Nas negociações com os grandes laboratórios, os governos de grandes países não inovadores teriam maior poder de barganha do que os governos dos gigantes inovadores entre os países emergentes. Como isso é possível? A resposta é que somente os grandes países não inovadores podem, na prática, consistentemente empregar uma estratégia para “driblar” a proteção patentária de fármacos prevista no Acordo TRIPS, e essa estratégia é a constante ameaça de decretação de licenciamentos compulsórios.
O livro Líderes improváveis: a batalha dos países em desenvolvimento pelo acesso a medicamentos patenteados, de Bruno Meyerhof Salama e Daniel Benoliel, discute o tema de maneira comparada, enfocando os determinantes econômicos, políticos e jurídicos que vêm colocando países como Brasil, Tailândia, Malásia e África do Sul na improvável posição de líderes.
Confira uma parte da apresentção da obra:
"Hoje são frequentes as notícias sobre avanços científicos e terapias que melhoraram a vida dos portadores de diversas doenças, especialmente dos portadores do vírus HIV. Mas essas notícias, de todo auspiciosas, jamais puderam encobrir o drama das disputas entre governos dos países em desenvolvimento e grandes laboratórios farmacêuticos acerca do acesso, pelos primeiros, a medicamentos patenteados pelos segundos. Foi o interesse por tais disputas, e pelo seu entrelaçamento com a regulação internacional da proteção da propriedade intelectual, que há quase 10 anos pôs em marcha a concepção desta obra.
Naquele momento havia um enigma a ser resolvido. Desde a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1994, os sistemas rígidos de patentes foram, ano após ano, abrangendo um número cada vez maior de países em desenvolvimento. Embora isso representasse maiores custos de acesso desses países a medicamentos de ponta originários do mundo desenvolvido, tal aumento se dava de forma bastante desigual: alguns países conseguiam negociar reduções importantes no preço de compra dos medicamentos patenteados; outros, não.
Além disso, era particularmente curioso que alguns países em desenvolvimento negociassem com os grandes laboratórios valendo-se de uma tática bastante agressiva, a saber, a reiterada ameaça de decretação (e pontualmente, a efetiva decretação) de licenciamentos compulsórios sobre as fórmulas patenteadas dos medicamentos. O licenciamento compulsório força o titular da patente a licenciá-la a pessoa legitimada para produção local ou importação de cópias genéricas em troca de um pagamento abaixo do preço de mercado.
Licenciar compulsoriamente é, portanto, uma ação unilateral de um governo nacional que permite o arbitramento para baixo do valor dos royalties a serem pagos ao titular da patente. Ora, se a legislação internacional sobre o licenciamento compulsório era igual para todos os países em desenvolvimento, por que apenas alguns deles ameaçavam realizá-lo?
Três hipóteses poderiam ser descartadas desde logo. Uma era a de que os países com maiores necessidades humanitárias seriam aqueles a recorrer ao licenciamento compulsório com maior frequência. A legislação internacional aplicável ao tema sugere que assim deva ser, mas assim jamais foi. É bem verdade que há casos em que países pobres com graves problemas de saúde pública recorreram ao expediente do licenciamento compulsório. E há mais: especialmente após a chamada Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública – um pronunciamento oficial da OMC, em 2001, sobre o uso de flexibilidades para promover acesso a medicamentos essenciais no mundo em desenvolvimento – o direito aplicável reforçou a legitimidade dessas medidas unilaterais. Contudo, as evidências não sugerem a existência de paralelo claro entre necessidade de medicamentos patenteados e uso de licenciamentos compulsórios.
Outra hipótese era a de que a estratégia negocial dependeria basicamente do tamanho dos mercados de cada país em desenvolvimento, de sorte que as grandes nações emergentes seriam aquelas mais propensas a ameaçar a concessão do licenciamento compulsório por conta da sua força e do seu peso econômico. Embora fosse verdade que os pequenos e médios países em desenvolvimento de modo geral evitassem o uso de licenciamentos compulsórios e isso especialmente por conta das ameaças de retaliação dos governos dos protetivos países-sede dos grandes laboratórios –, entre as grandes nações emergentes tudo indicava que a disposição para realizar licenciamentos compulsórios era mais comum entre aqueles países menos propensos a inovar em fármacos. Ou seja, o tamanho e peso econômico do país parecia ser um ingrediente, mas não toda a história.
Finalmente, a terceira hipótese a ser descartada era a de que o emprego dos licenciamentos compulsórios seria função apenas da vontade política dos governos de cada país. É óbvio que as circunstâncias locais importam, que a política é predominantemente local (e não global) e que sem iniciativa e
liderança políticas nada se faz. Mas se tudo se explicasse apenas pela política interna, por que mudanças de regime muitas vezes não traziam significativas alterações de estratégia negocial dos países? Algo estava faltando.
Para os brasileiros, a questão sempre foi especialmente instigante. A partir do fim da década de 1990, o Brasil passou a figurar na literatura internacional como protótipo do negociador agressivo na área de fármacos – esse, aliás, um perfil nada condizente com o conhecido estereótipo de “homem cordial”.1 Em diversas ocasiões, o governo brasileiro ameaçou licenciar compulsoriamente as fórmulas dos medicamentos patenteados para permitir a posterior produção de genéricos por laboratórios nacionais, tanto públicos quanto privados. Foi o que ocorreu, notoriamente, nas negociações pelo preço dos medicamentos integrantes do “coquetel” de medicamentos contra a Aids, como o Nelfinavir, o Gleevec e o Efavirenz nas compras pelo sistema público de saúde brasileiro, o Sistema Único de Saúde (SUS). No caso do Efavirenz, uma licença compulsória foi de fato decretada pelo Brasil em 2007 e renovada em 2012. O caso brasileiro forneceu, então, o ponto de partida para pensarmos de forma organizada sobre a dinâmica negocial entre governos de países em desenvolvimento e grandes laboratórios farmacêuticos. Inicialmente éramos ainda colegas fazendo doutoramento na Universidade da Califórnia, em Berkeley, vizinhos de quarto no mesmo alojamento de estudantes. O projeto só decolou alguns anos depois, quando já éramos jovens professores de direito, um na FGV Direito SP e o outro na Universidade de Haifa, em Israel. Este livro resulta dessa empreitada."
Líderes improváveis: a batalha dos países em desenvolvimento pelo acesso a medicamentos patenteados
Autores: Bruno Meyerhof Salama, Daniel Benoliel
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