Durante os séculos XIII e XV, a Europa Ocidental assistiu à formação de seus primeiros estados territoriais, à reintrodução de instrumentos monetários e à própria recuperação da sua vida econômica em geral.
“Poder, riqueza, moeda na Europa Medieval: a preeminência naval, mercantil e monetária da Sereníssima República de Veneza nos séculos XIII e XV” tem o objetivo de reinterpretar o processo de remonetização europeia a partir dos desafios e dilemas próprios das guerras da época, cuja geografia monetária resultante moldou as possibilidades de enriquecimento acelerado. Nesse contexto, a história veneziana tem muito a contribuir, pois evidencia o papel decisivo dos conflitos e da geografia política na abertura de oportunidades para a sua acumulação de riqueza.
Nesta obra, Mauricio Metri defende a tese de que a moeda é uma criação do poder e está sempre a serviço da acumulação do poder, mesmo enquanto opera a serviço da multiplicação da riqueza privada.
O autor ainda demonstra como até mesmo a Sereníssima República de Veneza, considerada o paradigma de cidade mercantil, utilizou seu poder naval para se transformar em uma espécie de broker financeiro dos grandes impérios da época, obtendo, em troca, o controle de posições que foram decisivas para seu poder, riqueza e glória.
Pela forma como utilizou a história e a ciência política para tratar de um tema clássico da economia, e por discutir o tema clássico da “moeda” sem utilizar, nem aceitar, a linguagem convencional ou a visão do mainstream econômica sobre suas origens e funções fundamentais, o autor apresenta um livro surpreendente que poderia servir como um guia para as novas gerações de economistas, cansadas do “autismo” da ciência econômica.
Fizemos 3 perguntas a Metri. Confira:
Qual a principal contribuição dessa obra?
Eu diria que uma das coisas que mais me entusiasmaram na pesquisa para esse livro e que, na verdade, segue orientando novas investigações relativas a outros “tempos e espaços”, foi a redefinição da “informação histórica relevante” para análise de temas monetários. Como se partiu de um outro entendimento sobre o que é moeda e de sua natureza mais elementar (conceito de moeda cartal), como desenvolvido por autores do início do século XX (sobretudo Knapp), as pistas e as fontes primárias se deslocaram da tradicional noção de moeda cunhada (moeda-mercadoria) e de seu conteúdo metálico para a noção de moeda de conta (unidade monetária) dos instrumentos de tributação, de denominação de créditos e débitos, de “precificação”, etc. Isto permitiu, ao final, uma análise bastante interdisciplinar no sentido de uma articulação, ao meu ver, bastante consistente entre os processos históricos de natureza política e econômica que envolveram de algum modo temas monetários no Medievo.
Por outro lado, uma segunda razão de grande entusiasmo foi combinar essa visão sobre moeda a uma perspectiva teórica para análise da história do sistema internacional (a teoria do poder global), em que se privilegiam os desafios de poder, os dilemas de segurança e o caráter anárquico do sistema internacional mesmo no que se refere às suas origens medievais.
Como resultado, pôde-se pensar de modo articulado alguns temas consagrados a partir de um olhar, eu diria, "não convencional". Por exemplo: sobre o tema do reaparecimento das práticas monetárias na Europa Ocidental a partir do século XI e XII, deu-se centralidade às guerras; sobre a circulação de moeda em geral no Medievo, identificaram-se uma geografia monetária e a inexistência de relações de escambo em todos os seus níveis; sobre as origens do que hoje entendemos como altas finanças, ganharam destaque o "jogo cambial" e a igreja católica; sobre a história de Veneza, a natureza cartal e expansiva de sua moeda como resultado não de forças de mercado, mas do poder de sua esquadra.
Qual a importância econômica e histórica em ‘assumir’ as origens da moeda como uma criação do poder em oposição às teorias de economistas e historiadores que defendem um surgimento baseado exclusivamente como substituição ao escambo, ou seja, como uma criação do mercado?
Eu diria que, ao partir da ideia de que a moeda não é propriamente um bem público derivado de uma construção coletiva, mas um instrumento estratégico das autoridades centrais ligado à tributação e ao financiamento da guerra, torna-se possível identificar hierarquias e assimetrias decorrentes de seu uso favoráveis a quem teve a faculdade de proclamá-la, criá-la e, ao final, impô-la a um coletividade. Isto me faz lembrar da famosa declaração do secretário do tesouro dos Estados Unidos no governo de Nixon, John Connally, quando, após a suspensão unilateral do Estados Unidos a uma paridade fixa entre o dólar e o ouro, disse a ministros das finanças de outros países “A moeda é nossa, mas o problema é de vocês”.
Essa visão política das origens da moeda promove alguma reinterpretação no ensino atual das ciências econômicas?
Esta é uma visão que, em minha experiência acadêmica, tem se desenvolvido de forma mais receptiva no campo disciplinar das Relações Internacionais, onde a interdisciplinaridade constituí-se num desafio, na verdade, num imperativo. A historiografia sobre temas monetários, por sua vez, acabou se tornando, em algum grau, refém das contribuições da própria Economia, por assimilar sobretudo as perspectivas teóricas mais consagradas (sobretudo do mainstream econômico) sobre o tema (moeda). No caso da Economia, ao meu ver, por sua “hipertrofia” atual, sobretudo como lente para se analisar as próprias sociedades em geral, em detrimento de outros campos (olhares) das Humanas (ciência política, filosofia, sociologia, antropologia, etc.), ela acabou por assumir uma postura bastante defensiva e refratária a visões mais plurais. Isto tem ocorrido, por exemplo, com as interpretações e estudos que, de algum modo, vêm relativizando a importância das forças de mercado para interpretação histórica de assuntos econômicos, ainda mais para um tema tão caro quanto moeda. Nesse sentido, eu diria que, no momento, tem sido mais fora do que dentro da Economia que essa visão política da moeda vem encontrando maior interlocução e interesse.
O lançamento do livro será sexta-feira, dia 6 de junho, às 18h30, na Livraria FGV (Rua Jornalista orlando Dantas, 44 | Botafogo | RJ). Todos convidados!
Maurício Metri
Impresso: R$48 | Ebook: 34
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