A partir da Constituição Federal de 1988, a educação básica virou um direito e ganhou uma relevância que nunca teve na agenda pública brasileira, em prol da universalização do acesso e da melhoria da qualidade da escola pública. Nesse cenário, a oferta educacional, que já dependia fortemente da liderança dos estados e municípios, ganhou contornos ainda mais descentralizados, com os governos subnacionais adquirindo importante protagonismo e realizando múltiplas tentativas de reformas de seus sistemas públicos. Considerando que os resultados de reformas educacionais subnacionais têm sido muito heterogêneos, mesmo entre localidades de nível socioeconômico similar, a obra busca evidenciar o porquê dessas diferenças, em particular no que concerne aos caminhos que vêm sendo seguidos por aqueles que destoam positivamente da média - os "pontos fora da curva", tendo como base dois dos mais bem-sucedidos casos brasileiros: as reformas no Ceará e em Pernambuco.
Considerando que os resultados das reformas educacionais subnacionais têm sido muito heterogêneos, mesmo entre localidades de nível socioeconômico similar, a obra busca evidenciar o porquê dessas diferenças, em particular no que concerne aos caminhos que vêm sendo seguidos por aqueles que destoam positivamente da média, os “pontos fora da curva”, tendo como base dois dos mais bem-sucedidos casos brasileiros: as reformas no Ceará e em Pernambuco.
Nesse sentido, o livro Pontos fora da curva: por que algumas reformas educacionais no Brasil são mais efetivas do que outras e o que isso significa para o futuro da educação básica, do atual Diretor Executivo do ‘Todos Pela Educação’, Olavo Nogueira Filho, visa não só contribuir para o debate público, mas também servir como referência para subsidiar a tomada de decisão de gestores públicos educacionais na tarefa de promover o fortalecimento dos sistemas educacionais.
Confira a apresentação da obra escrita pelo professor Fernando Luiz Abrucio:
Pontos fora da curva é um livro que representa bem o perfil híbrido de seu autor. Olavo Nogueira Filho é um pesquisador fino da educação brasileira e trabalha cotidianamente com os atores que formulam e implementam as políticas educacionais em todos os cantos do país, do menor município até o MEC. A obra é fruto de sua dissertação de mestrado, a qual tive o privilégio de orientar, mas também resulta de sua experiência na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e de sua atuação no movimento Todos Pela Educação, ajudando a produzir diagnósticos e prognósticos de vários temas educacionais. Daí o caráter reflexivo e prático do trabalho, que poderá ter impacto tanto no debate acadêmico quanto na definição de estratégias de políticas públicas para políticos e gestores.
A pergunta central do livro é instigante: qual é o melhor caminho das reformas educacionais, especialmente no Brasil? Como resposta, não se propõe um receituário fechado sobre o que fazer, mas se apresenta uma nova maneira de pensar o como fazer, em particular no que se refere à construção do processo de formulação e sua relação com a implementação. Tendo como base a literatura internacional recente e um amplo diagnóstico das mudanças educacionais brasileiras desde 1988, Olavo selecionou dois casos muito bem-sucedidos de reforma: as políticas educacionais dos estados do Ceará e de Pernambuco.
O sucesso desses dois casos pode ser constatado de algumas formas. A primeira tem a ver com o avanço de ambos nos indicadores educacionais de larga escala, mormente o Ideb. É impressionante a melhoria no Ceará, particularmente no fundamental, e a realizada em Pernambuco, marcadamente no ensino médio. Esse progresso no aprendizado dos alunos é ainda mais impressionante tomando como base seu ponto de partida: os dois estados não são os mais desenvolvidos do país, muito pelo contrário. Vale ressaltar ainda, como faz Olavo, que os resultados positivos combinaram melhoria da qualidade com maior equidade. O êxito dos casos cearense e pernambucano também se deve ao fato de que outros estados têm se inspirado nos modelos de alfabetização por regime de colaboração – o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic) do Ceará e o do ensino médio em tempo integral em Pernambuco.
Todos os marcadores de sucesso apresentados são importantes para classificar as experiências de Pernambuco e do Ceará como bem-sucedidas. Mas há um elemento central que é a base do argumento do livro: a forma como foram feitas essas reformas é tão ou mais importante do que seu conteúdo. Olavo elenca cinco características que são essenciais para produzir um caminho reformista efetivo.
A primeira característica é ter uma governança mais ampla da reforma, envolvendo um conjunto maior de atores. A segunda é articular bem a formulação com a implementação. A terceira é pensar a reforma educacional como um projeto contínuo e de mais longo prazo – a continuidade é uma peça-chave do êxito desses casos. A quarta é ter uma visão sistêmica da política educacional, que se baseie na articulação das partes e não na concentração em um dos elementos, pois o avanço reformista está muito ligado à boa coordenação entre atores e ações governamentais.
