O ano de 1922 aglutinou uma sucessão de eventos que mudaram de forma significativa o panorama político e cultural brasileiro. A Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista do Brasil, o movimento tenentista, a criação do Centro Dom Vital, a comemoração do Centenário da Independência e a sucessão presidencial de 1922 foram indicadores importantes dos novos ventos que sopravam, colocando em questão os padrões culturais e políticos da Primeira República. A proposta deste livro é rever como questões cruciais para o país de 1922, após 100 anos, ainda estão ecoando na agenda, no presente.
Confira a apresentação da obra:
Nos anos 1920, a sociedade brasileira viveu um período de grande efervescência e profundas transformações. Mergulhado numa crise cujos sintomas se manifestaram nos mais variados planos, o país experimentou uma fase de transição cujas rupturas mais drásticas se concretizariam a partir do movimento de 1930.
O ano de 1922, em especial, aglutinou uma sucessão de eventos que mudaram de forma significativa o panorama político e cultural brasileiro. A Semana de Arte Moderna, a criação do Partido Comunista do Brasil, o movimento tenentista, a criação do Centro Dom Vital, a comemoração do Centenário da Independência e a própria sucessão presidencial de 1922 foram indicadores importantes dos novos ventos que sopravam, colocando em questão os padrões culturais e políticos da Primeira República. Em meio a tais acontecimentos, foi assinada a criação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1920.
Passados 100 anos, em 2022 comemora-se o Bicentenário da Independência do Brasil e ao mesmo tempo comemoram-se também vários eventos-chave que marcaram significativamente a história do Brasil.
A proposta deste livro está focalizada em rever como questões cruciais para o país foram veiculadas no ano de 1922 e, após 100 anos, como ainda estão ecoando na agenda, no presente. Com essa perspectiva, as temáticas relativas às comemorações e memórias assumem um papel importante e nos levam a refletir sobre seus significados em 1922 e como repercutem e são relidos na atualidade.
Nesse contexto cabe perguntar: o que significa comemorar? Comemoração é a cerimônia destinada a trazer de volta a lembrança de um evento, algo que indica a ideia de uma ligação entre homens e mulheres fundada sobre a memória. Essa ligação também pode ser chamada de identidade.
E é exatamente porque permitem legitimar e atualizar identidades que as comemorações públicas ocupam um lugar central no universo político contemporâneo. As comemorações em torno de personagens focalizam aniversários de nascimento ou morte. Já os eventos fundadores privilegiam os momentos de fundação de nações, de Estados, instituições, empresas.
Diante desse quadro, os historiadores procuraram dar respostas que levem em consideração as demandas de memória pela história e, ao mesmo tempo, produzam uma historização crítica da memória. Assim, mesmo reconhecendo o estímulo que a memória dá à história, eles chamam atenção para a função crítica desta última diante da ação inquisitorial da primeira.
Dessa forma, revisitar os vários eventos e as manifestações de diferentes setores da sociedade brasileira que tiveram lugar em 1922 e nos anos seguintes, estimulados pelo Centenário da Independência, é um caminho instigante para perceber que elementos da memória e da identidade brasileira foram selecionados, exaltados e esquecidos e como agora no Bicentenário estão voltando à tona.
Alguns pontos de convergência entre essas duas conjunturas podem ser destacados, uma sucessão presidencial marcada por uma crise política e forte polarização, o temor das notícias falsas, a busca de sustentação militar, os efeitos das pandemias e as lutas permanentes pela saúde, educação e combate às desigualdades.
Apesar dos pontos em comum entre as conjunturas, há também grandes diferenças: a crise política atual e a forte polarização não são, como em 1922, decorrência de embates entre oligarquias que se polarizaram em torno de projetos distintos para o país, pois dizem mais respeito a conflitos entre as classes sociais do país e a polarizações em torno de questões que extrapolam o plano mais estrito da economia. Nesse sentido, a presença de fake news hoje se dá numa escala muito maior do que em 1922, espalhando-se, inclusive, para outros campos além da política, como o da atual pandemia, no que ela também adquire sentidos distintos da pan demia de 1919. Por outro lado, a busca de sustentação militar, em 1922, se defrontava com cisões visíveis nas Forças Armadas, o que hoje não se verifica.
