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  • Postado por editora em em 26/07/2022 - 10:02

    O livro Império em disputa: coroa, oligarquia e povo na formação do Estado brasileiro (1823-1870), escrito pelos historiadores Thiago Krause e Rodrigo Goyena Soares e publicado pela FGV Editora, tem início com a fundação do Império do Brasil e apresenta uma nova síntese historiográfica sobre este período, voltada tanto aos especialistas como ao público leitor mais amplo.

    Este segundo volume da coleção ‘Uma outra história do Brasil’ aborda período pós Independência.

    Confira a seguir o prefácio do historiador e professor da USP, Rafael de Bivar Marquese:

    Este volume, parte da coleção “Uma outra história do Brasil”, da FGV editora, traz uma grande contribuição para a história do Brasil Império. Ele reúne dois jovens historiadores, com trajetórias acadêmicas distintas no que refere aos temas prévios de estudo e às escolas historiográficas em que se formaram, mas cujas respectivas preocupações convergem de maneira clara.
    A excelência da pesquisa de base, uma escrita da história teoricamente informada e o cuidado permanente em articular perspectivas analíticas em geral tomadas como antagônicas são aspectos que unificam os percursos de Thiago Nascimento Krause e Rodrigo Goyena Soares.
    Eles se valem desse equipamento para enfrentar o difícil desafio de apresentar uma nova síntese historiográfica sobre o Império do Brasil, voltada tanto aos especialistas como ao público leitor mais amplo.
    Exercícios como este, que conjugam pleno domínio do campo, mobilização de fontes primárias, discussões historiográficas de fundo e uma exposição elegante e direta, porém sem simplificações, infelizmente são raros em nosso meio historiográfico. Se, por um lado, o culto à monografia — verificado em teses de doutorado, dissertações de mestrado e artigos publicados em revistas especializadas — foi imprescindível para que a historiografia brasileira desse o salto constatado após a profissionalização do ofício da história em nossas terras (no que já vai meio século…), por outro lado, ele levou a um certo desdém com as obras de síntese. Livros com esse escopo ajudam, e muito, a colocar ordem no campo. Fora do Brasil, eles gozam de um prestígio acadêmico e intelectual que não têm por aqui. Talvez o exemplo máximo do que estou afirmando sejam as quatro Eras compostas por Eric Hobsbawm entre 1962 e 1994: malgrado seu enorme sucesso editorial no Brasil, essas obras não estimularam nossos melhores historiadores e historiadoras a produzirem algo semelhante — mesmo que fosse tão somente na forma — relativo à nossa história.
    O período imperial brasileiro tem gerado nos últimos anos um sem-número de ótimos trabalhos acadêmicos. Porém, salvo exceções, o que predomina é a fragmentação temática, espacial e cronológica das perspectivas adotadas. Não raro, quem trabalha com escravidão crê que examinar os grupos dirigentes nada lhe acrescentará; quem examina a cultura acredita que a economia constitui um mundo à parte; quem olha para o Rio Grande do Sul não olha para o Vale Amazônico. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Acrescenta-se a dificuldade inata em lidar com uma quadra ao longo da qual o Brasil passou por várias convulsões políticas e sociais, cisões profundas entre o Primeiro Reinado e o Segundo Reinado e o maior conflito militar externo já enfrentado por nosso Estado nacional.
    Diante de tais desafios, Krause e Goyena Soares realizaram um enorme feito. Eles nos apresentam uma combinação equilibrada de narrativa temporal e descrição analítica que se mostra notavelmente capaz de dar conta da dialética da duração de um arco de tempo que vai da fundação do Império do Brasil à sua crise, a que se seguiu ao término da Guerra do Paraguai e à aprovação da Lei do Ventre Livre.
    A cada passo, os autores explicitam as articulações de fundo entre a chamada alta política e os movimentos sociais dos subalternos, a política externa e os caminhos tomados pela construção da ordem nacional, a história financeira e seus desdobramentos na reiteração cotidiana das relações sociais.
    A síntese interpretativa que eles trazem tem dois pontos de fuga. O primeiro é a centralidade da escravidão negra para nossa formação como um país independente. Mais do que um legado colonial que o Império se encarregaria de encerrar assim que possível, a escravidão como um projeto nacional, imposto ao conjunto do país em meio a disputas de toda ordem, foi o que deu a solda para a construção do Estado nacional brasileiro sob a roupagem de uma monarquia constitucional. O segundo é a recusa a uma leitura personalista da história, algo que tem se manifestado na multiplicação recente de biografias. O livro opera, de forma muito sofisticada, com o pressuposto da relativa autonomia do político em relação ao quadro econômico nacional e às ordens regionais e globais mais amplas. Mas, no reverso dessa medalha, os autores tampouco deixam de chamar constantemente a atenção para as articulações dialéticas das diversas esferas de existência da vida social, bem como para as dimensões globais de fenômenos que, no mais das vezes, são tomados como exclusivamente nacionais. Pode-se afirmar, aliás, que o livro, ao descortinar os liames entre a escravidão negra, a estrutura financeira imperial e os ritmos da política externa, não apenas sintetiza trabalhos pioneiros realizados nos últimos anos, mas traz, em si, a proposta de uma agenda renovada de investigação.
    Tudo isso vem temperado por uma atitude intelectual fortemente antidogmática, que se mostra aberta às mais variadas matrizes teóricas de interpretação do passado brasileiro. Os especialistas saberão identificar facilmente essas marcas abrangentes de tratamento historiográfico; aos não-especialistas, restará a certeza de estarem diante de uma obra de peso, daquelas que conferem um claro sentido histórico ao mundo em que vivemos.
     

