A história da historiografia

Por que uma história da historiografia brasileira? Qual a importância desse tema para um público amplo, além dos especialistas da área?
O livro Uma introdução à história da historiografia brasileira (1870-1970) traz uma proposta para a análise dos estudos históricos no Brasil. Da relação da produção historiográfica brasileira com o contexto internacional, os autores propõem uma periodização para seu estudo e uma conceituação, que inclui a relação da história com o ensino. Organizam também a produção historiográfica em dois momentos, que correspondem aos processos de modernização do país, destacando os autores que tiveram preocupação com a história da história.

Confira o sumário e, na sequência, a apresentação da obra de Thiago Lima Nicodemo, Pedro Afonso Cristovão dos Santos e Mateus Henrique de Faria Pereira.

CAPÍTULO 1: Mutações globais do conceito moderno de história e a historiografia brasileira 
“Historiografia” em escala transnacional 
O desafio de pensar a história da historiografia brasileira: recorte, critérios e problemas 
A produção de um cânone e questões para uma autonomia relativa e negociada para a história da historiografia 
CAPÍTULO 2: Figurações da historiografia na crise do Império e nos primeiros tempos republicanos 
Preâmbulo: sobre uma história científica 
O “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen” entre o passado e o futuro 
“Das entranhas do passado o segredo angustioso do presente”: Varnhagen segundo Capistrano 
Cronista, historiógrafo, historiador: modulações semânticas e usos discursivos do conceito de historiografia 
Capistrano de Abreu, documento histórico, evolução e síntese 
CAPÍTULO 3: A emergência do discurso sobre a universidade (1930-1950) 
Os sentidos da “profissão” nas letras: do modernismo ao pós-Segunda Guerra 
Necrológio de Capistrano? “O pensamento histórico no Brasil nos últimos 50 anos” 
Horizontes de um historiador profissional na década de 1950 
CAPÍTULO 4: Como se deve escrever e ensinar história do Brasil depois da universidade? Instituições, novos agentes e mercado editorial 
A emergência dos “estudos brasileiros”: circulação internacional no pós-Segunda Guerra 
Historiografia no Manual bibliográfico de estudos brasileiros 
Apontamentos sobre a Revista de História da USP 
Alguns dos primeiros manuais formadores e o desafio de ensinar teoria da história e historiografia brasileira 
De volta ao começo: como se deve escrever a história do Brasil no projeto História geral da civilização brasileira (1961-1972) 
CAPÍTULO 5: A “historiografia” e caminhos para a consolidação da profissão de historiador (anos 1960-1970) 
José Honório Rodrigues outra vez 
Amaral Lapa: historiografia no pós-1964 
A história da historiografia nos currículos universitários 
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Dilemas e encruzilhadas do século XXI 
 

O que parece indiscutível é que o pensamento histórico é uma evolução historicamente singular da experiência temporal [Luckamann, 2008:65].

