As festas da abolição no Rio de Janeiro

O livro As festas da abolição no Rio de Janeiro (1888-1908) demonstra como as comemorações do 13 de maio 1888 e ao longo da Primeira República criaram a possibilidade de novos tempos para os contemporâneos, especialmente para aqueles que experimentaram o acontecimento como vitória, expectativa e esperança.

A pesquisa desenvolvida pela autora e historiadora Renata Figueiredo Moraes através de consultas de registros de 100 anos desta história localizados em jornais de intelectuais, músicos, artistas, moradores da Cidade – de várias cores -, em fotografias, livros e poesias, traz informações sobre a mobilização que envolveu o primeiro grande movimento social do Brasil e apresenta como as festas cívicas da Abolição, tanto nas semanas em torno do 13 de Maio de 1888 quanto ao longo da Primeira República, foram locais de muitas ações de agentes sociais diversos, inclusive ex-escravizados, e suas muitas bandeiras políticas por direitos, significados e memórias.

Para marcar o lançamento da obra, a autora estará presente na Livraria Blooks de Botafogo, dia 26 de maio, às 19h.

Confira o Prefácio da obra, do professor Leonardo Affonso de Miranda Pereira (PUC-Rio)

O 13 de Maio de 1888, data da Abolição da escravidão no Brasil, tem sido, ao longo das últimas décadas, objeto de importantes controvérsias. Ao apontar para o caráter precário e incompleto da liberdade conquistada naquela ocasião, assim como para o destaque conferido à princesa Isabel no ato de suposta concessão dessa liberdade, parcelas significativas do movimento negro trataram, a partir das últimas décadas do século XX, de se afastar dessa efeméride, definindo uma data diversa para celebrar o orgulho negro no país: o 20 de Novembro, escolhido em homenagem à luta de Zumbi dos Palmares. Afirmam, com isso, o protagonismo negro na luta contra o cativeiro, assim como o caráter autônomo e radical dos ideais de liberdade por ele representado – em contraposição a uma vitoriosa memória oficial que, ao longo do tempo, acabou por desvincular a chamada Lei Áurea das muitas lutas dos escravizados por sua própria liberdade.
É dessas disputas de memória que trata este livro. Sem deixar de corroborar as preocupações e cuidados que alimentaram as críticas às imagens tradicionais sobre o 13 de Maio, Renata Moraes desenvolve uma reflexão que retoma esse debate, centrando-se nos sentidos assumidos pela data em seus primeiros tempos. Baseado em investigação empírica vasta e original, o livro aponta, por um lado, para o início do processo de afirmação de uma memória unívoca sobre a Abolição, que tentava apagar a importância das lutas negras ao longo das décadas anteriores; por outro, para o modo particular como diversos grupos do período, como os próprios trabalhadores negros, trataram de celebrá-la, conferindo-lhe sentidos particulares. Não se trata, portanto, de um estudo sobre o processo abolicionista em si, mas sim sobre o modo como a data da Abolição foi disputada por grupos sociais diversos, em processo que se estendeu pelas duas primeiras décadas da República.
Surpreende, já de início, a exposição detalhada, na primeira parte do livro, do deliberado esforço de afirmação, por parte das elites políticas e intelectuais o Rio de Janeiro, de uma memória unívoca sobre aquela celebração. Por um lado, a própria família imperial tentava impor sua centralidade no ato através de representações imagéticas e escritas. Ao definir a liberdade como uma espécie de benesse dada pela princesa Isabel aos escravizados, promoveu a celebração da assinatura da lei em uma grande missa campal, buscando ligar a Abolição ao sentimento cristão da caridade e à lógica paternalista da concessão. Ao mesmo tempo, redatores, diretores e proprietários das grandes folhas da Corte, com a pena na mão, tratavam de se colocar, já nos dias seguintes à assinatura da lei, como protagonistas maiores da luta pela liberdade. Sem deixar de assinalar o papel destacado da princesa Isabel, definiam o abolicionismo como um movimento ilustrado, supostamente patrocinado por eles mesmos, desconsiderando por completo as experiências e lutas dos próprios escravizados, definidos como simples beneficiários da benesse alcançada. Configurava-se, com isso, uma memória do 13 de Maio que tinha a família real e os grupos ilustrados como seus principais protagonistas.
Mais do que afirmar sua perspectiva subjetiva, esses sujeitos trataram de tentar fazer desta memória a própria definição do processo abolicionista. Isso pode ser percebido, por exemplo, nas comemorações oficiais preparadas para celebrar a data. Renata Moraes mostra que, além das atividades religiosas e esportivas, que dialogavam tanto com o catolicismo do Império quanto com as novas perspectivas científicas sobre a necessidade de regeneração nacional através do investimento na cultura física, a comemoração foi marcada pela organização de um grande desfile cívico. Com uma mínima participação de grupos negros, o desfile era composto, em sua maior parte, de representantes da imprensa, contando também com a presença de corporações militares, comissões escolares e associações de imigrantes. Se, na campanha abolicionista, esses grupos podem ter tido atuações independentes, no desfile eles se apresentavam em procissão unificada, que tentava afirmar uma memória única para a data. O que se apresentava, portanto, era uma encenação da Abolição que se pretendia geral e unívoca, marcada pelo protagonismo de grupos ilustrados. Não por acaso, a própria diversidade entre os jornais da cidade era, naquele momento, deixada de lado em favor da tentativa de imposição dessa memória única da “imprensa fluminense”, que tentava transformar uma leitura muito específica sobre o significado da data em sua própria história.
