Com uma enorme difusão nas culturas políticas de elites intelectuais e autoritárias na Europa e na América Latina dos anos de 1930, o corporativismo social e político foi a principal alternativa conservadora à democracia liberal no período entre guerras.
Esta tendência de escolha ocorreu tanto como um processo capaz de reprimir, quanto de cooptar o movimento trabalhista, os grupos de interesse e as elites.
Com o objetivo de analisar esta relação entre corporativismo e ditaduras, a Editora FGV lança a obra A onda corporativa: corporativismo e ditaduras na Europa e na América Latina, publicada originalmente em Portugal com o título 'A vaga corporativa', expressão mantida em todo a redação.
Os textos, organizados por António Costa Pinto, professor da Universidade de Lisboa, e Francisco Palomanes Martinho, professor da Universidade de São Paulo, defendem que as experiências ditatoriais foram as responsáveis pela institucionalização do corporativismo, fazendo dele não só um pilar da sua legitimação política como também um instrumento de intervenção econômica e social.
Neste livro, o corporativismo é analisado como um dispositivo social e político contra a democracia liberal e que permeou a direita durante a primeira onda de democratizações, demonstrando que este sistema esteve na vanguarda do processo de difusão transnacional, tanto como uma nova forma de representação de interesses organizados, quanto como alternativa autoritária à democracia.
Confira a apresentação da obra:
Este livro tem como objetivo a análise da relação entre corporativismo e ditaduras, tema de estudo antigo no Brasil e em Portugal, dada a sua forte implantação, mas subestimado nos estudos comparados sobre as ditaduras do século XX. Com uma enorme difusão nas culturas políticas de elites intelectuais e políticas autoritárias na Europa e na América Latina dos anos 30, o corporativismo social e político foi a mais conseguida alternativa conservadora à democracia liberal na primeira metade do século XX. De facto ainda que os seus polos de irradiação ideológica e política tenham sido diversos e nem sempre autoritários, foram as experiências ditatoriais que institucionalizaram o corporativismo, fazendo dele não só um pilar da sua legitimação política como também um instrumento de intervenção económica e social.
Institucionalizadas no despertar de democratizações polarizadas, as ditaduras do Entre Guerras tenderam a escolher o corporativismo, tanto como um processo capaz de reprimir, quanto de cooptar o movimento trabalhista, os grupos de interesse e as elites, por meio dos legislativos «orgânicos». É a partir dessa perspetiva que este livro analisa os processos de adoção de instituições corporativas sociais e políticas em alguns países da Europa e da América Latina na primeira metade do século XX.
Assim, no capítulo 1, António Costa Pinto examina o papel do corporativismo como um dispositivo social e político contra a democracia liberal e que permeou a direita durante a primeira onda de democratizações. Processos poderosos de transferências institucionais marcaram as ditaduras do Entre Guerras e o autor demonstra como o corporativismo esteve na vanguarda desse processo de difusão transnacional, tanto como uma nova forma de representação de interesses organizados, quanto como alternativa autoritária à democracia.
Na Europa dos anos 30 os modelos de institucionalização do corporativismo pelo regime fascista italiano, pelo Estado Novo de Salazar, e pela Ditadura de Dollfuss, na Áustria, foram os modelos mais marcantes que se difundiram em muitas ditaduras no período entre as duas guerras mundiais. Ainda que os regimes de Sidónio Pais em Portugal (1918) e de Primo de Rivera em Espanha (1923-1931) tenham sido pioneiros, foi o fascismo italiano o grande motor da difusão a partir da Carta del Lavoro e da tentativa de superação da representação liberal.
Goffredo Adinolfi analisa o percurso de formação do sistema político fascista, procurando evidenciar as suas congruências e incongruências com o modelo de Estado corporativo e orgânico. Definindo o corporativismo orgânico como a tipologia de regime na qual a relação entre indivíduo e Estado deixa de basear-se numa relação voluntarista, princípio instituído pelas teorias contratualistas de matriz liberal, para uma relação na qual o indivíduo é parte de um único corpo físico, Adinolfi estuda as tensões da institucionalização dos corporativismos social e político no regime fascista, concluindo com a tese de que o fascismo italiano não foi, como alguns sublinharam, «a história de uma irremediável e profundíssima distância entre projetos e realizações» mas a concreta e plena atuação de uma das suas possíveis versões.