    Para marcar o lançamento desta obra, os autores estarão presentes em eventos no Rio de Janeiro e em São Paulo.

    O evento do Rio terá a participação do presidente da Fundação Getulio Vargas, professor Carlos Ivan Simonsen Leal, e um bate-papo com os autores no auditório da FGV (Praia de Botafogo, 190 – 12º andar), dia 17/8 às 17h.

    Em São Paulo, os autores promovem novo encontro na Livraria Martins Fontes Paulista (Avenida Paulista, 509), dia 22/8 às 18h.

     

    Império em disputa: coroa, oligarquia e povo na formação do Estado brasileiro (1823-1870)

    Thiago Krause e Rodrigo Goyena Soares

  • Postado por editora em em 07/07/2022 - 12:14

    "Entender a trajetória da educação no Brasil até o ponto a que chegamos é parte fundamental do esforço para melhor diagnosticar os desafios atuais, evitando soluções simplistas para problemas estruturais complexos."

    A aproximação do Bicentenário da Independência trouxe um incentivo adicional ao jornalista Antônio Gois para iniciar sua pesquisa sobre a trajetória da educação no Brasil, na qual investiga as raízes profundas do atraso brasileiro nesse setor.

    Para marcar o lançamento desse livro, que conta com apresentação do Ministro Luiz Roberto Barroso, vamos promover dois bate-papos:

    Rio de Janeiro | 28/7/2022 | Blooks Livraria | 19h

    Bate-papo com o autor, Antônio Gois, e o ex-Ministro da Educação e Diretor do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da FGV (FGV-DGPE), José Henrique Paim.

    São Paulo | 8/8/2022 | Livraria da Vila | 19h

    Bate-papo com o autor, Antônio Gois, e os Professores Romualdo Portela (Unicamp) e Fernando Abrucio (FGV), na Livraria da Vila.