Se testemunhos como esses serviram de base para a análise de historiadores e cientistas sociais da posteridade, que muitas vezes se limitaram a reafirmar esta memória, Renata Moraes trata de apontar para seus limites e contradições. Na segunda parte do livro explora, para isso, a diversidade de sujeitos e experiências envolvidos na celebração da data, que expressavam concepções muito diversas sobre o significado da nova lei. Em meio a tal diversidade, uma base social clara se impunha: eram trabalhadores muitos dos que tentavam, a seu modo, participar dos festejos. Fosse através de subscrições populares ou de doações individuais, faziam questão de se colocar como sujeitos ativos da festa. Destacavam-se, entre eles, os próprios grupos negros. Ainda que não conseguissem participar dos festejos oficiais da região central da Corte, ou que não conseguissem participar de festas promovidas durante seu horário de trabalho, muitos celebraram a data nos subúrbios e nas zonas rurais, fosse em espaços públicos, em seus clubes recreativos ou mesmo nas fazendas em que trabalhavam. Com mostra a autora, as próprias forma e intensidade dessas celebrações, muitas vezes animadas por batuques e jongos, desnudavam a distância que separava a festa oficial dessas muitas outras comemorações espalhadas pela cidade – na expressão de uma festa que tinha não apenas sujeitos variados, mas também motivações muito diversas, de acordo com o perfil social e étnico de quem comemorava. Por mais que o evento celebrado pudesse ser o mesmo, essa variedade de formas e espaços deixava claro que havia muitas festas dentro da festa, em distinções fortemente marcadas por clivagens sociais e étnicas. Afirmavam-se, assim, no próprio momento daquela celebração, visões muito distintas sobre a liberdade que estava sendo festejada.
Longe de se equacionar ao longo dos anos seguintes, essa diferença foi ficando mais clara, ano após ano, através do modo como os diversos grupos sociais passariam a celebrar a data. Enquanto a empolgação inicial da imprensa com a efeméride parecia diminuir com o passar do tempo, limitando-se a longos artigos de jornal celebrando a liberdade de forma etérea, nos clubes, salões e espaços religiosos frequentados por trabalhadoras e trabalhadores negros da cidade o entusiasmo com o 13 de Maio se manteve intacto por décadas. Ao acompanhar, na terceira parte do livro, as comemorações da data ao longo dos anos seguintes, a autora indica os diversos caminhos de construção da memória sobre aquele marco, que afastavam ainda mais as celebrações negras da lógica liberal expressa pelos jornais. Mostra, com isso, a importância assumida pela Abolição na experiência desses sujeitos. Apesar dos conhecidos limites e contradições da liberdade que havia sido conquistada em 1888, para esses trabalhadores afrodescendentes era inequivocamente uma vitória a ser comemorada e relembrada, o que tratavam de fazer em seus espaços de lazer e de crença.
Configurava-se, nesses caminhos, uma memória negra sobre o 13 de Maio de todo diversa daquela celebrada nos jornais – o que mostrava que, passados anos da assinatura da lei, tratava-se ainda de uma efeméride em disputa. Se para muitos tratava-se de simples ato de superação do passado colonial e de ingresso do Brasil na modernidade liberal, sem que fossem alteradas as bases da ordem social, nas celebrações negras a data era associada a uma concepção mais ampla de liberdade, associada à reivindicação de direitos em meio aos primeiros anos da República. Não por acaso, as mulheres e os homens negros que participavam dessas celebrações não apenas relembravam a conquista passada, mas também apontavam para seus projetos de inclusão em uma República que teimava em tentar excluí-los – fosse ao evidenciar a força de seus cantos e danças, muitas vezes reprimidos pelo poder público; ao afirmar seus laços de crença, tanto em irmandades negras quanto em celebrações de religiosidade afro-brasileira; ou até ao reivindicar seu direito de participação política, como mostram, em 1909, certos festejos da data que se somavam à celebração de um deputado negro.
É essa história de disputas e tensões em torno do 13 de Maio que o leitor tem em mãos. Se hoje sabemos que, ao longo das décadas seguintes, os registros da festa oficial acabaram por deixar nas sombras a memória negra sobre a data, Renata Moraes nos permite compreender o contexto e o sentido original desta disputa.
Mostra, com isso, que as lutas negras pela liberdade se afirmaram por caminhos diversos, todos igualmente legítimos. Longe de se colocarem em contradição, o 13 de Maio e o 20 de Novembro, quando analisados a partir das experiências e lutas negras, se apresentam como momentos igualmente importantes. Ao se centrar nas festas da Abolição, este livro nos permite não somente acompanhar as formas e lógicas assumidas por essa celebração, mas também refletir sobre as disputas de memória que levaram ao seu esquecimento. São motivos mais que suficientes para garantir um lugar de destaque para este livro na já vasta produção historiográfica sobre a experiência negra no Brasil.     

 

As festas da abolição no Rio de Janeiro (1888-1908)

Renata Figueiredo Moraes

 

 

Este conteúdo foi postado em 10/05/2023 - 10:38 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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