A Lava Jato na América Latina

No momento em que este livro é lançado em português pela FGV Editora em parceria com a Escola de Relações Públicas e Internacionais (SIPA) da Universidade de Columbia e o Columbia Global Centers do Rio de Janeiro, a estrutura institucional da Lava Jato no Brasil está perdendo o impulso, com a extinção deste modelo de força-tarefa por determinação da Procuradoria-Geral da República (PGR).

Em 'Corrupção e o escândalo da Lava Jato na América Latina', a maior investigação contra a corrupção no mundo, a Lava Jato, é analisada sob diferentes perspectivas. O tempo presente parece apropriado para dar um passo atrás e avaliar o real significado de tudo o que aconteceu. Cada um dos 15 capítulos escritos por 19 autores brasileiros e de outros países é uma análise distanciada dos acalorados debates políticos e inclui ainda entrevistas com alguns de seus principais atores, como Sergio Moro, Deltan Dallagnol e Glenn Greenwald.

 

Confira o Prefácio da edição brasileira:

"É um prazer apresentar aos leitores brasileiros este brilhante conjunto de artigos sobre as múltiplas dimensões do escândalo de corrupção da Lava Jato — seu contexto histórico, sua complexidade jurídica e política e seu legado incerto para o futuro da democracia no Brasil. Organizado de forma talentosa por Fernanda Odilla e dois dos meus colegas da Universidade Columbia, os professores Paul Lagunes e Jan Svejnar, este livro consiste em 15 capítulos de 19 autores advindos do próprio Brasil e de outros países. É a melhor análise contemporânea da Lava Jato disponível na língua inglesa hoje e, por isso, é com particular orgulho que o Columbia Global Center no Rio agora o disponibiliza para um público mais amplo no Brasil.
O livro é um testemunho do valor de trabalhos acadêmicos que lidam com as questões públicas mais urgentes de nosso tempo. Cada capítulo é uma análise que conta com evidências como base e distanciamento acadêmico dos acalorados debates políticos do momento. Ao mesmo tempo, os autores dos capítulos estão plenamente engajados com o mundo em que tais debates acontecem, cientes de que a corrupção revelada pelo escândalo da Lava Jato é uma das duras realidades dos nossos tempos no Brasil (e na América Latina) que exige uma análise mais cuidadosa e equilibrada. É isso que o volume oferece para nossa consideração.
Para ser claro, este é um livro que também exige dos leitores. Cada capítulo é escrito em linguagem clara e acessível. Somos desafiados a deixar de lado nossas inclinações políticas para olhar novamente para este doloroso episódio chamado Lava Jato. Os capítulos deste livro consideram a questão da corrupção de uma forma que vai muito além de uma exegese de procedimentos criminais e minúcias da aplicação da lei. É um chamado à luta, para que cidadãos preocupados exijam transparência e responsabilidade daqueles que nos governam com propósitos corruptos. Se não for controlada, a corrupção gera cinismo em relação a políticos e à política. Se todos eles são corruptos, o que importa quem é eleito para cargos públicos? Se os cidadãos são essencialmente impotentes para fazer qualquer coisa contra a corrupção, por que se preocupar em monitorar o que o governo está fazendo na escuridão?
No momento em que este livro é lançado em português, a estrutura institucional da Lava Jato no Brasil está perdendo força. O modelo de força-tarefa para a Lava Jato foi extinto por determinação da Procuradoria-Geral da República (PGR). As personalidades jurídicas mais conhecidas desde os primeiros dias em Curitiba, o juiz Sergio Moro e o promotor-chefe Deltan Dallagnol, deixaram a investigação. O tempo presente parece apropriado para dar um passo atrás e avaliar o real significado de tudo o que aconteceu. O livro contribui para o nosso entendimento ao separar as dimensões políticas do escândalo que abalou o Brasil das menos aparentes, porém mais importantes, “lições aprendidas” da Lava Jato sobre o combate à corrupção. Vamos considerar cada uma delas separadamente.
Polarização política e a Lava Jato
Sobre os aspectos políticos, o livro traça um quadro de clivagem profunda e talvez duradoura da sociedade brasileira. O Brasil foi dividido em campos de guerra, cada um com interpretações radicalmente diferentes do que era o escândalo da Lava Jato.
Para muitos da direita no Brasil, a Lava Jato é uma pura história de bem contra o mal, de promotores e juízes corajosos que usam instrumentos legais inovadores para exigir a responsabilização e, pela primeira vez na história do Brasil, impor duras penas de prisão a políticos e executivos corruptos. Evitando esforços repetidos para limitar ou encerrar totalmente as investigações, os promotores em Curitiba ofereceram quase 500 denúncias enquanto a Lava Jato contabilizava 73 fases ao longo de seis anos. Muitos brasileiros se maravilharam ao ver políticos que já foram todo-poderosos, como Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados, e poderosos líderes empresariais, como Marcelo Odebrecht, cumprindo pena na prisão.
Acima de tudo, para a direita política, a Lava Jato revelou o Partido dos Trabalhadores (PT) como uma organização criminosa corrupta com tentáculos espalhados pelos cofres públicos, a começar pela Petrobras, mas se estendendo por outras áreas de governo. O ponto alto dessa versão dos acontecimentos foi a queda dos dois líderes mais proeminentes do PT. O impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 foi um destes momentos, embora as acusações contra ela fossem de natureza obscura e administrativa. A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em abril de 2018, poucos meses antes de uma eleição presidencial em que era o principal candidato nas pesquisas de opinião, foi a outra.
A esquerda no Brasil vê esses mesmos eventos sob uma luz radicalmente diferente e, portanto, temos o profundo abismo que existe na sociedade brasileira hoje. A esquerda sempre pode estar convencida de que todo o processo Lava Jato foi muito além de sua investigação inicial (e bem-vinda) de corrupção grave na estatal de petróleo. A investigação tornou-se uma forma de manipular a lei para lograr fins políticos (em inglês, lawfare), nada menos do que uma vingança, primeiro, para retirar o PT do poder e, segundo, para impedir o partido de retornar ao poder, eliminando as perspectivas eleitorais de Lula e manipulando uma mídia complacente para manchar a imagem pública do PT.
Os desdobramentos subsequentes, registrados após a prisão de Lula em 2018, pareceram fortalecer esta versão dos eventos que considera os próprios guardiões da lei e responsáveis pela fiscalização e controle agindo em busca de propósitos políticos corruptos. As revelações da “Vaza Jato” indicam uma cooperação antiética entre os promotores e uma perda de imparcialidade judicial. Mais seriamente, os investigadores da Lava Jato pavimentaram o caminho para a eleição em 2018 de Jair Bolsonaro, inaugurando uma agenda nacionalista e populista que, em suas raízes, é profundamente antidemocrática. Como que para enfatizar a perturbadora travessia de fronteiras, o juiz Moro aceitou um cargo no primeiro escalão do novo governo, agregando prestígio e legitimidade ao governo Bolsonaro e a sua agenda. O fato de Moro ter renunciado em 2020 em protesto contra a fraca postura de Bolsonaro em relação às medidas anticorrupção e à reforma criminal fez pouco para colocar a polarização da era Lava Jato sob uma luz mais branda.