     

    Confira a seguir um trecho da apresentação da obra:

     

    Apresentação
    A falsa prioridade
    Luís Roberto Barroso*

    Meu grande projeto na vida sempre foi o de ser professor. Sobretudo um professor. Jamais me arrependi da escolha que fiz. Dou aula na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) há exatos 40 anos. A vida, generosamente, trouxe-me outras realizações, mas nenhuma se compara a essa. A educação constitui uma das minhas grandes aflições no Brasil, notadamente a educação básica. Essa é a única razão pela qual aceitei, imprudentemente, escrever esta apresentação. Nela faço breve resenha do trabalho de Antônio Gois e algumas reflexões sobre o tema — mas sinto-me no dever de sugerir ao leitor que salte diretamente para o livro e pule esta parte, que a ele não agrega valor. Trata-se apenas de um testemunho de apreço e admiração pela devoção com que o autor se dedica, há anos, infatigavelmente, a refletir e divulgar conhecimentos e informações sobre a educação no Brasil.

    I. Uma nota pessoal
    Estudei a maior parte da minha vida em escola pública, desde o jardim de infância até o vestibular. Meus pais até podiam pagar uma escola privada, mas havia uma dificuldade: os principais colégios particulares da época eram católicos. E eu sou filho de mãe judia e pai católico. Não tendo passado pelos ritos próprios da religião na minha infância, as escolas não me aceitariam nem minha mãe quereria. Por essa razão, tive de ir para escolas públicas e estudei no Cícero Pena (Jardim), na Escola Roma (Primário) e no Pedro Álvares Cabral (Ginásio). Tenho a lembrança de que eram colégios exemplares. Puxando pela memória, não me lembro de ter tido sequer um colega negro ao longo de todo o período. A escola pública era o domínio da classe média, naquela segunda metade dos anos 1960 e início dos anos 1970.
    Essa foi a primeira lembrança que me veio à mente ao começar a ler o importante livro de Antônio Gois. Logo ao início, ele denuncia o erro grave de diagnóstico de que a escola pública era muito melhor antigamente. A escola pública nem pública era. Apropriada privadamente pelas elites, ela refletia apenas mais um capítulo da exclusão social brasileira. Neste pequeno grande livro, o autor conta uma história triste, de desigualdades, egoísmos, mediocridades, escolhas equivocadas e falsas prioridades. Por sorte, a história ainda não acabou; e gente como ele trabalha com afinco para que ela mude de curso e tenha final feliz. Assim será.

    ***

    IV. Conclusão
    Saio finalmente do caminho. A expansão, qualificação e evolução da educação básica são os únicos caminhos para a prosperidade dos povos e a emancipação das pessoas. A deficiência na educação básica tem como consequência vidas menos iluminadas, trabalhadores menos produtivos e elites intelectuais menos preparadas para pensar soluções para os problemas nacionais. A importância da educação avulta, exponencialmente, na era da Revolução Tecnológica, com a economia do conhecimento e da inovação rompendo fronteiras.
    Vivemos o admirável mundo novo da tecnologia da informação, da biotecnologia, da nanotecnologia, da impressão em 3D, da computação quântica, dos carros autônomos e da internet das coisas. Um tempo em que o aprendizado deve ultrapassar os conhecimentos convencionais para incluir, além da gramática e da matemática, como aponta o livro, pensamento crítico, capacidade de resolver problemas complexos e criatividade.
    Para superar o atraso que nos reteve na história, a educação precisa ser, verdadeiramente — e não retoricamente —, uma real prioridade. Antônio Gois nos oferece, em relato objetivo e preciso, um inventário dos desacertos do passado, das dificuldades do presente e acende algumas luzes para um futuro mais promissor. Para quem queira se juntar, com informação de qualidade e reflexões pertinentes, ao movimento crescente que vê na educação o único caminho possível para o florescimento do país, este livro oferece um excelente conjunto de diagnósticos, ideias e sugestões. Tive o privilégio de lê-lo em primeira mão, com prazer e proveito.

     

    * Professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

     

    O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente

    Autor: Antônio Gois

     

  • Postado por editora em em 24/06/2022 - 15:31

    A FGV Editora, em parceria com a FGV Conhecimento, publica a obra Resolução online de disputas: casos brasileiros.

