Amaro da Maré

Nossa parceria com o Viva Rio e a Vila Olímpica da Maré deu origem ao livro de Regina Zappa sobre um dos persogens mais importantes da Maré, Seu Amaro.

O livro acompanha a vida deste líder comunitário que luta para levar cidadania a jovens excluídos, através do esporte e da educação. O reflexo de sua vida é também um pedaço da história do Brasil da maioria dos brasileiros.

Confira a apresentação da obra:

"Acompanho seu Amaro desde os inícios de 1996, quando nos conhecemos. O Viva Rio vinha de completar a campanha do Reage Rio!, que além de fazer uma baita mobilização contra uma onda covarde de sequestros, lançou o movimento no rumo das favelas. Na virada de 1995 para 1996, ficou claro que nosso destino seria criar raízes nas comunidades e batalhar pela integração da cidade de dentro para fora e de baixo para cima. Em seguida a Acari, com a Fábrica da Esperança, de Vigário Geral, com a Casa da Paz, e da Rocinha, com o Balcão de Direitos, de Santa Cruz com o Viva Antares, chegamos à Maré, respondendo a uma boa provocação. O Rio disputava sediar a Olimpíada de 2004 e a proposta da cidade colocava a Vila Olímpica na ilha do Fundão, justo em frente às comunidades da Maré. Bela oportunidade para o complexo marcar sua presença. O Comitê Olímpico Internacional viria ao Rio em junho de 1996 para conhecer melhor as propostas da cidade. Chegaria ao Galeão e seguiria para o Copacabana Palace, local de hospedagem e de reuniões. No caminho, logo no início, a comitiva desfilaria ao longo das 16 comunidades que compunham o Complexo da Maré. Bela oportunidade! Lideranças comunitárias locais convidaram o Viva Rio para conversar sobre o assunto. Entre eles, à frente da Federação de Associações de Moradores da Maré, destacava-se seu Amaro, pelo porte e pelo tirocínio.
As conversas juntaram um conjunto excitante de elementos: aproveitar a oportunidade, não deixar a comitiva passar batida; afirmar a adesão da favela à candidatura do Rio; criar uma agenda própria que ligasse a Olimpíada, que aconteceria logo ali, no outro lado do Canal do Cunha, a um legado social permanente no lado de cá — a vizinha e desafiadora Maré. A novidade das ideias e sua aderência ao movimento geral da cidade impressionavam a todos nós que éramos de fora, “brancos no samba”, como se diz. E o mestre da harmonia era
o seu Amaro. Com ele, as ideias começavam ou terminavam. A mente aberta é marca de sua personalidade. As ideias vingaram. A recepção festiva das comunidades ao longo da Linha Vermelha surpreendeu os visitantes, que concederam uma parada. A proposta de criação de uma Vila Olímpica da Maré foi devidamente negociada e planejada com a Secretaria de Habitação da prefeitura, em tempos de Conde e do secretário Sérgio Magalhães. Quando o COI chegou, tínhamos um projeto estruturado de aproveitamento socioesportivo de uma longa
faixa de terra que separava a Linha Vermelha do casario comunitário. O “legado social” começou a ser negociado em detalhes antes mesmo que a candidatura se confirmasse. No bojo da proposta, uma estrutura de gestão independente, composta de elementos internos e externos da comunidade com a chancela formal da prefeitura, segundo um plano arquitetônico desenhado pela Secretaria de Urbanismo e conversado em detalhadamente com as lideranças comunitárias. Não foi daquela vez que a Olimpíada veio para o Rio (foi para Atenas), mas a Vila Olímpica da Maré tornou-se uma realidade, sob a presidência de seu Amaro.
A aproximação foi rápida e intensa, como se pode imaginar. De nossa parte, junto com Betinho, um conselho de notáveis barra-pesada e lideranças comunitárias de outros bairros, inventávamos um movimento social de novo tipo. Propositivo, de peito aberto para os problemas, sem medo do perigo e um jeito colorido de ser, com gosto pelo bom humor e as belezas do lugar, o prazer que advém de ideias que florescem nas mesas de bares e biroscas — uma “ação da cidadania”, como se dizia, de estilo carioca, mescla de raiz, Chico e Caetano. O encaixe com o espírito de seu Amaro foi crescente.
Quanto mais nos conhecíamos, mais nos completávamos. Passados os membros do COI, ficamos com seu Amaro, que veio a compor o Conselho Diretor do Viva Rio. O conselho era um órgão complexo, com representantes de primeira linha de múltiplos segmentos — das mídias, da publicidade, do empresariado, dos sindicatos de trabalhadores, dos esportes, da cultura e das favelas também. Conselho grande, que se reunia informalmente a cada mês, para um almoço boca-livre e uma troca franca de ideias sobre o andar dos vários andores que pretendiam costurar a cidade partida, no dizer do Zuenir. Quando o assunto era favela ou violência, o conselho acostumou-se a ouvir o seu Amaro em primeiro lugar, pela sua postura e seu tirocínio.
Seu Amaro combina esses valores — da liderança que reúne a diversidade. Não era fácil ser presidente da Federação de Associações da Maré, palco de divergências de múltiplos calibres. Com efeito, a federação se desfez depois que seu Amaro dela se afastou para assumir a presidência da Vila Olímpica. Na vila, o desafio da mediação entre divergentes apresentou-se ainda com maior gravidade. Ela ladeia as comunidades da Maré e atravessa os territórios das facções rivais. No tempo, eram três que se batiam no território e que, no entanto, aprenderam a respeitar o espaço neutro da vila. Feito impensável, não fora o estilo a um tempo sonhador e pé no chão do seu presidente. Na moral, seu Amaro lograva convencer as forças adversas a colocarem um limite no ódio recíproco, de modo a preservar um espaço de liberdade para as crianças do lugar. A mediação não se limitava à letra de um tratado. Era fluida e informal, como os conflitos das facções nas favelas do Rio. Cuidado constante, conversas a qualquer hora, até mesmo na madrugada, sempre na moral, com a abertura de uma oração.
Os limites foram, certa vez, rompidos por abuso de um comando local. Seu Amaro fechou a vila e seus trabalhos, e resistiu à imposição. O prefeito reconheceu a pertinência de sua decisão e confirmou o fechamento temporário da vila. Alguns meses se passaram, e a ordem veio, por fim, de Bangu, que o tal comando local estava errado, deveria retirar suas imposições e pedir desculpas. Foi assim que, na moral, seu Amaro preservou a autonomia da vila diante dos poderes armados ao redor.
Assim também agiu com o comando policial, que por vezes tentava entrar sem cerimônia no espaço da vila, talvez em perseguição de algum malfeitor. Seu Amaro foi ao Comando do Batalhão explicar a neutralidade da vila, que para fazer sentido deveria manter-se à margem dos conflitos armados que permeiam o cotidiano da Maré. A vila seria um espaço livre de armas. O Comando do 22o BPM ouviu e concordou, por bem incrível que isso pareça.
Seu Amaro é patrimônio nosso, da Maré e da cidade do Rio de Janeiro. Seu livro é uma joia para se guardar.
Rubem César Fernandes | Rio, 31 de janeiro de 2016"

 

Amaro da Maré

R$38

Este conteúdo foi postado em 06/06/2016 - 12:10 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

Comentar