O que propiciou a difusão e consolidação do conceito de historiografia sobre outras formas de se referir ao trabalho do historiador? A experiência brasileira nos sugere uma associação íntima entre historiografia e o estabelecimento dos cursos universitários de história no país. Historiografia seria, nessa linha, o conceito articulador das expectativas e desejos de uma história escrita nas/para as universidades: uma história científica? As representações do passado construídas fora dessas lógicas de poder e saber podem até ser história, mas seriam historiografia?
Essas experiências e expectativas e desejos foram expressos nos primeiros balanços e estudos que são considerados história da historiografia no/do Brasil, entre 1870 e 1970. Desde Capistrano de Abreu, escrevendo o necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, em 1878, e ultrapassando a análise da obra do visconde de Porto Seguro para chegar a um retrato do historiador ideal, até a produção do século XX, nas universidades e associações profissionais (Associação Nacional de História — Anpuh), procuramos analisar como os historiadores brasileiros definiram seu ofício, processo concomitante com sua historicização. Os textos de reflexão, os momentos em que os historiadores se dedicaram a pensar o passado de sua disciplina, seu tempo presente e suas necessidades e projetos para o futuro formam o cerne
de nossas fontes aqui.
A reflexão sobre o conceito moderno de história atravessa, entre as décadas de 1870 e 1970, as análises de muitos historiadores brasileiros. Em outras palavras, muito antes de a história dos conceitos de origem alemã fazer fama mundial, o tema, de forma direta ou indireta, era frequentado por aqueles que se dispunham a refletir sobre a história e/ou prática histórica. Não é casual, desse modo, que o texto “É a história uma ciência? Introdução à História da civilização de Bukle” de Pedro Lessa, publicado em 1900, tenha sido republicado pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1908, com o título “Reflexões sobre o conceito de história”. E, ainda, que em 1905 o primeiro parágrafo do prefácio de Rocha Pombo para seu livro História do Brasil, ilustrada chame-se: “A concepção moderna da história”.
O conjunto de textos e fontes analisados não poderia, por certo, deixar de demonstrar a grande importância de José Honório Rodrigues para a história da historiografia brasileira. Nossa própria pesquisa partiu de sua identificação do que chama de “pioneiros” dessa história da historiografia ou, em suas palavras, de uma história da história. No entanto, o corpus que discutimos no livro também nos permite relativizar a ideia de “grandes nomes” nessa história, apresentando um debate difuso e complexo: desde a historiografia da crise do Império (década de 1870) e início da República até os debates na Anpuh a respeito do lugar da incorporação da história da historiografia e da teoria da história nos currículos, no início da década de 1970, quando o sistema universitário brasileiro é reestruturado a partir da Reforma Universitária, de 1968.
Podemos até falar em certa autonomia adquirida pela história da historiografia a partir da década de 1970, quando aparecem obras monográficas dedicadas à análise da escrita da história, tais como as obras de José Roberto do Amaral Lapa, Maria Odila L. S. Dias, Nilo Odália, Maria de Lourdes Mônaco Janotti, Raquel Glezer, entre outros. No entanto, nossa argumentação pretende ir além de uma “formação” da história da historiografia brasileira, partindo do objeto dado no presente, nossa subdisciplina, e, assim como fizeram nossos antecessores, recriando uma tradição, em seus “momentos decisivos” e em suas principais figuras. O que se propõe aqui é deslocar e suplementar algumas dessas perspectivas ao optar por enfocar os problemas e as ambiguidades do conceito e da experiência moderna de história em suas interações entre a matriz europeia e sua fixação e apropriação no Brasil.
O que salta aos olhos é um forte impulso e responsabilidade de rearticular essas ferramentas com as demandas mais imediatas e mais agudas do presente. Foi exatamente isso que boa parte dos historiadores aqui analisados fizeram e é exatamente isso que esperamos deste texto. Afinal, a reflexão sobre a história nunca esteve apartada de uma dimensão pedagógica e cidadã. Fica evidente, na análise de muitos textos, essa preocupação, historiadores assumindo que era preciso repensar a história, tornando-a pertinente para as próximas gerações.
No primeiro capítulo, realizamos um esforço de pensar o conceito de historiografia em perspectiva transnacional. Com o auxílio da ferramenta Google NGram Viewer, sondamos a emergência do conceito (e/ou seus equivalentes) em alguns idiomas (inglês, espanhol, alemão, francês, entre outros), confrontando os achados com nossa pesquisa acerca do seu surgimento em português (idioma não contemplado na ferramenta do Google). A pesquisa nos permite refletir sobre a relação entre a emergência do conceito de historiografia e o período apontado por  Reinhardt Koselleck para o aparecimento do conceito moderno de história (1750-1850). Nossa pesquisa demonstra que adensamento global no uso do termo “historiografia” representou uma fase em que o conceito moderno de história ajuda a dar identidade para a cultura acadêmica universitária em história no século XX. O que procuramos mostrar é que o Brasil não é uma mera “periferia” desse processo; pelo contrário, demonstramos certa sincronicidade entre a cultura histórica especializada brasileira e as historiografias referentes aos países cujas línguas levamos em consideração. Pensar o lugar global da historiografia brasileira em finais do século XIX e início do século XX, considerando a diversidade linguística e as modulações do próprio conceito de história, se apresenta assim como a porta de entrada de um estudo que procura detalhar o processo de produção de uma cultura historiográfica especializada no século XX.