    A ideia de reunir em uma obra algumas das principais iniciativas de solução digital de conflitos no Brasil foi concebida e construída ao longo de pelo menos dois anos e permitiu um panorama sobre o estado da técnica da online dispute resolution (ODR) no país. A necessidade de aprofundamento sobre a ODR constitui uma demanda tanto do setor privado quanto da área pública, dados os desafios colocados pela expansão da internet - comercial, profissional, cultural. O assunto ganhou ainda mais notoriedade em razão das circunstâncias da pandemia, que impulsionou, em definitivo, a opção pela consensualidade entre as partes e por meios ágeis de resolver disputas.

    O livro, organizado por Juliana Loss e Daniel Arbix, propõe um resgate do início da resolução online de conflitos e a relaciona com a dinâmica da sociedade digital e com a economia. Este estudo foi realizado pelas pesquisadoras Ana Paula Brandt Dalle Laste, Fernanda Bragança e Renata Braga.

    Em razão de sua abrangência, a obra tem a proposta de ser uma referência para o estudo acadêmico, como também para todos os interessados em entender melhor a evo­lução da utilização da tecnologia no direito com a expectativa de ampliar e aperfeiçoar o acesso à Justiça.

    Confira o prefácio assinado por Luis Felipe Salomão, Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), professor da Fundação Getulio Vargas e coordenador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento

     

    A política de tratamento adequado de conflitos avançou significativamente no Brasil. Desde 2010, marcos normativos como a Resolução no 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Código de Processo Civil (Lei no 13.105/2015) e a Lei de Mediação (Lei no 13.140/2015) contribuíram para impulsionar a prática do consenso, criando um ambiente de fomento à eficiência do sistema de Justiça.
    A conjuntura atual coloca luzes sobre a composição entre as partes em conflito, especialmente com o apoio da tecnologia, que pode proporcionar desde uma comunicação eletrônica até recursos mais sofisticados. Assim, a análise de dados por inteligência artificial e a elaboração automatizada de propostas, por exemplo, são caminhos sem retorno.
    As plataformas de solução de conflitos, também conhecidas como online dispute resolution, ou simplesmente ODR, crescem em todo o mundo e tratam dos mais diferentes tipos de disputas, que incluem questões familiares, administrativas, contratuais, empresariais, com destaque especial para as relações de consumo.
    Este livro, organizado por Juliana Loss e Daniel Arbix, reúne as principais plataformas de solução de conflitos do país, tanto na esfera privada quanto na pública. A obra tem abrangência inédita ao reunir artigos de profissionais altamente renomados nessa área e um mapeamento de pontos fundamentais para o desenvolvimento desses sistemas, o que faz desta publicação uma referência ao estudo do tema.
    É uma iniciativa valorosa que disponibiliza ao público um conhecimento especializado e corrobora o processo de mudança rumo às soluções extrajudiciais. Trata-se de uma já reconhecida contribuição para a formação jurídica da atualidade.
    Boa leitura!

     

    Os organizadores do livro, Juliana Loss, diretora-executiva da Câmara de Mediação e Arbitragem da Fundação Getulio Vargas (FGV) e Daniel Arbix, diretor jurídico do Google, bem como as pesquisadoras Ana Paula Brandt Dalle Laste, Fernanda Bragança e Renata Braga, estarão presentes epara o lançamento do livro:

    25/8/2022 | 18h | São Paulo – Livraria Martins Fontes Paulista (Avenida Paulista, 509 – Cerqueira Cesar)

     

    Resolução online de disputas: casos brasileiros

    Organizadores: Juliana Loss, Daniel Arbix

     

  • Postado por editora em em 16/05/2022 - 12:54

    "É muito oportuna a iniciativa de publicar esta obra de Carmen Fonseca, fazendo assim chegar aos estudiosos brasileiros uma análise inteligente e criativa sobre a política externa do governo Lula. O texto se baseia em uma pesquisa completíssima sobre os documentos e a literatura acadêmica daquele período. Nada ficou de fora".(Trecho da orelha da obra pelo Embaixador Gélson Fonseca Jr.)

