuação de um banco de desenvolvimento estatal deveria focar-se sobre os setores geradores de externalidades positivas para o resto da economia. Ao conceder à larga créditos subsidiados ao longo dos últimos seis anos, o BNDES deixará um legado penoso, na forma de gastos a serem cobertos pelo Tesouro por muitos anos à frente. Não menos importante foi a contribuição do banco para inibir o desenvolvimento do mercado de capitais. Tudo sem o crivo de instrumentos de avaliação de resultados.
Finalmente, ao longo desses seis anos chamamos bastante a atenção para avanços recentes do conhecimento, em nossas áreas de estudo, que, de uma forma ou de outra, estão por trás de muitos de nossos artigos e de nosso pensamento.
A teoria moderna do crescimento econômico tem enfatizado que a diferença de renda entre países não decorre somente de disparidades na taxa de investimento e do estoque de capital instalado no país. Há de se levar em conta o nível de capital humano de cada país, conceito que representa o nível médio de educação, experiência profissional e habilidades da força de trabalho. Igualmente importante é a “produtividade total dos fatores” (PTF), expressão utilizada pelos economistas para denominar o nível de eficiência geral da economia. A PTF sumariza o ambiente econômico, as instituições e incentivos embutidos na regulação, a estabilidade das regras, a estrutura tributária, o grau de abertura econômica, a complexidade burocrática, para citar apenas os principais fatores que estimulam ou inibem a eficiência produtiva numa economia.
No caso brasileiro, como já bem estabelecido em diversos estudos acadêmicos, o principal fator explicativo do atraso do país em relação aos países ricos não é tanto uma insuficiência de capital físico resultante de baixo investimento. É, principalmente, a deficiência de capital humano e a baixa PTF, ou seja, o país é pobre porque sua mão de obra é pouco qualificada e organiza muito mal seu sistema produtivo. Qualificação da mão de obra e organização do sistema produtivo deveriam constituir as prioridades de uma política voltada para promover o crescimento, em contraste com a tentativa atabalhoada (e frustrada) de aumentar a taxa de investimento a qualquer custo. Embora, hoje, tenha-se tornado lugar-comum falar da baixa produtividade brasileira, essa constatação pouco chamava a atenção de analistas há poucos anos.
Outro fato que procuramos realçar foi a transformação estrutural por que passam as economias capitalistas, ao longo do processo de desenvolvimento. Na primeira fase, ocorre a gradual migração de mão de obra oriunda da agricultura de baixa produtividade em direção à indústria. Numa segunda etapa, a indústria perde parte de sua mão de obra, que migra para o setor de serviços. Esse padrão foi observado em todas as economias hoje ricas. Ora, se o setor de serviços será o dominante no futuro, a ênfase das políticas setoriais deveria estar na melhoria da produtividade nesse setor – que é muito baixa no Brasil –, e não em políticas industriais. Políticas voltadas para o setor de serviços envolveriam educação, treinamento, implementação de um sistema tributário adequado, entre outras ações.
Ao insistir numa política industrial calcada no velho conceito da indústria nascente, o Brasil desperdiçou recursos para dar sobrevida artificial a setores inviáveis. Em alguns casos, como na tentativa de ressuscitar a indústria naval, repetiram-se os mesmos erros cometidos
no passado, numa melancólica demonstração de que o país não conseguiu aprender sequer com sua própria experiência.
Enfim, os artigos aqui reunidos não consistem em mais uma simples apresentação de uma visão liberal da economia, como alguns poderiam considerá-los. Trata-se da análise da realidade brasileira utilizando avanços recentes e estabelecidos do conhecimento econômico acadêmico.
A teoria econômica identifica situações em que o livre funcionamento dos mercados não leva ao melhor equilíbrio econômico, como diante de externalidades, ganhos de escala, barreiras naturais à entrada de novos competidores, assimetrias informacionais, para citar os mais usuais fatores. Nesses casos, a omissão do Estado leva a ineficiências, distorções alocativas, concentração de renda e outros males.
Mas as intervenções levadas a cabo no passado recente brasileiro elevaram as distorções – por exemplo, mediante aumento da proteção comercial e congelamento de preços. Em muitos casos – como na atuação do BNDES –, além de aumentar as distorções, a ação do Estado concentrou renda e beneficiou os ricos acionistas das empresas contempladas por créditos subsidiados ou isenções. Foram intervenções erradas e mal implantadas, sem qualquer embasamento teórico sólido, como buscamos mostrar, desde 2010, em nossos artigos no Valor Econômico agora reunidos neste livro."
 

A obra será lançada dia 28 de julho, às 19h, na Livraria da Travessa do Shopping Leblon.

Av. Afrân

 

Crônicas de uma crise anunciada: a falência da economia brasileira documentada mês a mês

Autores: Pedro Cavalcanti Ferreira, Renato Fragelli Cardoso

 

Este conteúdo foi postado em 27/07/2016 - 10:03 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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