Por fim, o sucesso do caminho reformista dos casos do Ceará e de Pernambuco está numa diretriz mais vinculada à chamada terceira geração de reformas educacionais, cujo ponto central é combinar bem, de um lado, uma ação estratégica no campo dos insumos e suportes educacionais – como a qualificação dos professores, melhoria nos processos de seleção de diretores e apoio maior do estado às secretarias municipais e às escolas – com, de outro, a utilização de instrumentos de incentivo, mensuração e aprendizado frente aos resultados educacionais.
Olavo realça que só é possível melhorar o desempenho dos sistemas educacionais se houver uma ênfase maior nos meios (ou nos “comos”), o que implica apostar mais numa gestão qualificada dos profissionais da educação, numa articulação constante e colaborativa entre as organizações (particularmente entre a secretaria e as escolas) e entre os entes federativos para aprimorar a relação entre formulação e implementação, num foco mais estratégico na política pedagógica e, como corolário, adotar uma visão sistêmica ampla de todo o processo de mudança.
A construção do argumento explicativo do sucesso dos casos do Ceará e de Pernambuco já torna o livro de Olavo uma referência fundamental para o debate. Somaria a isso outro aspecto que se destaca no trabalho, que é desmontar sete mitos presentes na discussão sobre reforma educacional no Brasil.
O primeiro mito é o de que a educação brasileira piorou nos últimos tempos porque não houve reformas adequadas. Na verdade, a partir principalmente de 1988, o Brasil começou um ciclo longo de mudanças que alçaram a política educacional a um novo patamar. Ao contrário do que diz o senso comum, que espalha a ideia de que “boa era a escola pública do passado”, a trajetória histórica do país foi de um processo muito lento de mudança educacional, marcado por um modelo elitista que não garantia o ensino a grande parcela da população e que “expulsava”, de várias maneiras, os mais pobres da escola. Além disso, não havia uma política nacional efetiva nem um financiamento minimamente adequado para a educação básica, de modo que existia um sistema fortemente estadualizado e fragmentado, no qual imperava uma enorme desigualdade territorial de acesso e qualidade de ensino.
A pesquisa de Olavo ressalta que nunca houve tantas mudanças positivas na educação brasileira quanto no período de 30 anos que vai de 1988 a 2018. A lista de transformações é grande, sendo possível citar alguns aspectos aqui. Houve uma política bem-sucedida de universalização do ensino fundamental, de ampliação dos concluintes do ensino médio, de expansão inédita de educação infantil e, mais recentemente, das creches, além da inclusão de pessoas com deficiência no sistema de ensino regular e a ampliação de alunos pobres e negros no ensino superior. Houve muitos avanços no financiamento, com o Fundef e o Fundeb, ampliação da descentralização municipalista para captar os alunos que as redes estaduais não pegavam, criação de modelos de avaliação dos resultados educacionais, maior qualificação dos professores e a construção de carreiras docentes desvinculadas do processo político clientelista (que era a norma no país), maior participação da sociedade e o surgimento de inovações nas políticas educacionais de governos subnacionais.
Obviamente que ainda há vários desafios a enfrentar, mas essa primeira geração de reformas colocou a política educacional num novo patamar e, pela primeira vez na história do país e de forma muito atrasada em relação aos países desenvolvidos ou mesmo em contraste com nações vizinhas, constituiu-se um sistema escolar de massa, para todos os brasileiros. Olavo nota ainda, novamente contra o senso comum, que até no campo do desempenho mensurado por avaliações de larga escala houve avanços importantes, que não foram maiores em parte porque nosso ponto de partida era muito ruim no plano da comparação internacional.
O segundo mito derrubado por Olavo refere-se à ideia de que há um único e redentor tipo de reforma, quase atemporal e mágico. Essa assertiva vale tanto para o conteúdo quanto para o formato dos processos reformistas. O livro mostra que há várias fases de reformismo (primeira, segunda e terceira gerações) e todas elas têm sido importantes para os países melhorarem suas políticas públicas. Se na primeira onda o importante é construir as bases de um sistema educacional de massas, na segunda o ponto central é estabelecer diagnósticos e modelos de avaliação do aprendizado. Ambas são importantes, mas limitadas, de modo que o padrão que ganha hoje força no mundo é aquele que, de forma sistêmica, articula melhor os “comos”, com ênfase na construção de capacidades profissionais, pedagógicas e de governança educacional. Cabe apontar que elementos de cada uma dessas gerações podem ser necessários em contextos específicos.
Derrubar o segundo mito (o da reforma única e redentora), no fundo, é entender o caráter histórico e contextual das reformas educacionais, mostrando que ao longo do tempo novas questões e temas surgem, e os reformadores têm de ser capazes de aprender com o que se constata ser o melhor caminho daquele momento. De todo modo, Olavo ressalta que, atualmente, o modelo de terceira geração é o mais relevante para os casos mais bem-sucedidos no mundo e se encaixa como uma luva na forma como as reformas ocorreram e tiveram sucesso nos casos cearense e pernambucano.
