O problema moral

A Editora FGV lança a tradução do livro de Victor Delbos sobre a obra do filósofo Benedictus Spinoza, Le problème moral dans la philosophie de Spinoza et dans l’histoire du spinozisme. A tradução, feita a partir do original francês, publicado em Paris em 1893, inaugura o que viria posteriormente a ser denominado de “história estrutural da filosofia” e torna-se fundamental para aqueles que querem entender a filosofia de Spinoza a partir do próprio autor.

Em português, a obra intitulada O problema moral na filosofia de Spinoza e na história do spinozismo, traduzida por Martha de Aratanha, com revisão técnica de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, foi editada em celebração do centenário da morte de Delbos.

As relações que Spinoza estabeleceu entre sua filosofia geral e sua teoria da moralidade são tais que é necessário antes de tudo evitar destruí-las ou alterá-las. Deve-se tentar compreendê-las. Spinoza mostrou que não existe moral fora da verdade, e, por outro lado, que a verdade compreendida é por si mesma, sem adição exterior, toda a moral.

Confira uma parte da introdução:

"O grande interesse que suscitam atualmente os problemas da vida moral não pode deixar de estar relacionado, em parte, com as doutrinas que em outras épocas trataram deles ou tentaram resolvê-los. Sobretudo se essas doutrinas ultrapassaram ou o espírito de seu autor ou o espírito de seu tempo, sobretudo se elas foram capazes de sobreviver à forma original que as envolvia, e criar, na variedade de inteligências, formas novas e diversas, então nos parece que elas receberam desse contato com as consciências uma marca de humanidade; e elas conseguem nos interessar, talvez menos por serem teorias originais e vigorosas do que por terem tido esse dom da longevidade ou esse poder de ressurreição. Com certeza, não é de surpreender que nossa personalidade moral se ligue vigorosamente a tudo aquilo que, no sentido e no destino dos sistemas, a excite ou a emocione; mas alguns dizem que tal curiosidade é bem perigosa para a verdade histórica. Nós somos geralmente muito ávidos em exigir das diversas doutrinas a solução de problemas que elas não levantaram e que impomos a elas: somos rápidos em acomodar as ideias aos nossos desejos, e as consequências aos nossos preconceitos, favoráveis ou desfavoráveis. E quando se trata de problemas morais, a tentação é bem poderosa: é difícil esquecê-los, mesmo temporariamente; eles são o “pensamento subliminar”, que vem julgar tudo, que critica todos os pensamentos, os pensamentos hostis que com frequência ele imagina, os pensamentos indiferentes que quase sempre ele desvia. Existe aí uma tendência do espírito que, por ser muito forte, nem por isso é mais legítima; desconfiar disso é uma precaução necessária.
Estas observações gerais contêm, em primeiro lugar, uma verdade que nosso trabalho apenas confirma: a moral que por muito tempo atribuíram a Spinoza, portanto forçada, não tem nada em comum com a doutrina spinozista. Elas contêm, em seguida, uma espécie de crítica preventiva que foge, me parece, do objeto do nosso estudo. Não é de nossas preocupações atuais que a moral de Spinoza retira sua importância, ela foi a obra sobre a qual o próprio Spinoza quis melhorar sua vida; o sentido humano que ela tomou aos nossos olhos não lhe veio de fora, mas sim de dentro e nasceu no mais profundo âmago de uma alma; se ela apareceu como doutrina, essa é a prova de que ela foi julgada boa. Por outro lado, ela não tem, no conjunto das ideias spinozistas, um lugar onde a possamos arbitrariamente restringir ou aumentar; ela é, para Spinoza, toda a filosofia: tudo leva a ela, nada é fora dela.
Estamos, portanto, dispensados de colocar artificialmente em evidência um problema que, por si mesmo, está em primeiro plano, e sobretudo operar no sistema de Spinoza um trabalho desajeitado de discernimento e de separação.