No capítulo seguinte, Gerhard Botz estuda a institucionalização do corporativismo na Áustria de Dollfuss. Com uma das escolas corporativas católicas mais influentes na Europa Central e Oriental, a ditadura de Dollfuss começou por ser uma coligação entre partidos conservadores que sempre tinham olhado com relativo ceticismo a democracia parlamentar e um grupo de fascistas declarados, que foi conquistando cada vez mais influência dentro do regime. Na Áustria, as propostas corporativistas para a reforma antissocialista, antiliberal e antidemocrática da sociedade e da política foram diversas. No entanto, a construção ideológica criada pelo regime Dollfuss-Schuschnigg foi a mais abrangente e sistemática jamais desenvolvida por um Estado seguidor do corporativismo. A Constituição de 1934 foi acompanhada por diversas leis e decretos que deviam ser implementados de modo gradual, e a constituição corporativa permaneceu por implementar, dada a curta duração da ditadura que em 1938 sofre a anexação pela Alemanha nazi. Não obstante, representou a mais clara expressão de um sistema de pensamento corporativo jamais aplicado a um Estado, ainda que fosse um compromisso entre as propostas conservadoras e cristãs de corporativismo social e o corporativismo político mais explicitamente ditatorial dos fascistas e dos seguidores de Otmar Spann.
O Estado Novo português de Oliveira Salazar constituiu a mais longa experiência ditatorial do século XX que se legitimou política e socialmente no corporativismo. Teve um «Estatuto do Trabalho Nacional» que se inspirou no fascismo italiano mas temperado pelo catolicismo social, e declarou-se um Estado «Unitário e Corporativo» pela Constituição de 1933. Ainda que as corporações só tenham sido criadas nos anos 50, a ditadura de Salazar institucionalizou ao lado de um parlamento ocupado pelo partido único uma Câmara Corporativa, cujas funções são analisadas no capítulo 4, da autoria de José Luís Cardoso e Nuno Estêvão Ferreira. À Câmara Corporativa ficou reservada uma função de representação orgânica «de autarquias locais e de interesses sociais, considerados estes nos seus ramos fundamentais de ordem administrativa, moral, cultural e económica », que funcionava como segunda câmara não eletiva em que prevalecia o princípio de uma suposta consagração do reconhecimento atribuído a sectores-chave da sociedade, retoricamente apelidados de «forças vivas da nação». Os autores concluem que esta contribuiu de forma decisiva para a criação de bases técnicas e de suportes ideológicos ao funcionamento do regime.
O corporativismo social e político marcou profundamente também a Espanha, e as suas duas experiências autoritárias no século XX foram ilustrativas de uma precoce adopção das duas faces do corporativismo, com a ditadura de Primo de Rivera (1923-1930), a partir do campo conservador, e depois com o franquismo, bem mais próximo do fascismo. No capítulo 5, Glicerio Sanchez Recio analisa a primeira tentativa de implantar um regime corporativo em Espanha durante a ditadura do general Primo de Rivera, a partir de 1926, com a publicação do decreto-lei sobre a organização corporativa do trabalho, obra do ministro do Trabalho, Eduardo Aunós, e depois com o franquismo que, para além da do Fuero del Trabajo, versão franquista da Carta del Lavoro do fascismo italiano, vai criar um «parlamento corporativo», as Cortes, com voto «orgânico» e representação corporativa.
O capítulo 6 é dedicado aos debates sobre o corporativismo em França que culminaram na publicação da Charte du Travail pelo regime de Vichy. Os intelectuais e os movimentos políticos franceses estão entre os mais influentes polos de difusão do corporativismo junto das elites europeias e latino-americanas. AAction Française foi apenas um deles, que marcou grupos que vão do Integralismo Lusitano, à Accion Española, e aos nacionalistas argentinos. Mas este polo tradicionalista é apenas um de entre vários e Vichy será marcado por uma tensão entre estes e sectores mais modernizadores como aliás acontecerá em outros regimes como o Estado Novo de Getúlio Vargas. Como sublinha Olivier Dard na conclusão, foi com Vichy que o corporativismo se institucionalizou em França, passando do projeto à realização. Mas foi também com Vichy que o corporativismo em França caiu num descrédito do qual não mais recuperou.