Dimensões institucionais
Este livro nos desafia a responder as principais questões institucionais sobre a Lava Jato. Era tudo uma questão de política, suscetível de esvanecer com o passar do tempo, tanto quanto o escândalo do Mensalão no início dos anos 2000 parece ter se dissipado da memória pública? Ou a Lava Jato, por toda a polêmica política que gerou, também contribuiu para os movimentos anticorrupção no Brasil e na América Latina?
Nesse sentido, vários capítulos deste livro oferecem algum otimismo. O escândalo Lava Jato jogou luz na máquina anticorrupção do governo federal, que vai muito além da base da investigação em Curitiba. Um grande número de agências federais brasileiras trabalhou de uma maneira coordenada de forma que, realmente, não tem precedentes recentes. Entre eles, a Polícia Federal, a Advocacia-Geral da União (AGU), a Controladoria-Geral da União (CGU), o Ministério Público Federal, o Tribunal de Contas da União (TCU), bem como o sistema judiciário da primeira instância federal até o Supremo Tribunal Federal (STF). Pode-se ter esperança de que a experiência da Lava Jato fortalecerá esse tipo de aprendizado entre instituições e o compartilhamento de informações no futuro, conforme novas investigações contra casos de corrupção se desdobram.
A Lava Jato também chamou a atenção para uma série de mudanças nos processos penais no Brasil e inovações nos instrumentos legais, mas só o tempo dirá quão permanentes serão. Os procedimentos judiciais resultaram no cumprimento de significativas penas de prisão para políticos e líderes empresariais que não conseguiram reverter as decisões iniciais com recursos na segunda instância do Judiciário. Essa mudança, depois revertida pelo STF, deve-se dizer, pôs fim à tradição latino-americana de autoridades e empresários corruptos escaparem de duras sentenças por meio de intermináveis recursos. Por um tempo, essa inovação pareceu desafiar a noção de que no Brasil apenas os pobres vão para a cadeia.
O instrumento legal mais inovador a evoluir a partir do escândalo é o uso pesado de negociação de pena (“delação premiada”) para extrair informações incriminatórias de cúmplices sobre o envolvimento criminoso de funcionários de alto escalão, políticos e líderes empresariais. Esse procedimento é naturalmente controverso pois cria incentivos para falsas acusações e campanhas de difamação à medida que indivíduos de escalões inferiores procuram desesperadamente evitar a prisão. O tempo dirá se as salvaguardas estabelecidas no sistema de justiça brasileiro para proteger os direitos dos acusados realmente funcionam como desejado. Algum ceticismo nesse ponto certamente é válido, já que acordos de barganha não comprovados geram danos à reputação do acusado.
Por fim, o escândalo da Lava Jato ocorrido nos tribunais representou um grande avanço, se comparado a práticas anteriores, em termos de transparência e abertura. Câmeras filmaram depoimentos que foram prontamente informados à imprensa e amplamente divulgados na grande mídia. Os próprios tribunais aceleraram esse processo de divulgação pública por meio também de vazamentos de materiais seletivos. É provavelmente justo dizer que as deliberações judiciais ocorreram em público no Brasil de uma forma muito mais aberta do que em qualquer procedimento desse nível já conduzido antes.