Com essa orientação este livro reúne 10 trabalhos de 12 autores destinados a revisitar os grandes temas que marcaram 1922 e de forma mais geral a década de 1920.
O primeiro capítulo, “Sucessão presidencial e crise política em 1922”, apresenta um panorama do contexto político dos anos 1921/22 quando ocorria a acirrada disputa eleitoral entre Arthur Bernardes, apoiado por Minas e São Paulo, candidato da situação, e Nilo Peçanha, da oposição, apoiado pelos estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco. Esse pleito revestiu-se de um caráter especial em consequência da radicalização das duas facções políticas, por meio das tentativas de inviabilização do nome de Bernardes com a divulgação do que poderíamos chamar de fake news da época, as “cartas falsas”, que visavam incompatibilizar o candidato oficial com os militares. O pleito de 1922 ainda buscou mobilizar setores sociais normalmente afastados das disputas eleitorais, setores médios e militares. É nesse contexto que eclodiu a primeira revolta dos tenentes e foi decretado o estado de sítio indicando o clima de conflito que estava marcando as grandes comemorações de 1922.
O segundo capítulo, de Marly Motta, sobre as comemorações da Independência do Brasil em 1922, tem como objeto de análise as diferentes leituras então feitas sobre a trajetória do país e as dificuldades existentes para que tivesse encontrado seu destino na superação do atraso e para ingressar no concerto das nações modernas. O texto analisa ainda os projetos de futuro desenhados naquele momento, por meio da Exposição Internacional do Centenário visando garantir a inserção do Brasil nos quadros da nova economia mundial do pós-Primeira Guerra.
O capítulo de Lucia Lippi também focaliza o significado das comemorações do Centenário da Independência elegendo como eixo as relações Brasil/Portugal, o antilusitanismo desenvolvido ao longo das décadas republicanas e em especial a emergência de um forte nacionalismo no país. Um segundo eixo de análise volta-se para o significado da arquitetura como expressão de valorização do passado colonial brasileiro dando origem ao chamado estilo neocolonial que, exibido na Semana de Arte Moderna realizada São Paulo, foi considerado moderno e brasileiro. É importante registrar também o destaque da arquitetura neocolonial dominante em vários pavilhões e eventos realizados na Exposição Internacional do
Centenário da Independência de 1922. O artigo menciona ainda como as comemorações do Centenário da Independência levaram à valorização e releitura de diferentes passados em São Paulo e no Rio de Janeiro, que deram origem à reinauguração do Museu Paulista em São Paulo e à criação do Museu Histórico Nacional no Rio de Janeiro.
O quarto capítulo, escrito por Helena Bomeny, dedicado à educação, focaliza os educadores e os debates educacionais que tiveram lugar nos anos 1920. Articulando diferentes temporalidades, o texto retorna aos primeiros tempos da república para estabelecer o quadro desalentador da educação. Em seguida, apresenta as lutas do movimento da chamada Escola Nova nos anos 1920 para chegar aos desafios que continuam em pauta na atualidade.
No capítulo de Simone Petraglia Kropf e Dominichi Miranda de Sá, “O valor social da ciência e o debate sobre a nação na década de 1920”, o objetivo é analisar as propostas de transformações do trabalho científico e os ideais de reforma social veiculados pela ciência com foco na atuação da Academia Brasileira de Ciências. Partindo da conjuntura comemorativa do Centenário da Independência, o texto recua no tempo para apresentar uma síntese acerca das discussões ao longo da Primeira República sobre o valor da ciência para o progresso nacional e as iniciativas de seus principais cientistas implementadas na década de 1920.
O capítulo seguinte, de Antonio Augusto Passos Videira, “Ciência e universidade no Rio de Janeiro na década de 1920”, recupera importantes debates travados ao longo da Primeira República sobre a importância da ciência pura voltada para a produção do conhecimento teórico científico.
Nesse contexto ficam evidenciadas as tensões existentes entre aqueles que defendiam uma abordagem pragmática e utilitarista e os cientistas aglutinados em torno da Associação Brasileira de Ciência, que consideravam que o apoio à ciência pura era a fonte principal de riqueza do país. Para a concretização dessas propostas, era fundamental a criação de universidades onde poderiam ser desenvolvidas políticas científicas consistentes. A luta pela criação da Universidade do Rio de Janeiro visava atingir esses objetivos, mas na prática sua efetivação ficou muito distante daquelas intenções.