No capítulo 7, Francisco Palomanes Martinho elabora uma comparação entre os modelos sindicais e corporativos do Brasil e de Portugal.No Brasil como em Portugal os agentes do Estado foram entendidos pelos trabalhadores como aliados em favor de suas demandas. Nos dois países a recusa patronal em aceitar as novas regras e os limites impostos pelos respetivos governos foi uma constante. A despeito das evidentes semelhanças, diferenças entre os casos português e brasileiro também lhe merecem observação. No Brasil pode-se dizer que o processo legislativo foi mais amplo, na medida que o Estado desde o início adotou regras que em parte se mantiveram por décadas a seguir à queda do Estado Novo. Além disso, a tendência no Brasil foi fazer com que as leis aprovadas pelo Estado fossem, guardadas as especificidades, as mesmas para todas as categorias profissionais. Em Portugal a implantação da legislação sobre os sindicatos sofreu um processo mais experimental, permitindo alterações que mudavam as conceções originais. Por outro lado, a oposição renhida das classes proprietárias ao corporativismo e a crise decorrente da guerra determinaram novos rumos à política social portuguesa, mas não a queda do ditador. Em outras palavras, enquanto no Brasil houve continuidade sem Vargas, em Portugal temos a descontinuidade apesar da permanência de Salazar. Os quatro capítulos seguintes são aliás dedicados exclusivamente à experiência brasileira.
A difusão do corporativismo no Brasil teve como agentes partidos, instituições estatais, técnicos e intelectuais, mas as primeiras experiências corporativas ocorreram a partir da década de 1930 e tornaram-se constitucionais em 1934. A Carta de 1934 representou a introdução da representação corporativa e a ampliação dos direitos sociais na Constituição. No capítulo 8, Claudia Viscardi aprofunda o primeiro aspeto, o da proposição e encaminhamento da representação corporativa, o que marca a origem das primeiras experiências brasileiras neste campo. O seu objetivo é compreender como a representação corporativa ocorreu e tentar delimitar os principais atores envolvidos com a proposição, seus interesses e suas vinculações teóricas.
No caso do Brasil é também impossível falar de corporativismo sem falar de Oliveira Vianna, o seu principal ideólogo e simultaneamente o seu mais importante legislador. No capítulo 9, Fabio Gentile, analisa a apropriação das ideias fascistas e corporativas no pensamento de Oliveira Vianna pensado como processo de «circulação-compartilhada» de ideias em nível global entre as duas guerras mundiais, de forma a compreender como, a partir do modelo italiano, ele foi recebido e reelaborado no pensamento nacionalista autoritário de Oliveira Vianna. Como e em que medida na sua qualidade de consultor jurídico do Ministério do Trabalho durante a década de 30 este se apropriou do modelo de Alfredo Rocco, modificando e adaptando-o de forma compatível com a realidade brasileira? A sua resposta passa pela revisão do conceito de «autoritarismo instrumental » de Oliveira Vianna, teorizado pelo cientista brasileiro W. G. dos Santos. Em outras palavras, a questão central que o autor coloca neste trabalho é como foi possível no pensamento de Oliveira Vianna, ideólogo do Estado autoritário, adaptar para a sociedade brasileira o Estado corporativo, pensado como o melhor e mais moderno «instrumento » para pôr ordem na crise do estado liberal, sem necessariamente cair na teoria da «ditadura permanente» do fascismo.
Os partidos fascistas da Europa Ocidental e do Sul fizeram do corporativismo um ponto central dos seus programas políticos, muitas vezes radicalizando a sua componente mais totalizante perante os conservadores e católicos sociais. No caso da Ação Integralista Brasileira, a formação católica de Plínio Salgado, as ligações antigas aos Integralistas Lusitanos e a influência do fascismo italiano não entraram em tensão. Como demonstra Leandro Pereira Gonçalves no capítulo seguinte, Salgado concebia o corporativismo sob a ótica católica, e com esse pensamento, aliado a fatores ligados à circularidade cultural na qual estava inserido, traçou o modelo de Estado corporativo baseado no Estado integral, e por ser o chefe nacional, detentor do maior posto dentro da hierarquia integralista, a sua doutrinação católica em defesa da revolução espiritual de base orgânica, em defesa do revigoramento da alma brasileira e com a pretensão de resgatar as raízes nacionais, foi um elemento hegemónico no contexto integralista. O integralismo colocava-se como um movimento que deveria unir todas as esferas da sociedade em uma estrutura única instituída no Estado integral. A ordem normalizadora da AIB suprimia as vontades individuais em prol de um bem maior: a unidade do Brasil sob um Estado integral, que representava a organização do Estado corporativo.
