Desde os anos 1990, as Forças Armadas foram recorrentemente utilizadas em ações de segurança pública no Brasil. Como elas se desenvolveram e que impacto tiveram para os militares? Para responder a essas questões, estão aqui reunidas 16 entrevistas com oficiais das Forças Armadas. Em seu conjunto, permitem conhecer a experiência e a visão de mundo de uma geração de oficiais que participaram dessas operações de emprego doméstico das Forças Armadas e para refletir tanto sobre os desafios que elas enfrentaram quanto sobre o legado que deixaram.
Entrevistas com: General Roberto Jugurtha Camara Senna, Coronel Romeu Antonio Ferreira, General Franklimberg Ribeiro de Freitas, General José Elito Carvalho Siqueira, Almirante Carlos Chagas Vianna Braga, General Adriano Pereira Júnior, General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, Almirante Reinaldo Reis de Medeiros, General Joaquim Silva e Luna, General Sergio Westphalen Etchegoyen, General Walter Souza Braga Netto, General Sergio José Pereira, General Richard Fernandez Nunes, General Edson Massayuki Hiroshi, General Sergio Luiz Tratz, General Fernando Azevedo e Silva
Confira parte da apresentação da obra:
Das GLO à guerra urbana: a trajetória do emprego doméstico dos militares no Brasil (1992-2022)
Apesar de não ter se envolvido em conflitos interestatais desde a Segunda Guerra Mundial, o Brasil é o segundo país com maior contingente militar nas Américas, após os Estados Unidos, com aproximadamente 356 mil membros ativos nas Forças Armadas. Além disso, para um país que mantém relações pacíficas com seus vizinhos, o Brasil investe significativamente em defesa. Nos últimos anos, o orçamento brasileiro para as Forças Armadas foi o maior da América Latina e Caribe, representando cerca de 45% de todo dos gastos militares na região. O orçamento da Defesa também é vultoso se comparado com o de outros ministérios, sendo consistentemente um dos cinco ministérios que mais custam ao erário.
Entre as atividades e competências do Ministério da Defesa, além do preparo para a defesa contra ameaças externas e do engajamento em operações de paz no exterior, inclui-se o emprego das Forças Armadas no âmbito doméstico, nos termos da Constituição. As forças podem realizar atribuições subsidiárias que contribuem para o desenvolvimento nacional e a defesa civil ao se engajarem em ações de natureza preventiva ou repressiva, por vezes em coordenação com outros órgãos governamentais. Especificamente, grande parte da atuação doméstica das Forças Armadas se dá no âmbito das chamadas Operações de Garantia da Lei e da Ordem (OpGLO). O emprego das Forças Armadas no âmbito das OpGLO concentra-se principalmente em atividades como o policiamento e o apoio logístico durante as eleições; na segurança de grandes eventos de escopo internacional; na atuação para prover segurança em casos de greves das polícias militares ou no policiamento e em operações interagências para reduzir a criminalidade nas grandes cidades brasileiras, nas chamadas GLO de violência urbana.
Este livro é um resultado do projeto de pesquisa “Forças Armadas na Segurança Pública no Brasil”, desenvolvido entre 2020 e 2022. O projeto consistiu no levantamento de documentos oficiais do Ministério da Defesa e do Exército sobre o assunto, incluindo legislação e manuais doutrinários publicamente disponíveis, para a elaboração de uma cronologia dos principais eventos relacionados ao tema e, principalmente, para auxiliar a produção de um acervo de entrevistas realizadas entre abril de 2021 e fevereiro de 2022. Esse acervo possui um total de aproximadamente 30 horas de gravação em áudio e vídeo. Foram entrevistados 16 oficiais das Forças Armadas que ocuparam posições privilegiadas na decisão, planejamento ou condução de missões de segurança pública. A maioria dos entrevistados é do Exército, porque esta força é a mais envolvida nessas ações. Há, porém, dois entrevistados da Marinha, especificamente do corpo de fuzileiros navais, também utilizado nas OpGLO.
Este foi um projeto conduzido durante a pandemia de Covid-19. A equipe envolvida nunca se reuniu toda pessoalmente. Também foi necessário adaptar o protocolo de entrevistas para que os entrevistados pudessem, com segurança, dar seus depoimentos. À exceção das entrevistas com o almirante Carlos Chagas e com os generais Braga Netto e Sergio, todas as demais foram realizadas remotamente, pela plataforma Zoom.
Os entrevistados eram, em sua quase totalidade, oficiais-generais — militares que, portanto, chegaram ao escalão mais elevado da carreira. Eles ocupavam, no momento da entrevista, diferentes posições: na reserva, na ativa ou reconvocados para funções a pedido do Poder Executivo. É importante frisar que, apesar de algumas menções à pesquisa acadêmica com uma conotação negativa, como se seus resultados fossem geralmente contra a visão dos militares sobre as OpGLO, os entrevistados manifestaram conhecimento e respeito pela FGV e pelos pesquisadores/entrevistadores envolvidos no projeto. Num momento delicado das relações entre civis e militares na democracia brasileira, em que as Forças Armadas apresentam-se com um renovado protagonismo político, não houve, em momento algum, tensão entre os pesquisadores e os entrevistados, e foi possível entrevistar indivíduos com relevância política para além da caserna, como os generais Walter Braga Netto (então ministro da Defesa, ex-interventor federal no Rio de Janeiro e já potencial candidato à vice-presidência da República), Joaquim Silva e Luna (então presidente da Petrobras, ex-presidente da Itaipu Binacional e ex-ministro da Defesa no governo de Michel Temer) e Fernando Azevedo e Silva (ex-ministro da Defesa no governo de Jair Bolsonaro).
O acervo constituído é bastante rico porque cobre temporalmente as OpGLO desde sua gênese até as mais recentes, e os entrevistados puderam nos fornecer informações sobre suas experiências como oficiais em pequenos escalões ou nos mais altos postos de comando; e sobre a formulação da política, da doutrina até as impressões de cunho mais operacional, que só os militares que estiveram no terreno poderiam conhecer. A maior parte dos entrevistados teve as OpGLO perpassando diferentes momentos de sua carreira e participou de várias ações.
Nossas entrevistas indicam que as OpGLO impactaram profundamente as Forças Armadas do ponto de vista de sua doutrina de emprego. As fontes de mudança doutrinária advêm tanto do repetido emprego doméstico dos militares quanto das missões de cunho internacional, seja como observadores militares, seja como tropa empregada em operações de paz. Em especial, ao longo da década de 2010, as forças militares e sobretudo o Exército criaram um arcabouço doutrinário, adquiriram equipamentos e desenvolveram protocolos de treinamento para permitir e orientar sua atuação na segurança pública. Desde 2019, as OpGLO na segurança pública vêm declinando quantitativamente e as forças vêm igualmente adaptando sua doutrina.
Traçaremos brevemente, nesta apresentação, o surgimento e o desenvolvimento das OpGLO no Brasil, avaliando seu impacto na evolução da doutrina do Exército brasileiro. Elas surgiram e evoluíram ao longo dos anos a partir de demandas do Executivo, foram colocadas em prática pelos militares no exercício de sua execução e impactaram substancialmente as Forças Armadas, o Exército em particular, do ponto de vista doutrinário.
Forças Armadas na segurança pública: a visão militar
Organizadores: Celso Castro, Adriana Marques, Verônica Azzi, Igor Acácio
Comentar