O Cavalo de Troia digital

Em ‘O cavalo de troia digital: a quarta revolução industrial’, publicada pela FGV Editora, o professor Luiz Roberto Nascimento Silva analisa as principais revoluções industriais e seus impactos na geração de empregos. Nesta obra ele descreve as ideias vivas de dois dos maiores economistas já mortos; expõe que com a pandemia o mapa da pobreza no país precisa ser refeito; afirma que mesmo passada a crise de saúde o mundo não será o mesmo, e que o desemprego gerado pela revolução digital obrigará o Brasil e os demais países a terem programas de transferência de renda de maneira permanente.

Confira a seguir a introdução da obra:

Estamos como estiveram os troianos ao receber o cavalo de Troia dos gregos. Aceitaram felicíssimos aquele presente maravilhoso que chegou de forma gratuita e graciosa. O enorme cavalo de madeira foi entendido pelos troianos como um signo de vitória e assim foi carregado para dentro das muralhas fortificadas. À noite, os soldados inimigos saíram do cavalo, dominaram as sentinelas e abriram os portões permitindo a entrada do Exército grego, levando a cidade à derrota e à ruína.
A história da guerra foi contada primeiro na Ilíada, de Homero, ainda que sem referência específica ao episódio do cavalo, e depois na Odisseia, em que aparece brevemente numa passagem pequena. Vários escritores depois ampliaram e detalharam a guerra e a artimanha. O cavalo é geralmente entendido como uma criação literária, ainda que vários estudiosos acreditem que possa ter existido ao menos como uma máquina de guerra transfigurada ao longo do tempo pelos cronistas.
Do ponto de vista documental, os dois poemas, fundadores da literatura ocidental com seus mais de 27.000 versos, não são propriamente um relato da Guerra de Troia porque Homero teria vivido no século VIII a.C. e a guerra em questão se deu no século XIII a.C. Homero não foi testemunha dos combates na planície de Troia, nem pôde ouvir testemunhos de seus combatentes.
Homero era um aedo, um portador da palavra poética que declamava esses versos em cantos que reconstituíam aos ouvintes os acontecimentos originais numa perspectiva diversa da que se tem hoje de um escritor. Ambos os poemas só vieram a ser fixados na linguagem escrita muitos anos depois, pois no período em que foram encenados e declamados a escrita não era ainda usada no mundo grego.

De qualquer forma, o episódio da Guerra de Troia e o estratagema do cavalo permaneceram como símbolos contínuos e populares na literatura, cinema e teatro. Diversas expressões idiomáticas se formaram em torno do episódio, fazendo com que “cavalo de Troia” significasse um engodo destrutivo, “presente de grego” como alguma coisa que é recebida de forma agradável, mas que acarreta péssimas consequências. Serve também para designar um potente e conhecido malware que é a expressão para software malicioso usado por hackers ou criminosos para obter acesso aos sistemas dos usuários, roubando seus dados confidenciais e assim desviando recursos da vítima, danificando depois seus computadores. Normalmente ele vem disfarçado de um software legítimo; por isso é tão perigoso.
Por isso, recorri a essa alegoria enraizada na nossa cultura para debater uma situação em tudo semelhante ao que vem ocorrendo com o mundo agora. Aceitamos de bom grado, felizes, a internet em nossas vidas. Ela nos chegou também gratuitamente, uma vez que o físico Tim Berners-Lee, em 1989, quando a criou, não a patenteou, permitindo que pudesse ser utilizada sem custos financeiros pelos futuros usuários. Nos primeiros anos, a internet e a revolução digital trouxeram avanços inegáveis largamente superiores aos problemas que depois geraram. Abaixamos a guarda e fomos sendo seduzidos pelas facilidades e comodidades que a digitalização e a internet nos traziam e quando acordamos estava tudo ocupado. Tornamo-nos prisioneiros de nossa própria esperteza. Estávamos escravizados como os dependentes químicos. Tínhamos perdido a guerra, perdido a linha divisória, a fronteira que preservava nossa intimidade e estávamos condenados a servir a esse novo senhor.
Nessa nova ordem mundial, a destruição de empregos formais na economia é superior à criação de novos no setor de tecnologia e computação. O crescimento das empresas tem se feito pela maior digitalização de suas cadeias produtivas, acarretando redução de funcionários. O setor musical foi devastado em sua formação anterior. Os jornais sentem diariamente os efeitos dela. O mercado de livros não sabe como irá se redesenhar. O ganho inequívoco de eficiência se fez pelo desemprego maciço de mão de obra em inúmeros setores.
O mundo virtual criou um universo fraturado, imediato, instantâneo. Como observa Jean Baudrillard: existe uma espécie de metabolismo diabólico do sistema que, ao fractalizar tudo, procedeu à integração de toda dimensão crítica, irônica, contraditória. Tudo está on-line; ora nada pode ser contraposto a um acontecimento on-line.

