"Mais do que um gênero, jornalismo de dados é uma necessidade."
A frase, que inicia o prefácio do livro 'Análise política & jornalismo de dados: ensaios a partir do Basômetro' que apresentamos agora, é de um dos organizadores da obra e coordenador do Estadão Dados, José Roberto de Toledo, e sintetiza todo o projeto do Basômetro, incluindo esse ensaio publicado.
O Basômetro é uma ferramenta de uso aberto que permite a todos analisarem o comportamento em plenário dos parlamentares brasileiros.
Trata-se de um sistema elaborado para auxiliar as investigações do jornalismo de dados, que organiza centenas de milhares de dados contidos nos sites do Congresso Nacional em uma interface gráfica mais inteligível, onde cientistas políticos, jornalistas e qualquer interessado tem acesso para fazer suas análises.
Criado em 2012 pelo jornal O Estado de S. Paulo, através do núcleo Estadão Dados, o Basômetro pretende contextualizar uma massa de dados desconexos de forma a viabilizar o entendimento dos resultados consultados por qualquer usuário através do endereço http://estadaodados.com/basometro/
É exatamente sobre a criação dessa ferramenta e os desdobramentos que seu uso já possibilitou e ainda possibilitará na análise política e na evolução do jornalismo de dados que Humberto Dantas, José Roberto de Toledo e Marco Antônio Carvalho Teixeira tratam no livro ‘Análise política & jornalismo de dados: ensaios a partir do Basômetro'.
Confira o prefácio da obra e entenda mais sobre o que dados interpretados são capazes:
"Mais do que um gênero, jornalismo de dados é uma necessidade. Estima a IBM que o mundo produz 2,5 quintilhões de bytes todo dia. Se cada byte fosse um litro d’água, encheríamos o oceano Pacífico de zeros e uns. Todo ano. E para processar tudo isso? Só para comparar, o cérebro humano é capaz de armazenar, se tanto, uns três terabytes de dados. Vou confiar nas contas do estatístico-estrela do The New York Times, Nate Silver (afinal, ele prognosticou tudo certo sobre as eleições nos EUA em 2008 e em 2012): um milionésimo da produção diária de dados provocaria um aviso de disco cheio até para quem tem memória de elefante. E o volume incomensurável é só o começo do problema. A maior parte desse mar de dados é inacessível aos humanos. São pulsos magnéticos, sinais eletrônicos, bits e bytes. Apenas com interfaces amigáveis eles se tornam compreensíveis aos nossos olhos e mentes. E, mesmo depois de traduzidos em números, sons e imagens precisam ser organizados em tabelas, planilhas e bancos de dados para pleitear o status de informação. Enquanto não são analisados e contextualizados, são só ruído, zoeira, poluição.
Eis a necessidade. E o jornalismo de dados é uma tentativa de resposta — muito incipiente, diga-se. Como jornalismo, visa separar o joio do trigo e, com sorte, publicar o trigo. Trata-se, essencialmente, de filtrar, filtrar, filtrar de novo — e daí organizar o que sobrou de modo a que o público seja capaz de atribuir sentido ao produto depurado.
Dito assim, não é muito distinto do que o jornalismo vem tentando fazer — nem sempre com muito sucesso — desde que Gutenberg colocou tinta pela primeira vez nos tipos móveis de sua prensa. A diferença, porém, é quase tão revolucionária quanto a invenção do gênio alemão. O produto do jornalismo de dados não é uma manchete ou uma reportagem. É uma ferramenta. Em sua gênese, os melhores exemplos de Jornalismo de Dados têm vindo do The New York Times. Enquanto corta gente e recursos em editorias tradicionais, para sobreviver à revolução digital, o jornal norte-americano investe em equipes exclusivas de Jornalismo de Dados. É uma área que não gera receita, mas aponta uma saída para o futuro.
Os casos mais bem-sucedidos do NYTimes.com conseguem apresentar uma massa de dados desconexos em uma interface que qualquer usuário é capaz de desfrutar. Foi assim nas eleições de 2012 ou no caso dos presos em Guantánamo. Mapas, infográficos, tabelas e linhas do tempo ajudam o internauta a criar uma narrativa para os fatos — não a narrativa do jornalista, mas a sua própria.
