Invisíveis

"Uma mulher que precisa de cirurgia para tratar um câncer, mas foi rejeitada nos hospitais por não ter documentos. Outra que, à procura de sua certidão de nascimento, encontra a irmã de quem fora separada havia mais de vinte anos. Histórias assim emergem desta etnografia ao mesmo tempo avassaladora e delicada, que mergulha no cotidiano de exclusão de brasileiros indocumentados, ilegíveis pelo Estado, invisíveis em seu próprio país. O livro narra como a certidão de nascimento se torna um passo imprescindível no longo caminho da cidadania."

Em Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento, a jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia apresenta o resultado de sua tese de doutorado sobre as trajetórias de brasileiros adultos sem certidão de nascimento. Durante dois anos, a autora mergulhou no cotidiano de um serviço público e gratuito de emissão de certidões instalado num ônibus na Praça Onze, no Centro do Rio de Janeiro.

Confira um trecho da introdução da obra:

Toda sexta-feira, o ônibus azul e branco estacionado no pátio da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, na região da Praça Onze de Junho, Centro do Rio, sacoleja com o entra e sai de gente a partir das 9h. Do lado de fora, nunca menos de 50 pessoas, todas pobres ou muito pobres, quase todas negras, cercam o veículo, perguntam, sentam e levantam, perguntam de novo e esperam sem reclamar o tempo que for preciso. Adultos, velhos e crianças estão ali para conseguir o que, no Brasil, é oficialmente reconhecido como o primeiro documento da vida — a certidão de nascimento.
Resultado de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-registro de Nascimento e à Busca de Certidões (Sepec), o ônibus da Praça Onze é o coração de um trabalho realizado pelo TJRJ com a finalidade de reduzir o chamado sub-registro, a proporção de pessoas sem certidão de nascimento. É também o objeto deste livro, uma versão reduzida de minha tese de doutorado. Inspirada pela indagação de Peirano (2006) — de que serve um documento? —, analiso como o processo de obtenção da certidão de nascimento traz à tona concepções de direitos e cidadania expressadas pelas pessoas que procuram o serviço da Justiça Itinerante no Centro do Rio de Janeiro e problematizo de que forma, nesse processo, tais concepções vividas e relatadas por elas também se transformam.
A fim de valorizar a experiência e as vivências das pessoas sem documento, construí metodologicamente a pesquisa como uma etnografia, com observação participante no ônibus da Praça Onze. Também no livro, optei por destacar as histórias e as respostas dessas pessoas às minhas perguntas. Como um adulto vive sem documentos numa sociedade documentada? Como se vê sem documentos? Que papel atribui ao registro de nascimento?
“Quero o registro de nascimento para receber o Bolsa Família”, dizia um. “Quero o registro de nascimento para tirar a carteira de trabalho”, afirmava outro. “Quero dar entrada na aposentadoria”, esclarecia o terceiro. “Quero o registro para colocar meu filho na escola”, ressaltava o quarto. As respostas de quem chegava ao ônibus indicavam inicialmente que o registro de nascimento teria finalidade imediata, pois os entrevistados afirmavam que buscavam o documento para conseguir alguma coisa, muitas vezes outro documento (carteira de trabalho), acesso a políticas públicas e benefícios sociais (inclusão no Bolsa Família, aposentadoria) ou serviços (vaga em escola, atendimento médico).
Etnografar o adulto sem documento é mergulhar no que Das e Poole (2004) categorizam como “margens do Estado”, práticas, lugares e linguagens em espaços que parecem estar nos limites do funcionamento regulamentado do Estado-nação. O desafio trazido pela reflexão de Das e Poole, e que tento incorporar a esta pesquisa, é refletir sobre que relações se desenrolam nessas margens, tradicionalmente percebidas como áreas nas quais o Estado parece não estar presente — mas está, ainda que de modo não regular nem regulamentado. E perceber que margens do Estado também constituem o que chamamos Estado, pois o Estado também se faz nas margens (Das e Poole, 2004). Outra reflexão necessária é sobre como tais margens, muitas vezes entendidas como áreas nas quais o Estado foi inábil para impor sua ordem e como lugares onde haveria apenas exclusão e desordem, reorganizam continuamente suas práticas e experiências, numa construção que não é monolítica, mas sim processual e dinâmica. Nas margens do Estado, a observação etnográfica dessas práticas e vivências mostra que exclusão e desordem convivem com resistência e pluralidade.
A chegada das pessoas sem documento ao ônibus é um encontro, com agentes do Estado, de indivíduos que sempre viveram nas margens desse Estado. Quem não tem registro de nascimento não pode tirar nenhum outro documento, não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens em seu nome. Só consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas exigem documentação para matricular crianças. Durante a pesquisa de campo, pude observar uma dupla operação: (1) a reconstituição, pelas pessoas atendidas no ônibus da Praça Onze, de suas existências nas margens do Estado e (2) o encontro dessas pessoas com agentes do Estado e, mais do que isso, com a ideia que elas construíram de Estado, aqui representado pela Justiça Itinerante.
A observação cotidiana do atendimento no ônibus foi me indicando que o registro de nascimento tinha finalidade imediata, mas não apenas isso. Os relatos permitiram inferir que, no processo de obtenção do documento, muitas das pessoas atendidas buscavam reconstruir a própria história e recuperar laços familiares, no processo que Schritzmeyer (2015) nomeia como recuperação dos “fios de suas vidas”. Elaborei então a hipótese de que, na busca pela documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de nascimento” se junta a outra, que remete a outra busca, agora por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história familiar. A busca pelo registro de nascimento, com os direitos que ele garante, é parte de um processo maior de construção da própria identidade.

