O Exército na consolidação do Império

"A elite política não era contrária ao Exército. Ela, na verdade, elaborou e pôs em prática um vasto projeto de reforma militar. Considerando que as forças militares herdadas do Primeiro Reinado foram desmobilizadas pelos liberais de 1831, é possível afirmar que essa reforma de 1837 dá origem ao Exército brasileiro. Projeto que foi organizado a partir de diretrizes políticas específicas - o Exército brasileiro foi estruturado seguindo uma orientação do Partido Conservador [?], cuidando com zelo de preservar no Brasil uma herança colonizadora: a de uma monarquia assentada na grande propriedade e na escravidão."

Confira o prefácio para a 2ª edição do livro de Adriana Barreto de Souza 'O Exército na consolidação do Império', escrito pela professora Keila Grinberg.

 

Não poderia ser mais oportuna a publicação da segunda edição de O Exército na consolidação do Império, da historiadora Adriana Barreto de Souza. Lançado originalmente em 1999, o livro faz parte de uma intensa produção historiográfica que vem criticando e desconstruindo mitos importantes sobre a história das Forças Armadas no Brasil. A despeito dessa renovação, ainda encontram ressonância pública idealizações sobre as origens do Exército e seu papel nas décadas posteriores à independência do país.
Uma delas é a alusão ao Exército imperial pelo nome de seu patrono, o duque de Caxias (1803-1880), que ainda em vida recebeu a alcunha de o “Pacificador do Brasil”. Guiado por Caxias, o Exército brasileiro desempenhou papel fundamental na desproporcional repressão às revoltas ocorridas ao longo das décadas de 1830 e 1840, como a Balaiada, no Maranhão, e a Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Anos mais tarde, durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), Caxias foi designado comandante máximo das Forças do Império. Quase cem anos depois, foi oficialmente nomeado Patrono do Exército Brasileiro. A associação da imagem do Exército à figura de Caxias, elogiando a ideia de “pacificação” e naturalizando a violência das ações militares desde então, é um dos mais poderosos e longevos mitos sobre a suposta vocação do Exército na mediação de conflitos.

Originalmente dissertação de mestrado defendida no Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob orientação do professor Manoel Salgado Guimarães, e uma das vencedoras do Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa 1997, O Exército na consolidação do Império é obra fundamental justamente porque se contrapõe a essas visões tradicionais sobre a história militar brasileira.

Adriana Barreto demonstra como a fundação do Exército nacional em 1831 fez parte de um projeto conservador que se tornou hegemônico a partir do chamado Regresso, em 1837, quando os membros do Partido Conservador, representantes dos proprietários escravistas, assumiram o poder. Para além da atuação no combate às revoltas que então ocorriam em várias províncias do país, a própria estrutura interna da corporação reproduzia em sua burocracia os valores hierárquicos próprios da sociedade imperial, reservando a oficialidade aos membros das elites locais e as posições de soldados a pessoas como os pardos libertos, vistas como pouco idôneas e que colocavam riscos à tranquilidade pública. Isso não significa, no entanto, que o processo de formação do Exército brasileiro tenha espelhado a sociedade e o Estado brasileiros. Ao contrário, ele ocorreu de forma tensa, plena de interesses díspares e projetos opostos. Ao estudar o contexto mais amplo da formação do Exército e ao mesmo tempo a historicidade de seus interesses e tensões internas, a autora enfatiza a importância de analisar o Exército a partir de suas dinâmicas internas próprias, apontando os problemas da generalização do termo “militares” e chamando a atenção para a necessidade “de um exame mais preciso da organização interna do próprio Exército”. O resultado desse exame preciso é justamente este livro.
O Exército na consolidação do Império é uma defesa da História como campo do saber e da validade de seus métodos para a construção do conhecimento científico. Não há nele nenhuma afirmação que não seja baseada na leitura crítica da historiografia e na análise rigorosa das fontes. Como já notado no prefácio à primeira edição por Manoel Salgado Guimarães, não por acaso o orientador deste trabalho, Adriana Barreto interroga os símbolos fundadores da história do Exército e dessacraliza sua mitificação, que evidentemente não resiste ao confronto 
com a pesquisa documental. Com elegância e firmeza, é como se ela afirmasse ao final: o Exército brasileiro, este que foi fundado em 1831 com a reorganização do poder realizada após a abdicação de d. Pedro I, não é nem nunca foi o “de Caxias”. Ele é mais complexo, mais diverso e, por isso mesmo, mais real do que a idealização que ainda o vê, na figura de seu “patrono”, como a salvação do Estado e da unidade do território brasileiros.

Lido nos dias de hoje, este livro também é uma defesa da importância da História para fundamentar nosso olhar para o presente. Afinal, por incrível que pareça, ainda hoje o Poder Executivo tenta usar o Exército como milícia própria e braço de apoio. São comuns variações da frase “nas mãos das Forças Armadas, o poder moderador [é] a certeza da garantia da nossa liberdade, da nossa democracia, e o apoio total às decisões do presidente para o bem da sua nação”.2 Ela é baseada em uma clara distorção das funções do Exército tal como estabelecidas pela Constituição em vigor. Ao Exército nunca coube dar “apoio total” a nenhum presidente, muito menos exercer poder moderador entre os demais poderes. Essa perspectiva corrobora a ideia bastante controversa de que, ao longo de sua existência, ao Exército caberia moderar os conflitos sociais, sem intervir na política. Ao procederem dessa maneira, nossos contemporâneos realizam a mesma projeção conservadora e mitológica sobre o passado empreendida pelos estadistas do Império, quando atribuíram ao Exército o papel da garantia da ordem e da unificação do território brasileiro.

“Que se aproveitem as lições do passado para a segurança do futuro”, afirmou o líder conservador Paulino José Soares de Sousa, o visconde do Uruguai, em 1843. É com essa citação que Adriana Barreto abre a conclusão de seu livro, demonstrando como, já no século XIX, essa leitura do passado era, em si, um projeto hierárquico, centralizador, autoritário. A publicação da segunda edição deste livro, em 2022, é um apelo à urgência do combate às interpretações que falseiam a História e usam o passado para legitimar perspectivas igualmente hierárquicas, centralizadoras e autoritárias do nosso futuro.

 

O Exército na consolidação do Império: um estudo sobre a política militar conservadora (1831-1850)

Autora: Adriana Barreto de Souza

2ª edição

Este conteúdo foi postado em 10/11/2022 - 11:55 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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