Hoje está tudo dominado. Todo o sistema bancário depende integralmente da informática. O Poder Judiciário funciona crescentemente por meio da rede. A Secretaria da Receita Federal trabalha apenas pela internet e não existem mais declarações de tributos federais que não sejam informatizadas. O sistema de reservas de passagens e de hotelaria é feito pela rede. Todas as operações das bolsas de valores são feitas em tempo real, eletronicamente. O percentual do comércio interno e internacional que é feito pela internet aumenta continuamente.
Não é só isso. Nenhum ramo do conhecimento ficou indiferente a essa revolução. O que se avançou na área médica é incomensurável, tanto na parte preventiva, como na própria pesquisa e no avanço na execução de cirurgias. Na arquitetura, urbanismo e paisagismo o uso do computador é uma constante. No direito, na economia, enfim em todos os campos do conhecimento a informação é mais rápida, universal e gratuita.
Além dos impactos que já abordamos, a internet acabou por intervir na forma de fazer política. A eleição da Barack Obama só se tornou possível pela estruturação de sua campanha nas redes sociais, o que assegurou a ele votos e recursos financeiros, primeiro para vencer a senadora Hillary Clinton na indicação do partido democrata e depois a própria eleição presidencial.

Movimentos sociais de massa como a “Primavera Árabe” inundando a praça Thair e todos outros que ocorreram na Espanha, Portugal, Suécia, Grã-Bretanha e no Brasil só foram possíveis pela velocidade e surpresa que a internet proporciona por meio das redes sociais. Entretanto pouco depois a internet passou a ser amplamente utilizada na eleição de uma série de políticos autoritários com o exercício de um discurso de antagonismo permanente capaz de ganhar uma eleição, mas incapaz de unir um país. Após a eleição, frequentemente eles continuam a conduzir seus países como se estivessem em campanha e houvesse sempre um inimigo a ser combatido.

A internet alterou completamente a política. As estruturas anteriores dos partidos políticos terão de ser repensadas. Toda a democracia direta, construída em plenários de sindicatos e de partidos, conselhos deliberativos, associações de moradores, está perdendo força e expressão. Passamos de um estágio de sociedade civil organizada para outro de sociedade civil mobilizada. Como as redes sociais são horizontais, elas retiraram parte da hierarquia que presidiu o processo político durante muitos longos anos.
As novas tecnologias de comunicação estão afetando e transformando o processo cognitivo do cérebro humano. O conhecimento estruturou-se pela linearidade e vem sendo substituído pela reticularidade, que é a disposição em rede das matérias. Os jornais na internet são lidos em colunas e não mais de maneira linear como ocorria na sua plataforma papel. O leitor não se fixa mais na ordem cronológica das colunas e da própria organização que o veículo estruturou para o grande público. Ele salta, alterna, modifica o processo de leitura da mesma forma que o controle remoto permitiu o zapeamento dos canais de televisão. Nada obedece a ordem antes estabelecida. À medida que o próprio cérebro humano vem sendo alterado e modificado, habilidades e horizontes vão sendo demarcados de forma inteiramente distinta. Um novo mapeamento está sendo descoberto e nele algumas fronteiras estão sendo descobertas e antigas fronteiras estão sendo esquecidas. Estamos formando – mesmo sem o saber – uma nova cartografia.
A revolução digital é irreversível. Não haverá vida nem civilização sem ela. Ao contrário das revoluções econômicas anteriores, essa está claramente reduzindo vagas de trabalho, por meio de um abrupto e não uniforme aumento da produtividade de alguns, gerando mais desemprego mesmo que, em alguns setores, com aumento de produção. O combate e a resistência deverão ser feitos dentro desse ambiente digital, pois nações que não se conectarem rapidamente aumentarão o fosso de distanciamento em relação às nações com conectividade plena. A discussão terá que ser on-line.

Sabemos todos que uma revolução dessa proporção não terá retorno. Não temos caminho de volta. Isso, no entanto, não nos impede de formular ideias e dividir informações sobre o que vem ocorrendo. Um dos objetivos deste ensaio é permitir que, com maior reflexão e informação sobre o que vem ocorrendo, cada cidadão individualmente possa reconstruir parte de sua geografia pessoal, que foi invadida com sua autorização à semelhança dos troianos quando autorizaram a entrada daquele cavalo em sua cidade.
 

O cavalo de troia digital: a quarta revolução industrial

Luiz Roberto Nascimento Silva

 

Este conteúdo foi postado em 20/10/2021 - 12:06 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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