Documentação, controle e cidadania

O Estado-sistema, tal como definido por Abrams (2006), tem entre suas práticas fundamentais a identificação de pessoas, e registrar os indivíduos foi uma atividade constitutiva da formação dos Estados nacionais (Bourdieu, 2011). A prática hoje corriqueira de registrar e contar pessoas sofreu diversas transformações ao longo do tempo. Nas sociedades antigas, segundo DaMatta (2002), os censos populacionais e de animais domésticos serviam como instrumento de cobrança de impostos, de controle da produção, dos movimentos da população e da identificação de pessoas potencialmente perigosas. Brasileiro (2008) relata que, pelo menos dois séculos antes de Cristo, havia um sistema de registro civil na China, e os antigos incas tinham um método de anotações de nascimentos e óbitos.
A Igreja Católica também tinha o hábito de manter registros eclesiásticos sobre batizados de seus fiéis, passando posteriormente a fazer o mesmo quanto a casamentos e óbitos (Makrakis, 2000). No século XVI, o Concílio de Trento tornou obrigatória a prática já corrente na Igreja Católica de fazer e conservar registros paroquiais com dados sobre batismos, nascimentos e casamentos (Almeida, 1966). Álvaro Júdice (1927), oficial do registro civil de Portugal, historia como, em paralelo aos registros eclesiásticos, o registro civil laico vai sendo introduzido lentamente, extinguindo-se o caráter eminentemente religioso e consolidando-se a figura do escrivão, responsável pelos registros e assentos.
A Revolução Francesa é listada por variados autores como marco no aprofundamento da necessidade de inventariar as populações e seus movimentos (Foucault, 2015; DaMatta, 2002; Makrakis, 2000; Júdice, 1927). Foucault (2015) auxilia a compreender tanto o sentido da vigilância do poder público, na qual o documento é peça-chave, quanto o poder disseminado nas relações cotidianas. A partir do diálogo com Foucault, é possível entender o registro de nascimento como um mecanismo de controle, que possibilita a realização de estatísticas, o planejamento de ações de políticas públicas e a maior vigilância das populações. Documentos, censos, estatísticas, registros são práticas do Estado-sistema que tornam as pessoas legíveis e localizáveis dentro de determinado grupo populacional. O registro passa a ser entendido pelo Estado como ferramenta para o monitoramento contínuo das populações. DaMatta (2002:51) explicita o papel dos documentos, em qualquer lugar do mundo, como forma de controle do Estado nacional sobre os cidadãos diante da “necessidade de inventariar os recursos humanos disponíveis na sociedade, pela contagem e classificação de seus habitantes”.
Sem refutar a dimensão de controle levantada por Foucault, Peirano (2006), Santos (1979) e DaMatta (2002) desenvolvem a noção da documentação como garantidora de direitos. Santos (1979) analisa como, no Brasil, a cidadania foi historicamente regulada pelo Estado e como outro documento, a carteira de trabalho, se tornou, a partir de 1930, passaporte para o mundo dos direitos.
DaMatta (2002) afirma que o sistema de documentação brasileiro é todo encadeado, e para se obter um documento é sempre exigido um anterior. Cita como documento fundador o registro de nascimento, que origina a certidão de nascimento. Carvalho (2001, 2008) cunha a ideia de “estadania”, entendida como uma relação clientelista do cidadão com o Estado, ou uma cidadania construída de cima para baixo, com fortíssima presença do Estado e sem a consequente garantia de direitos de todos. Em Cidadania insurgente, estudo etnográfico e político ambientado em bairros populares de São Paulo, Holston (2013) recupera o conceito de “cidadania regulada” de Santos (1979) e traz outro, que muito ajuda a analisar a condição dos sem-documento. Para Holston (2013:258), a partir de dois pilares — a incorporação da cidadania pelo Estado e a distribuição de direitos para os que são considerados cidadãos — o Brasil construiu historicamente um tipo peculiar de cidadania, que o autor define como “cidadania diferenciada”: “uma cidadania que desde o início foi universalmente includente na afiliação e maciçamente desigual na distribuição de seus direitos”. Em outras palavras, a cidadania brasileira, tecnicamente, é universal e oferece direitos a toda a população, mas é de fato desigual na distribuição desses direitos.
O diálogo dessa investigação com a obra de Holston ocorre a partir do conceito de cidadania diferenciada, ideia que salta aos olhos na pesquisa sobre os sem-documento. Tecnicamente, nada nunca lhes foi negado, já que o registro de nascimento é um direito garantido em lei e gratuito a qualquer cidadão. Na prática, observo como, para uma parcela da sociedade brasileira, o processo de cidadania diferenciada se reflete na ausência de vários direitos — e como, no processo de busca pela regularização daquele direito, ressurgem os conceitos de cidadania universal e do documento como direito de todos, permitindo discutir as implicações de sua ausência e os motivos para obtê-lo.
Documentos ainda hoje são a chave para o acesso a políticas públicas e projetos sociais no Brasil. Peirano (1986, 2006) também discorre sobre a ausência de documentos e afirma que o contraponto à exigência de documentação é a punição de quem não a possui. DaMatta (2002) analisa o receio difuso dos brasileiros de serem interpelados sem que estejam de posse de seus documentos — rotina com a qual os invisíveis, tema deste projeto, convivem; Peirano (2006) destaca o temor do brasileiro de perder documentos, lembrando casos em que ladrões devolvem os documentos de pessoas assaltadas, tal a importância dos papéis como chae de acesso para obtenção de direitos.

 

Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento

Fernanda da Escóssia

Este conteúdo foi postado em 20/10/2021 - 11:45 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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