    Confira parte da introdução:

    Durante a primeira década do século XXI foram frequentemente recuperadas expressões como “o Brasil é o país do futuro” para se afirmar que, afinal, o futuro do Brasil tinha chegado, conforme registraria em 2011 o presidente norte-americano, Barack Obama, em visita ao país. Entre acadêmicos, analistas e políticos tornou-se relativamente consensual a ideia de que, ao ter adquirido prestígio e protagonismo internacional e ao ser reconhecido como um país emergente, o Brasil alcançava finalmente um estatuto internacional relevante (Prada, 2010), ou, nas palavras dos membros do governo, o lugar e o reconhecimento que lhe era devido.

    Afirmações deste tipo encontravam justificação em episódios como quando, em 2005, o Brasil liquidou antecipadamente o empréstimo que tinha com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O ato teve um significado com repercussões ao nível da política interna e ao nível da credibilidade internacional do país — depois de vários anos a depender daquele organismo, o Brasil conseguia, finalmente, emancipar-se num momento em que se esforçava por emergir no sistema internacional. Este ato foi complementado com a inversão de papéis na relação com o Fundo, quando, em 2009, o Brasil aprovou um empréstimo de 10 mil milhões de dólares ao FMI, reforçando a tentativa de alterar a sua relação e o seu posicionamento no sistema internacional.

    Internamente, o país registrou transformações significativas. Foram implementadas políticas sociais que permitiram uma melhoria das condições de vida de milhões de brasileiros. Contudo, a elite política, incluindo o presidente, continuou a ser alvo de frequentes escândalos de corrupção, persistindo a questão sobre se o Brasil seria um “país sério”.
    Com efeito, não tardaram as tentativas, umas mais fundamentadas do que outras, para definir e categorizar, teoricamente, o Brasil: potência emergente, potência média, potência regional, potência global, líder regional — foram algumas das definições que proliferaram nos últimos anos.

    O desenvolvimento econômico alcançado pelo país contribuiu para aquelas tentativas, criando-se, em nível internacional, uma atração singular pelo país. Análises sobre o país fizeram capa de conceituados jornais e revistas internacionais, como o The Economist, a Times ou o Financial Times. Do mesmo modo, a elite de política externa, nomeadamente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (daqui em diante, Lula) e o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim foram eleitos figuras internacionais influentes.

    Se é evidente a relação do desenvolvimento econômico com o salto internacional dado pelo Brasil, qual é a relação entre essa emergência internacional e a estratégia de política externa implementada? Quais as ações de política externa que promoveram ou atrapalharam essa emergência? Como se traduziu na política externa o desenvolvimento econômico do país?
    A temática aqui abordada suscita ainda o papel da identidade e da autoimagem de um Estado na formulação e nos resultados alcançados pela política externa — como vê o mundo e se define perante ele? No caso do Brasil, a sua própria identidade tem sido marcada por um dilema, ou pelo menos por uma dualidade, que tem a ver com a pertença do Brasil a vários espaços. Nas palavras do antigo ministro Celso Lafer, essa dualidade está relacionada com a sua participação em “numerosas esferas de convívio internacional. É um país ocidental no campo dos valores, em função de sua formação histórica, realidade que não excluía a sua inserção entre os países do Terceiro Mundo” (Lafer, 2002:42). Deste modo, o que significa a região e o mundo para o Brasil em termos definidores da sua identidade? De que forma o Brasil articulou essa sua pertença com a ambição de desempenhar um papel relevante no sistema internacional?