Também é preciso abandonar as falsas dicotomias que alimentam boa parte do debate sobre reformas educacionais no Brasil. Esse é um terceiro mito, segundo o qual deve-se optar ou por uma ênfase na valorização dos profissionais da educação, ou buscar resultados, ou então deve-se procurar modelos mais competitivos de reformismo por meio de incentivos aos que têm maior desempenho, ou então se deve apenas procurar maior cooperação entre os atores. O exemplo do Ceará de alfabetização revela o contrário: é possível e necessário combinar profissionalização e apoio às escolas com uma gestão por resultados, do mesmo modo que é possível e desejável compatibilizar a competição com a colaboração.
Ainda na linha de visões dicotômicas, há outro mito recorrente – o quarto dessa lista –, que é o da concentração das respostas educacionais no nível das secretarias ou no plano das escolas. Centralização excessiva nas mãos dos policymakers versus uma autonomia completa e descoordenada das unidades escolares é o tipo de oposição que se deve evitar. O melhor caminho está na melhor articulação das duas instâncias, numa via de mão dupla.
O livro de Olavo capta muito bem essa ideia, colocando-se tanto contra a adoção de um modelo uniformizador criado de maneira top-down, como igualmente se contrapõe à crença de que todas as escolas conseguiriam, sozinhas, resolver seus problemas com a mesma efetividade, algo que, num país como o Brasil, seria impossível dada a enorme desigualdade territorial e entre as unidades escolares.
Para evitar a armadilha de uma visão linear da relação entre formulação e implementação, Olavo mostra que a combinação de planejamento estratégico, apoio e coordenação das secretarias com um modelo de escolas fortes institucionalmente e alicerçadas num trabalho coletivo e colaborativo com os atores que fazem parte de sua dinâmica é a via que favorece o maior sucesso das reformas educacionais – como, aliás, fica claro nos dois casos estudados.
Um quinto mito reformista vai além da política educacional e abarca muito dos discursos daqueles que pretendem modernizar o Estado brasileiro. Trata-se da ideia de que o melhor caminho das reformas está em fazer mudanças rápidas e “completas”. Essa ideia maximalista aparece igualmente em debates sobre reforma política ou administrativa e vê em qualquer demora, necessidade de diálogo ou de ajuste de rota formas de veto à “verdadeira transformação”. Olavo aponta que as boas experiências pelo mundo e as experiências bem-sucedidas do Ceará e de Pernambuco são, por natureza, incrementais, pois exigem um bom tempo de maturação, com o uso do aprendizado adquirido para corrigir ou aperfeiçoar as propostas ou a implementação.
Mais do que isso, os sucessos cearense e pernambucano – e poderia citar aqui também os casos do Espírito Santo, de Sobral ou da cooperação intermunicipal da região da Chapada, na Bahia – se devem fortemente à capacidade de criar continuidade de ações, à construção de uma sustentabilidade intertemporal da política educacional. Na verdade, não faltam no Brasil mudanças abruptas em governos locais ou no plano federal, até com medidas corretas para a melhoria do ensino, que foram descontinuadas com a passagem do tempo. Olavo ensina que o mais importante é descobrir como produzir uma longa, coerente e sempre incompleta reforma, capaz de se aperfeiçoar continuamente.
De forma mais sutil, a leitura do livro desmonta outro mito (o sexto): o de que existe uma forma de gestão que possa ser usada como instrumento neutro em qualquer política pública. Gestão sempre é uma forma de gerenciar que se acopla à lógica de cada setor ou à forma de cada organização. Olavo faz uma leitura que não é tecnocrática da política educacional. A política é importante; o diálogo, o convencimento e o engajamento dos atores são essenciais; a governança adequada, utilizando os meios adaptados à dinâmica do mundo da educação, é imprescindível. Nesse sentido, as reformas que deram certo usaram a gestão a serviço dos objetivos e valores que guiam o ensino público.
Por fim, o mito mais incrustado no debate nacional é o de que não temos nada a aprender com a experiência brasileira, marcada por um desastre completo. Como sétima mitologia, talvez seja essa a mais daninha para os rumos da nossa política educacional. A análise acurada dos casos do Paic cearense e da escola de tempo integral pernambucana, mostrando suas ideias, trajetória e resultados bem-sucedidos, faz deste livro uma leitura fundamental porque nos livra da síndrome de vira-latas, para lembrar Nelson Rodrigues, que ainda predomina no Brasil. Tais modelos mostram que é possível reformar profundamente a educação mesmo quando as condições iniciais não são as mais favoráveis. Basta entender que a chave do sucesso está nos caminhos reformistas, que oferecem mais um quadro geral de ação do que uma receita de bolo.
Ao completar sua argumentação, Olavo anuncia que o próximo passo está em disseminar esses modelos reformistas de terceira geração pelo país afora, não só para os governos subnacionais, mas também para o MEC, que nos últimos anos entrou numa agenda completamente estranha aos efetivos problemas educacionais brasileiros. Algumas sementes que se inspiram nos casos cearense e pernambucano já começaram a se espalhar para outros estados, mas a caminhada ainda será longa para expandir e consolidar essa via bem-sucedida de mudança. A leitura e debate do presente livro podem ser uma alavanca poderosa nesse processo transformador da educação brasileira.
Autor: Olavo Nogueira Filho
Comentar