O capítulo sétimo, de Gilberto Hochman, “Depois de uma pandemia: a saúde pública no Brasil nos anos 1920”, tem como objeto as ações governamentais voltadas para enfrentar os problemas de saúde pública no país, especialmente evidenciados com a epidemia da gripe espanhola de 1919. No momento das comemorações do Centenário da Independência em que todos os esforços deveriam estar concentrados em mostrar um país moderno, era fundamental implementar as políticas centralizadoras que por meio do recém-criado Departamento de Saúde Pública atribuíam ao governo federal papel de grande relevância em relação às responsabilidades junto à saúde da população. O artigo chama a atenção ainda para o fato de que, a despeito dos esforços realizados, as expectativas enunciadas durante as comemorações de 1922 não equacionaram os problemas estruturais que caracterizavam a sociedade brasileira, como racismo, desigualdade, mandonismo e violência política. O enfrentamento desses problemas continuaria em pauta ainda por muito tempo.
O capítulo de Hildete Pereira de Melo e Débora Thomé, “Um olhar de gênero nas comemorações da Independência do Brasil: 1922-2022”, tem como objetivo apresentar um quadro geral das lutas das mulheres pela cidadania no Brasil, tendo como eixo os eventos ocorridos em 1922. Retrocedendo à proclamação da República, as autoras recuperam as lutas feministas por ocasião da Constituição de 1891 para obter o direito de participação política no novo regime e os projetos de lei que pretendiam conquistar a obtenção do sufrágio feminino, ao longo das décadas seguintes. O texto destaca ainda o papel das principais lideranças femininas, especialmente Bertha Lutz, na criação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), em 9 de agosto de 1922. Os eventos comemorativos pelo Centenário da Independência do Brasil representaram momentos importantes para ativar as lutas feministas e recolocar em pauta o direito de voto das mulheres.
O capítulo de Flávio dos Santos Gomes, “Dos ‘negros modernos’: sobre personagens, debates e experiências ausentes, c. 1920, São Paulo”, apresenta um panorama da atuação dos intelectuais negros na década de 1920 por meio da imprensa negra em São Paulo, formada por inúmeros periódicos que defendiam agendas que articulavam narrativas e expectativas de inclusão. Essa militância se tornou especialmente importante considerando as ideias racistas que depois de décadas da abolição continuavam dominantes no cenário político dos anos 1920. As manifestações racistas mostraram-se especialmente chocantes quando, em 1921, emergiram projetos e debates que advogavam promover uma imigração de negros norte-americanos para o país. A reação negativa a essas iniciativas, sob a
alegação de que uma imigração negra poderia despertar o ódio racial, deixava evidenciado o arraigado preconceito racial e as enormes dificuldades de inclusão da população negra na sociedade brasileira. Numa conjuntura em que estavam em curso eventos políticos e culturais comemorativos pelos 100 anos da Independência do Brasil e ressaltava-se a importância de uma unidade da nação, os negros estariam de fora desse projeto.
O último capítulo “Tempo, fonografia e o ser moderno com a tecnologia na década de 1920”, de Denise da Silva de Oliveira, procura compreender como era a experiência de escutar som fonográfico há quase 100 anos, quando o fonógrafo e os discos estavam presentes em discursos que buscavam domesticar e institucionalizar essa tecnologia considerada então símbolo da modernidade. No Brasil, o esforço de legitimação da fonografia empreendido por vários atores — de comerciantes a músicos profissionais, de intelectuais brasileiros à Liga das Nações, precursora da ONU — se consolidaria no anseio pela criação de discotecas públicas, cujas bases se encontrariam num ideal de construção de um futuro progressivamente melhor a partir dos avanços tecnológicos vividos no presente, este, de forma ambígua, alicerçado em um passado já bem conhecido e tido como legítimo e mais seguro.
Com este conjunto de textos, esperamos contribuir para um maior conhecimento da história do Brasil e para as lutas em prol da consolidação da democracia e combate às desigualdades no país.
1922: o passado no presente - permanências e transformações
Coordenadora: Marieta De Moraes Ferreira
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