Lições para a sociedade civil
Pode-se encarar este conjunto de artigos como um apelo à ação da sociedade civil. Na verdade, as próprias origens da investigação Lava Jato vieram da sociedade civil. Em uma visão geral magistral, por exemplo, Albert Fishlow explica como o crescimento econômico lento, a crescente demanda por melhores serviços sociais, as queixas da elite e os erros na política econômica criaram na sociedade civil um clima favorável à análise severa dos funcionários públicos corruptos.
A lição para a sociedade civil é evitar a conclusão prematura de que a Lava Jato realmente virou uma página. Márcia R. G. Sanzovo e Karla Y. Ganley lembram que a Lava Jato foi apenas um episódio de um longo processo de combate à corrupção. Suas análises das evidências dos Jogos Olímpicos do Rio em 2016 mostram que a corrupção e o suborno continuarão a ocorrer onde quer que governos e empresas possam manter o processo de compras públicas fora dos holofotes. Desdobramentos mais recentes no Brasil em 2020 incluem casos verdadeiramente horríveis de corrupção descarada e cinismo oficial em licitações públicas relacionadas com o estado de calamidade na saúde causado pela Covid-19.
Uma imprensa livre deve ser parte fundamental de uma sociedade civil saudável. Seu papel no escândalo da Lava Jato é debatido neste livro a partir de vários pontos de vista. Daniella Campello e suas coautoras encontram evidências de um viés antiesquerdista na cobertura da mídia, que demonizou um partido político inteiro. A entrevista de Paul Lagunes e Karla Y. Ganley com o jornalista Glenn Greenwald aumenta nosso entendimento do papel e da importância de uma imprensa livre, mesmo quando Greenwald critica a manipulação da mídia pelos promotores. Mas o papel da imprensa na Lava Jato pode e deve ser analisado de forma mais ampla. Beatriz Bulla e Cortney Newell fazem exatamente isso ao fornecer evidências que contestam o viés sistêmico da mídia na cobertura de Lava Jato. Em vez disso, elas chamam a  atenção para o trabalho rápido de jornalistas profissionais dedicados à simples proposição de que “a luz do sol é o melhor desinfetante”.
Deixo para o leitor descobrir as muitas outras lições para a sociedade civil no Brasil contidas nos capítulos deste volume único. Inspirando-nos no excelente texto de Susan Rose-Ackerman e Raquel de Mattos Pimenta, podemos concordar que o combate à corrupção é muito mais do que uma questão de aplicação da lei. No caso do Brasil, uma vasta agenda de reformas políticas aguarda o apoio popular e a aprovação legislativa. Os legisladores no Brasil devem se aproximar de seus eleitores. O número de partidos políticos é muito grande, criando um ambiente propício para o tráfico de influência. A falta de transparência em tantas esferas de governo cria um terreno fértil para subornos e corrupção. O financiamento das campanhas precisa ser reformulado para conter a influência do dinheiro na política. A lista continua. A questão é que em qualquer democracia tudo depende da determinação dos cidadãos em exigir reformas.
O escândalo Lava Jato será lembrado e analisado por muito tempo. Quando, em algum momento no futuro, chegar a hora de avaliar as contribuições dos estudiosos para o nosso entendimento, este livro assumirá seu lugar como um dos melhores esforços iniciais para iluminar as questões mais importantes.
É um grande privilégio apresentar esta obra aos leitores brasileiros."

Thomas J. Trebat
Columbia Global Centers | Rio de Janeiro
22 de novembro de 2020

 

Corrupção e o escândalo da Lava Jato na América Latina

Organizadores: Paul Lagunes, Fernanda Odilla, Jan Svejnar

Este conteúdo foi postado em 19/07/2021 - 11:20 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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