O Bolsa Família

Dez anos após o início do Bolsa Família, quando este livro foi publicado, 13 milhões de famílias foram beneficiadas, ou seja, em torno de 1/4 da população. Sua capacidade progressiva na redistribuição dos recursos, revertendo um quadro que vínhamos pintando há décadas, traz consigo algo de transformador em um sistema com um caráter notadamenteconhecido por sua regressividade. Os números evidenciam que a política teve forte impacto na redução da desigualdade recente.

Confira um trecho do livro da Coleçao FGV de Bolso, O Bolsa Família e a social-democracia, de Débora Thomé.

No início dos anos 1990, uma nova geração de políticas sociaiscomeçou a ganhar espaço na América Latina: os Programas de Transferências Condicionadas (PTCs). Esses programas focalizados de combate à pobreza foram muito mais comuns na América Latina do que em outras regiões (Haggard e Kaufman, 2008). Eles têm por característica fundamental se tratar de uma política não apenas condicionada, mas também focalizada, não universal em seu sentido mais puro.
Em termos gerais, os Programas de Transferência Condicionada podem ser definidos como aqueles que consistem em transferência de recursos financeiros a famílias abaixo de uma determinada linha de pobreza, as quais devem se comprometer a cumprir certas obrigações: há a exigência de contrapartidas tais como presença na escola e vacinação (no caso brasileiro). A combinação de auxílio monetário com exigências educativas e de saúde permitiria, ao menos em tese, atuar em duas frentes: no curto prazo, o alívio da pobreza; e, a longo prazo, com o desenvolvimento do capital humano, como uma forma de superar o mecanismo de reprodução intergeracional da pobreza. Esses programas se baseiam na premissa de que os mais pobres não têm oportunidades suficientes e estão mais expostos aos riscos. O que, no fim das contas, acaba significando grandes perdas de capital humano (Machinea, Titelman e Uthoff, 2006). Na região, a exigência de presença mínima na escola é recorrente, variando entre 80% e 90%, e há também cobranças quanto ao atendimento de saúde.
O que ocorre nesse momento é uma mudança substancial no caráter das políticas sociais. Se antes os governos optavam por políticas ativas e passivas diretamente relacionadas ao mercado de trabalho ou programas para crianças, com elegibilidade bastante ampliada, os mesmos foram substituídos, em larga escala, por complementos de renda para famílias pobres; ou transferência em produto (como era o caso do brasileiro Fome Zero).
Nos anos 1990, diante das mudanças, em maior ou menor profundidade, no sistema de pensões e no de saúde, visando a melhorar as condições fiscais a longo prazo, os programas focalizados eram uma interessante compensação: além de mais baratos, eram, muitas vezes, financiados por organismos internacionais.

O gráfico – com dados de 2008 – evidencia o custo reduzido dos PTCs quando comparados não apenas com a parcela do PIB, mas também dentro do gasto social total. No Brasil, equivale a 0,41% do PIB (Frischtak, 2012).
Essas políticas foram – e ainda são – amplamente apoiadas pelos organismos e bancos de fomento internacionais, tais como o Banco Mundial e instituições ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU). O que se propalava era que teriam maior eficiência por serem focalizadas, seriam mais interessantes em um contexto de recursos escassos e tinham o componente clientelista reduzido por serem centralizadas na federação.
Dados tantos incentivos, acabaram se tornando uma política social constante nas agendas dos mais variados países, apropriadas por partidos de diferentes posições ideológicas, inclusive sendo um modelo exportado para outras regiões.
Ocorre, mais que isso, uma homogeneização dos desenhos das políticas, de tal modo que os programas se assemelhavam até mesmo na quantia do benefício em países tão distintos como os do Cone Sul ou os do Caribe. Draibe (2009) chama a atenção para o fato de os Programas de Transferência de Renda Condicionada terem encontrado espaço nos mais diferentes países da região, com variados históricos de programas de proteção social. No fim dos anos 2000, alcançavam 22 milhões de famílias em 17 países latino-americanos. Nos casos de Equador e Brasil, por exemplo, mais de um quarto da população recebe o benefício. Especificamente no Brasil, em 2013, eram 13,8 milhões de famílias, ou cerca de 50 milhões de pessoas.