    A especificidade brasileira relacionada com “as origens complexas da identidade internacional do Brasil” (Hurrell, 2008:53) — decorrente do processo de descolonização europeu assim como da herança do colonialismo e da pobreza — contribuiu para que o Brasil tenha desenvolvido uma “dupla inserção” (Lafer, 2002:42) internacional. Para Hurrell (2008:53), “esta dualidade permaneceu um importante elemento das discussões brasileiras sobre o lugar onde o Brasil ‘encaixa’”. Simultaneamente, “o Brasil articula uma identidade sul-americana com uma identidade mais globalista que se reflete na sua relação com a África do Sul, a China, a Índia e a Rússia” (Merke, 2008:152). Ainda de acordo com Lafer, “para o Brasil, a América do Sul não é uma opção, é, sim, para falar com Ortega y Gasset, a ‘circunstância’ do nosso eu diplomático” (Lafer, 2002:52). A América do Sul “passou a ser uma constante, uma ‘força profunda’, da política externa brasileira” (Lafer, 2002:52).

    Deste modo, a política externa do Brasil tem refletido as tentativas de definição da sua identidade internacional que deriva das múltiplas identidades que ao longo dos tempos o país foi agregando (entre o Terceiro Mundo e as potências industrializadas). A dupla identidade do Brasil influenciou a formulação de uma política externa também ela dupla? — orientada para a região e simultaneamente para o mundo.

    Como fica evidente, o Brasil não encaixa facilmente nas diferentes categorias formuladas para hierarquizar os Estados, ao mesmo tempo, a sua política externa tem revelado, ao longo dos tempos, algumas vulnerabilidades semelhantes à fragilidade estrutural do país, da qual as desigualdades sociais e os níveis de pobreza são exemplos. Ora, o Brasil tanto é definido enquanto Potência Média tradicional como enquanto Potência Média Emergente (i.e., Potência regional) (Jordaan, 2003). Todavia, conforme a evolução histórica da política externa do país vai destacar, o Brasil tentou, por diversas ocasiões, não ser um Estado subordinado, mas desenvolver uma política externa que algumas vezes questionou a sua associação aos países do Terceiro Mundo ou em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o intervalo temporal em análise reflete a tendência de reorganização do sistema internacional a qual foi um potencial contributo para que os próprios Estados, bem como outros atores, procedessem a ajustes na sua ação externa.

    A análise apresentada visa avaliar se a política externa de Lula foi uma política externa de transição do estatuto internacional do país, influenciada pelo desenvolvimento interno e pelas transformações internacionais. Estudar a influência das decisões e estratégias de política externa obriga a que seja feita uma leitura que interrelacione os elementos que compõem cada um dos níveis da política externa: atores, processos, resultados. Como aliás Jackson e Sorensen referem, a política externa de qualquer país é um tema complexo que apenas pode ser totalmente compreendido através da análise cuidadosa de fatores políticos, econômicos, psicológicos e outros que funcionam quer entre os atores quer entre os grupos de atores no nível interno e nos padrões de relações internacionais que definem o contexto da política externa. [Jackson e Sorensen, 2008:227]

    Mas qual a relação que se pode estabelecer entre a política externa e a emergência de um Estado? Quais os fatores que tradicionalmente têm estado na base dessa emergência? Neste estudo admite-se que a política externa é um processo sujeito a diversos condicionantes — proveniente do nível interno, do nível internacional e dos atores. Será possível avaliar qual que teve mais peso na formulação das estratégias externas com vista à emergência do Brasil?

    Desta forma, a análise feita ao longo dos capítulos seguintes comporta elementos das teorias das relações internacionais, em particular do realismo neoclássico e do construtivismo. De acordo com os realistas neoclássicos, a formulação de política externa sofre pressões do ambiente interno, do sistema internacional e dos atores. Enquanto teoria de política externa, o realismo neoclássico é útil porque conjuga a influência das variáveis sistêmicas e internas. Embora desenvolva também um enfoque no poder relativo dos Estados, considera que não há uma relação direta entre as capacidades materiais e o comportamento de política externa, importa mais a percepção de poder relativo tida pelas elites políticas, ou seja, quem faz as escolhas. Por conseguinte, com base na abordagem construtivista, analisa-se o reflexo da autoimagem e da identidade internacional do país na formulação da sua política externa bem como na sua emergência internacional.