Chegamos então a um tema que atravessa quase todo este livro, as constituições autoritárias e a maior ou menor consagração do corporativismo nos sistemas políticos autoritários. No caso do Brasil, a Constituição de 1937, da autoria de Francisco Campos, ministro do Estado Novo de Getúlio Vargas, ainda que não tivesse entrado em vigor, é o tema do capítulo 11, da autoria de Rogério Dultra dos Santos. Francisco Campos é um intelectual e político que provém do liberalismo crítico e que vai evoluindo para a defesa do autoritarismo, mas, ao mesmo tempo, não ignorando a existência de suas instituições enquanto ainda não é possível desfazer-se delas. A Constituição de 1937 é monoliticamente antiliberal, elimina o funcionamento de partidos políticos, restringe o sufrágio, atribui poder legislativo à administração e submete-se a si própria e ao Judiciário ao Chefe do Executivo. Como salienta o autor, Campos concebe o corporativismo como o resultado de um Estado protetor e árbitro, capaz de conduzir o domínio da economia sob a lógica do bem comum e não do interesse individual. Mas o Estado Novo não representou nem somente uma centralização dos poderes no Executivo, nem uma mera organização política de carácter corporativo. A incorporação social e cultural das massas, a crítica pormenorizada das instituições liberais, e a oposição entre democracia liberal e democracia orgânica são elementos constitutivos do discurso legitimador do Estado Novo brasileiro.
Finalmente os dois últimos capítulos abordam dois casos-fronteira na relação entre corporativismo e ditaduras na América Latina. A Argentina de Uriburo e Perón e a Colômbia de Laureano Gómez. Na Argentina, o período entre 1930 e 1946 foi marcado por profundas transformações que incluíram a lenta agonia do liberalismo e a emergência de uma nova Argentina cada vez mais alicerçada em ideias corporativistas antiliberais e anticomunistas. Para Federico Finchelstein, o golpe militar do general José Felix Uriburu, em 1930, inicia o período em causa, que termina com a eleição como presidente do general Juan Domingo Perón. Em termos de corporativismo, o período começa com uma ditadura corporativista e termina com a emergência de uma democracia autoritária corporativista. Durante estes anos, o movimento nacionalista – a versão argentina do fascismo – foi o principal paladino do corporativismo no país. Mas, esta é a principal conclusão do autor, na Argentina, apesar de surgido como uma resposta de direita à derrota global do fascismo, o populismo iria reformular o corporativismo ao longo dos anos que se seguiram, adquirindo com Perón «uma forma de antipolítica transcendental».
Para terminar, como que encerrando um ciclo de ascensão e queda do corporativismo associado a ditaduras e/ou a reformas autoritárias da representação liberal da primeira metade do século XX, Helwar Hernando Figueroa Salamanca analisa a proposta de criação de um Estado corporativo na Colômbia. Uma iniciativa falhada do presidente Laureano Gómez, num contexto no qual as associações económicas encontraram o apoio de importantes sectores do clero católico, que viam na ideia corporativa a melhor arma contra o liberalismo, económico e político, sem esquecer o seu papel de ferramenta ideológica para utilizar contra as ideias de um socialismo de Estado. Laureano Gómez quis então eclipsar os moderados e sentiu-se com a força suficiente para pôr em prática um corporativismo político e social de cariz autoritário e que era conforme ao seu pensamento tomista e tradicionalista, tendo a singularidade de o fazer nos anos 50 do século XX.
O livro será lançado na segunda-feira, dia 19 de setembro, às 19h, na Blooks Livraria de Botafogo.
Às 15h do mesmo dia, os autores António Costa Pinto e Francisco Palomanes Martinho estarão presentes no debate sobre a obra, junto ao professor do CPDOC, Marco Aurélio Vanucchi, no auditório 307 do edifício-sede da FGV, no Rio de Janeiro.
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