Outro aspecto digno de destaque é que se desenvolveram tanto em países como Brasil e Chile, que têm alguma tradição de políticas de bem-estar, quanto em países caribenhos, ainda com precárias formas de proteção social. Um dos motivos apontados pela autora para a propagação e a manutenção do modelo está no fato de esses programas apresentarem boa resposta eleitoral, “o que leva governo e oposição a não apenas disputarem seu crédito, como prometerem sua perenidade” (Draibe, 2009).
Muitos dos programas de combate à pobreza na região surgiram como resposta às enormes oscilações da economia, incluindo as crises graves, nos anos 1980. Ainda que, em sua origem, algumas dessas políticas de proteção social fossem temporárias, elas acabaram se tornando permanentes, devido aos efeitos prolongados das crises, incluindo aí o aumento do desemprego, da desigualdade e da pobreza.
Documento da Cepal (Machinea, Titelman e Uthoff, 2006) destaca como um ponto positivo a síntese que esses programas fazem de elementos inovadores, quando comparados às políticas pregressas na região. Entre as características estão o fato de se tratar de transferências monetárias que vão diretamente às famílias, reduzindo, em diversos exemplos, a intervenção por parte dos políticos locais; a condicionalidade e a questão da intersetorialidade. Entre as principais inovações também está a responsabilidade compartida. Ao desenvolver um programa de transferência, a família passa a ser responsável por suas próprias opções de proteção ao risco.
O formato costuma ser destacado uma vez que, na maioria dos casos, ao transferir o benefício diretamente à mulher, considera-se que ocorre o incremento de seu poder de decisão no processo. A família aparece sempre como unidade básica da concessão do benefício, principalmente concentrada nas mulheres, que, além das funções de destinatárias e administradoras do recurso, também participam, em muitos casos, das decisões locais quanto a tais políticas públicas.
As condicionalidades impostas às famílias nos programas sociais implementados na América Latina não variam muito.
Na educação, há a exigência da presença escolar mínima das crianças, que varia entre 80% e 90%. Quanto a saúde e nutrição, a transferência está condicionada a consultas aos postos de saúde para que possam receber vacinas ou, no caso das mães, para exames pré-natal.
Muitos desses programas contam com recursos vastos e aplicam critérios de elegibilidade relativamente claros, o que acaba significando uma cobertura ampla, diferenciando-os de programas anteriores, que estavam mais sujeitos a processos não muito claros de seleção e se concentravam em regiões mais restritas.
Os programas de transferência aos lares pobres têm efeitos mais imediatos, pois permitem a parcelas importantes da população melhorar seu bem-estar e aumentar a renda e o consumo, o que facilita a superação da situação de pobreza e indigência a curto prazo. O fato de terem a capacidade de solucionar as necessidades imediatas faz com que tais políticas sejam bastante atraentes aos grupos extremamente carentes (Coutinho e Santanna, 2008).
Segundo a dupla de autores, as políticas focalizadas respondem não apenas a esse aspecto, mas também estavam de acordo com o contexto eleitoral. Setores excluídos passaram a ter papéis mais ativos para além do voto, nas negociações de grupos organizados.
As avaliações dos programas de transferência na América Latina indicam que são positivos, a curto e a médio prazos, os efeitos na educação (taxas de matrícula, frequência escolar, aprovação e aumento da escolaridade). Também se pôde constatar a redução do trabalho infantil, bem como efeitos positivos nos serviços de saúde de prevenção e aspectos nutricionais.
Na maioria dos programas de transferência, foi constatado o aumento da renda familiar, mesmo que, em alguns casos, não tenha sido suficiente para reduzir de forma contumaz os índices de pobreza. A focalização também está bem-sucedida: mesmo precisando ser mais concentrada no grupo de menor renda, a maioria dos beneficiados pertence aos dois quintis mais pobres da população de cada país analisado.
Além disso, de acordo com Frischtak (2012), “A elevada diferença de gastos per capita e o foco exclusivo nos mais pobres garantem que sob qualquer métrica a eficácia das transferências do programa Bolsa Família é possivelmente superior às demais”.

O Bolsa Família e a social-democracia

Este conteúdo foi postado em 28/03/2019 - 13:41 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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