O segundo capítulo expõe o início de nosso estudo sobre os momentos em que essa historiografia se voltou para si mesma.
A partir de Capistrano de Abreu e o “Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen” (1878), examinamos os textos de reflexão historiográfica tanto enquanto análises da historicidade de seus objetos como enquanto projeções das expectativas de seus autores acerca do que acreditavam ser, propriamente, a escrita da história (ou, de uma história “científica”). No contexto do final do século XIX e primeiras décadas do século XX, examinamos as diferentes possibilidades de se definir o autor de estudos históricos (cronista, historiógrafo, historiador), e as disputas e debates difusos em torno dessas definições, bem como a busca por antecessores e marcos inaugurais.
O terceiro capítulo abre a reflexão sobre as mudanças trazidas pela universidade (como instituição e discurso) sobre a forma como os historiadores definiam seu ofício. Examinamos as perspectivas de atuação do historiador profissional a partir da década de 1930. É ponto pacífico que a universidade no Brasil seja um fenômeno tardio, não só porque os primeiros grandes centros surgem apenas na década de 1930, mas também porque o desenvolvimento de uma cultura historiográfica efetivamente ligada à universidade levou décadas para ocorrer. Por isso, o capítulo se propõe a investigar não exatamente como as condições concretas do conhecimento produzido na universidade apareceram na década de 1930, mas sim como alguns historiadores rotinizam o uso do conhecimento universitário e especializado como uma realidade linguística dotada de valor qualificativo e positivo. Complementando a análise, o quarto capítulo retoma a questão proposta em concurso do IHGB na década de 1840, “Como se deve escrever a história do Brasil?”, atualizando-a para o contexto pós-universidades. Procuramos trabalhar com alguns exemplos de história produzida no contexto da universidade atentando sobretudo para a dinâmica material e contingente: revistas, coleções, destinadas ao novo público (que em si também carregavam esse debate). Estudando o mercado editorial, acrescentamos a essa questão algumas ponderações sobre “para quem” e “sob que formatos” essa história seria escrita, e examinamos seus (autodeclarados) princípios ao estudarmos os primeiros manuais de escrita da história posteriores à articulação dos cursos superiores de história.
As mudanças no Brasil pós-1964 e a Reforma Universitária de 1968 aparecem no quinto capítulo, dedicado ao exame dos debates sobre como inserir história da historiografia e teoria e metodologia da história nos currículos universitários, a partir, especialmente, da organização dos historiadores em torno da Associação Nacional de História (Anpuh). Assistimos e interrogamos a construção da “evidência disciplinar” de uma história da historiografia, que vai se consolidar com maior vigor a partir dos anos 1980. Por isso, discutimos, nas “Considerações finais”, a historiografia no período da redemocratização, bem como lançamos problematizações sobre a produção das últimas décadas. Destarte, esperamos acompanhar, criticamente, os percursos do conceito de historiografia à luz de sua apropriação (pois é anterior a esta) pela cultura universitária, como selo de distinção de uma produção em história particularmente sua (isto é, das universidades). Mais além, vemos esse conceito em suas relações com os projetos e as vivências de uma modernidade brasileira, seu uso como forma de olhar o passado da disciplina à luz das questões que o presente do país permanentemente coloca a seus historiadores.
Para que este livro chegasse às mãos dos leitores, foi preciso que um evento existisse: o Seminário Brasileiro de História da Historiografia. Foi no espaço desse evento, até então só realizado em Mariana desde 2007, que os três autores se conheceram e entraram na aventura de um trabalho coletivo e colaborativo.
Pensar com o colega foi o maior desafio. Mas foi, também, uma postura ética e política de questionar o narcisismo que está articulado com a ideia de autoria. Os textos foram assim produzidos em camadas, de modo que a autoria individual foi se diluindo até que esse sentido  praticamente se dissipasse.
Desse modo, o projeto deste livro nasceu dos encontros realizados pelo Núcleo de História da Historiografia e Modernidade (Nehm-Ufop) desde 2007. Utilizamos como matéria-prima para o livro textos anteriores nossos (individuais e coletivos), bem como ideias inéditas, para tentar produzir uma reflexão, como já afirmamos, que tem como público-alvo o estudante de graduação em seus primeiros passos no “mundo” da história da historiografia. Em alguns capítulos, por essa preocupação didática, repetimos alguns argumentos e blibliografia para que os
mesmos possam também ser utilizados e lidos com certa autonomia.
Ainda assim, desejamos que todos possam ler todo o livro para compreender de forma global nossas teses centrais que estão articuladas no encadeamento entre os capítulos.

 

Confira alguns eventos de lançamentos da obra:

5/10/2018 | Livraria FGV - Rio de Janeiro 

 

Este conteúdo foi postado em 01/10/2018 - 10:52 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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