Essa é a grande revolução, embora embrionária, do Jornalismo de Dados. Ao fornecer os meios aos que antigamente eram chamados de leitores, a equipe criada por Aron Pilhofer dá a esses usuários o poder de organizar a massa de dados, fazer suas próprias sinapses e tirar conclusões originais. Não é à toa que o nome da editoria que ele comanda chama-se Interactive News (notícias interativas).
Essa interação propiciada pelas ferramentas do Jornalismo de Dados cria possibilidades muito mais ricas e diversificadas do que um texto jornalístico comum seria capaz de estimular. O ponto de vista do usuário passa a ser necessariamente parte da narrativa. Ganha-se em pluralidade. A perspectiva coletiva é, por definição, mais plural do que a de um só jornalista, por mais “lados” que ele tente incorporar à sua narrativa.
Pode-se argumentar que transferir a interpretação dos dados para o público só reforça os próprios preconceitos e vieses de quem usa a ferramenta. Talvez sim, mas ao menos os pontos de vista dissonantes estarão destoando
a partir de uma base comum, o que, em tese, cria espaço para debate, não bate-boca.
Mais do que isso, uma ferramenta que permite a cada um analisar como quiser uma base de dados é um convite e não uma imposição. Daí que a maior e mais feliz surpresa provocada pelo Basômetro tenha sido a iniciativa espontânea de tantos cientistas políticos de usá-lo para escreverem suas próprias interpretações sobre o comportamento em plenário dos deputados e senadores brasileiros. Este livro é a materialização desse debate.
Em uma área tão contaminada por paixões e interesses partidários como a política, é essencial partir-se de um terreno comum para avançar em qualquer discussão. No caso desta publicação e do Basômetro, o ponto de partida são os milhares de votos nominais de centenas de parlamentares através do tempo.
Teoricamente, essas bases estão disponíveis para consulta por qualquer cidadão nos sites da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Mas o formato digital e o volume oceânico, como explicado no começo deste texto, são barreiras intransponíveis para o cidadão comum conseguir ter uma visão ao mesmo tempo ampla e específica do comportamento dos congressistas — seja para comparar partidos, bancadas ou deputados dois a dois.
O Basômetro organizou centenas de milhares de dados que eram mero ruído nos sites do Congresso em uma interface gráfica que os cientistas políticos puderam e podem usar para fazer suas análises. O efeito disso foi sintetizado num tuíte de um deles, logo no dia de lançamento: “Pirei na ferramenta”. Era tudo o que queríamos ouvir.
O Jornalismo de Dados ainda está engatinhando. Ele depende do trabalho coletivo de jornalistas, desenvolvedores e designers. Só funciona bem quando suas habilidades conseguem se harmonizar em um objetivo comum e muito claro. É fácil se perder na selva de dados — especialmente quando não há um rumo definido. Embora a Lei de Acesso às Informações Públicas tenha sido um avanço fundamental, dispor das bases é só o primeiro passo.
É necessário formar equipes e profissionais com perfis que ainda são raros no mercado. É preciso que os jornalistas se familiarizem com números e estatísticas, e que programadores e designers desenvolvam o faro de repórter. E é indispensável que os gestores dos meios de comunicação identifiquem essas necessidades e atuem para atendê-las. Tudo isso é especialmente difícil num mercado em crise, no qual modelos de negócio que sustentaram jornais por séculos evaporam em menos de uma década.
Como resposta a uma necessidade, o Jornalismo de Dados veio para ficar. É hoje uma tendência de ponta, mas logo deve se transformar em mainstream. Quanto antes melhor. Assim todos nós usuários poderemos “pirar” em ferramentas que nos ajudem a decifrar os 2,5 quintilhões de dados que produzimos diariamente."
A obra será lançada na Livraria Martins Fontes, dia 28/8, às 18h30.
Todos convidados!!
Análise política & jornalismo de dados: ensaios a partir do Basômetro
Humberto Dantas, José Roberto de Toledo e Marco Antonio de Carvalho Teixeira
Impresso: R$52
Ebook: R$37