"O livro que tem diante de si propõe um olhar multissituado, capaz de observar a guerra, os seus contextos e os seus legados a partir de Portugal, dos solos africanos então colonizados e também de outras geografias, como é o caso do Brasil, cujas articulações com esse passado comum, mesmo que diferidas, se tornam aqui evidentes. Ao mesmo tempo, a leitura global desta obra sugere que a compreensão ampla do fenómeno da guerra apenas é possível com um horizonte histórico, para que não se foque estritamente no tempo em que o conflito decorreu e que enquadre dinâmicas sociais mais abrangentes e diversas na sua explicação."
Dia 24 de abril teremos lançamento da obra na Travessa Pinheiro em São Paulo.
Confira o prefácio de Miguel Cardina, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Coordenador do projeto “Crome – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio: as Guerras Coloniais e de Libertação em Tempos Pós-Coloniais”, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação.
Um passado ainda vivo
No momento em que escrevo estas linhas, decorre em Portugal um debate motivado pelas palavras do primeiro-ministro, António Costa, durante uma visita oficial a Moçambique. Aí classificou como um “ato indesculpável” o “massacre de Wiriyamu”, no qual perto de 400 homens, mulheres e crianças foram violentamente assassinados, em dezembro de 1972, numa incursão feita pelo Exército português na província de Tete. As palavras foram lidas como um “pedido de desculpas” formal e suscitaram uma discussão sobre a natureza ou a necessidade de gestos de reparação para fazer face a esse passado ainda vivo.
A guerra colonial e de libertação inscreve-se num conjunto vasto de mudanças internacionais então em curso, em que sobressai o impacto das independências dos povos africanos e asiáticos pós-Segunda Guerra Mundial e um panorama geopolítico que, consoante distintos tempos e lugares, combinou a afirmação de esferas de influência, a ativação de solidariedades militantes e a eclosão de conflitos militares. Nesse novo contexto histórico, a resistência do regime de Salazar em encetar negociações – pedidas por movimentos de libertação antes do eclodir dos conflitos, como ocorreu com o Partido Africano pela Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) – arrastou o país para uma guerra longa em Angola, Guiné e Moçambique. Nos anos finais da ditadura, ficava já claro que aquela era uma guerra impossível de vencer. A breve trecho, viria a ditar o próprio fim do regime.
A 25 de Abril de 1974, o velho Estado Novo caía através de uma rotura levada a cabo por militares de patente intermédia, que iria desaguar numa revolução que marcou geneticamente a democracia portuguesa. Em solo africano, a luta pela independência viria a consagrar-se como a certidão de nascimento das novas nações. Mesmo Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, que não experienciaram a luta armada no território, acabariam por alcançar as independências no quadro da partilha desse mesmo idioma anticolonial. Nos diferentes países africanos – e não perdendo de vista as significativas diferenças entre si – a luta de libertação e a memória anticolonial viriam a assumir um lugar relevante, conferindo legitimidade a movimentos rapidamente tornados partidos únicos e vanguardas autoproclamadas na construção dos novos Estados.
Em Portugal, por seu turno, e por um conjunto vasto de razões, a memória pública da guerra tendeu a ser recoberta por amnésias e seletividades discursivas. Entre outros elementos, pesa o facto de a guerra ter sido feita por militares.
Foram esses mesmos militares – ou melhor, uma parte deles, os que se articularam no que seria o Movimento das Forças Armadas – que desencadearam a mudança política em Portugal, o que inevitavelmente interferiu na reflexão sobre a guerra, nomeadamente no parco questionamento sobre os episódios mais sangrentos. Este elemento articula-se ainda com a persistência de um imaginário que tende a apagar a natureza intrinsecamente violenta do projeto colonial. As raízes históricas dessa erosão memorial são antigas. Com efeito, a linguagem das Descobertas, ainda hoje um tópico dominante a partir do qual se tece o “nacionalismo banal” em Portugal, não pode fazer esquecer o papel tido na escravização de povos africanos e na sua deslocação forçada em direção à Europa e às Américas, com destaque evidente para o Brasil, nem, depois de formalmente abolida a escravização, os processos de trabalho forçado, de roubo de terras, de sobreexploração e violência física e simbólica a que foram sujeitos os povos africanos colonizados.
A ditadura do Estado Novo não inventou o colonialismo nem o seu uso político, que tem origens anteriores. Mas a ideologia colonial será intensificada e reformulada nos anos de afirmação do fascismo português, acompanhada de uma crescente imbricação entre as economias da metrópole e das colónias e de vagas migratórias, nomeadamente para Angola e Moçambique, que se vão prolongar até ao final do regime. Esta etapa derradeira será ainda marcada pelo redesenhar imagético da relação colonial, a partir dos tópicos do lusotropicalismo, e por uma guerra que duraria 13 longos anos. Desencadeada pelos povos colonizados, a descolonização comportou o reconhecimento nacional e internacional dos novos Estados independentes e uma vaga de “retorno” de portugueses e seus descendentes, ou de ida para outras paragens, como a África do Sul ou o Brasil.
O livro que tem diante de si propõe um olhar multissituado, capaz de observar a guerra, os seus contextos e os seus legados a partir de Portugal, dos solos africanos então colonizados e também de outras geografias, como é o caso do Brasil, cujas articulações com esse passado comum, mesmo que diferidas, se tornam aqui evidentes. Ao mesmo tempo, a leitura global desta obra sugere que a compreensão ampla do fenómeno da guerra apenas é possível com um horizonte histórico, para que não se foque estritamente no tempo em que o conflito decorreu e que enquadre dinâmicas sociais mais abrangentes e diversas na sua explicação. Sem esse olhar, que extravasa necessariamente o mero domínio político-militar, ficaríamos com uma visão muito limitada das causas e dos efeitos de uma guerra que foi, simultaneamente, a etapa final de uma ordem colonial e o início de um processo de descolonização que não terminou com a consagração política das independências.
Portugal e os 60 anos da guerra em África
Organizadores: Francisco Carlos Palomanes Martinho, Helena Wakim Moreno, Marina Simões Galvanese
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