Nenhuma doutrina se presta menos a uma triagem de ideias. Existe nela uma potência de organização que nossas distinções usuais não devem tentar dividir. O que estaríamos tentados a perguntar a Spinoza, partindo do termo comum “moral”, é precisamente o que ele nos recusa, ou seja, uma concepção fechada do dever que valha por si só e que se exprima em preceitos legais. Ao contrário, o que surge de seu pensamento é que existe, como que envolvido pela unidade absoluta que tudo abarca, uma unidade indivisível de todas as funções da vida espiritual; é que as abordagens da natureza em direção ao entendimento não têm necessidade de um motor externo, tendo nelas sua razão interna. O sistema é como a natureza que o justifica, e como o entendimento que o consagra: ele não admite que o problema moral venha de fora; ele o despoja sem piedade das formas vãs dadas pela consciência comum; ele coloca o problema moral em termos que lhe sejam expressamente adequados; de tal forma que o sistema, no seu desenvolvimento, é o problema em vias de se explicar, tendendo ele mesmo à sua solução.
Desconhecer essa identidade essencial entre o problema e o sistema seria abordar o estudo do spinozismo por um contrassenso. Trata-se de fazer um esforço não para quebrar a unidade natural da doutrina, mas para achá-la, ao contrário, engendrada e definida pela concepção moral à qual todo o resto se subordina. Não se trata de destacar um fragmento da obra, mas de reconstruir a obra, tanto quanto possível, no seu todo, segundo o pensamento mestre que a construiu. As relações que Spinoza estabeleceu entre sua filosofia geral e sua teoria da moralidade são tais que é necessário antes de tudo evitar destruí-las ou alterá-las. Devemos tentar compreendê-las.
Se é assim, admitiremos que o caráter deste trabalho deve seguir escrupulosamente a forma sistemática e mesmo a forma literal do spinozismo. Existiria a esse respeito alguma superstição? Seria verdade, considerando outras doutrinas parecidas, que perseguiremos fantasmas sem ter certeza de alcançar a viva realidade?
No livro consagrado a Spinoza,Frederick Pollock sustenta que em toda filosofia o sistema, como tal, responde simplesmente a uma necessidade de ordenamento artístico, ou, ainda, a uma tentação de imobilidade intelectual. Ele tem, para o filósofo que o compõe, apenas um valor acessório, o valor de um símbolo que o faz lembrar seu pensamento; mas simula nos discípulos que o reproduzem um valor absoluto, o valor do próprio pensamento: de discurso ativo e fecundo que era, se torna fórmula inerte e estéril. O espírito é retirado, permanece a letra morta. O que faz então a grandeza de uma filosofia é, segundo Pollock, o núcleo de ideias originais que ela contém: as ideias originais possuem uma força irresistível de difusão, e fazem explodir o envoltório estreito que o sistema lhes impõe.
Essas opiniões de Pollock são certamente sedutoras; elas parecem, além disso, confirmadas ao longo de toda a sua obra. Pollock, com efeito, se esforçou em decompor o spinozismo em suas ideias constitutivas. Retomando essas ideias em sua origem, ele quis marcar mais a significação intrínseca do que o encadeamento; ele até negou que elas pudessem se fundir em uma unidade verdadeiramente interna. Porém, não parece que o spinozismo esteja por inteiro nessa coleção de ideias justapostas. A obra de organização na qual o spinozismo se produziu está bem longe de ser estranha à sua essência. Se ela foi simplesmente uma obra de arte sem interesse intelectual, teria Spinoza a concebido tão vigorosamente e a perseguido tão pacientemente? Ao contrário, mais do que qualquer outra doutrina, o spinozismo teve de procurar uma forma adequada: destinada, na intenção de seu autor, a mostrar a veleidade de tantas opiniões fictícias e de teorias verbais, ele teve de trabalhar para criar a sua linguagem. Como o Deus que ele coloca na origem, e sem dúvida pelas mesmas razões, ele necessariamente se revelou sem sair de si mesmo; sua palavra é ainda sua natureza, com certeza natureza perecível, natureza naturada, mas não exterior, nem ilusória, já que ela exprime, à sua maneira, a ideia eterna que a fundamenta. Além disso, consideramos que, segundo o pensamento de Spinoza, a unidade substancial das coisas e a unidade inteligível da doutrina devem coincidir exatamente, não deve nem ter vazios na obra do filósofo nem na obra de Deus, que a razão filosófica deve participar da virtude da ação divina, ou seja, excluir do ser aquilo que ela não compreende: diríamos ainda que a unidade sintética do spinozismo se adiciona ou se impõe de fora aos elementos que ela domina. (...)"

 

O lançamento será dia 21/11/16, na Livraria FGV do Rio.

O problema moral na filosofia de Spinoza e na história do spinozismo

Este conteúdo foi postado em 11/11/2016 - 08:35 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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