    O livro, dividido em quatro capítulos, começa por caracterizar a política externa brasileira nas suas diferentes dimensões. É apresentado um enquadramento institucional e histórico da política externa, auscultando como a relação do Brasil com o sistema internacional — a sua identidade, como sugerido pelo construtivismo — foi evoluindo; e, por outro, são analisados os contextos e os atores, tal como sugerido pelo realismo neoclássico, terminando com uma análise dos traços gerais da política externa no período do presidente Lula. ambição de “Brasil potência” e de “grandeza”. O ministro das Relações Exteriores, Araújo de Castro, afirmava, no início da década de 1970, que “Temos de pensar grande e planejar em grande escala, com audácia de planejamento” (Araújo de Castro apud Spektor, 2004). No final da década esta ambição foi recuperada pelo presidente Ernesto Geisel e pelo seu ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira. Devido às transformações ocorridas no sistema internacional, e sob a retórica de “Brasil potência”, Azeredo da Silveira pretendeu projetar o Brasil na cena internacional, acreditando que os países em desenvolvimento poderiam ganhar espaço e influenciar a agenda internacional. Assim, a história da política externa brasileira permite afirmar que existe um conjunto de elementos que caracterizou a política externa do Brasil desde o início do século XX, em convívio com outros mais pontuais, resultantes dos constrangimentos/oportunidades internos e externos. Na verdade, a orientação da política externa não sofreu ao longo dos anos rupturas significativas, sendo marcada pela continuidade de princípios e objetivos, ou de “cenários obrigatórios”, na expressão de Gélson Fonseca.

    A história da política externa brasileira, do regime militar à democracia, também permite aferir que existe um objetivo transversal, relativamente enfatizado pelos vários governos e assente na ambição de “Brasil potência”, embora a ênfase e os esforços desenvolvidos tenham sido diferentes. Na verdade, foi durante os governos de Lula que o Brasil passou a ser percepcionado como um global player — membro de instituições internacionais relevantes e que influencia decisões internacionais. A persistência desta ambição nem sempre foi acompanhada por ações coincidentes, e apesar da relativa presença internacional do Brasil durante o período democrático, a “ambição de grandeza” do Brasil tardou a ser alcançada. Como Sean Bruges refere, o Brasil tem uma longa história de ser “ignorado ou marginalizado pelas Grandes Potências nos assuntos internacionais e de braço de ferro ou finta nos assuntos regionais” (Burges, 2012:109). Todavia, desde o final da década de 1990, ainda sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso (FHC), o Brasil iniciou um processo de revelação internacional que se consolidou com o presidente Lula por meio da sua participação em fóruns internacionais e multilaterais, da relação com as Grandes Potências, do exercício diplomático ativo noutras regiões ou ainda das suas intervenções sobre temas da agenda internacional.

    A política externa do governo Lula: retórica, ambivalência e pragmatismo

    Autora: Carmen Fonseca

  • Postado por editora em em 28/04/2022 - 09:38

    A relação entre liberdade de expressão e democracia é inquestionável. Os termos dessa relação são controversos. Neste livro, Owen Fiss se posiciona sobre uma pergunta fundamental: afinal, a que serve a liberdade de expressão em uma democracia? A clareza de seus argumentos ensina que problemas contemporâneos urgentes de liberdade de expressão podem e devem ser tratados com profundidade e coerência.

    Esta obra, organizada por Clarissa Piterman Gross e Ronaldo Porto Macedo Junior, com prefácio de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto, apresenta, de forma clara e acessível para o grande público e em momento mais que oportuno, um debate acerca dos propósitos da liberdade de expressão relevante para diversas questões contemporâneas relacionadas à qualidade da democracia e trata de um tema fundamental para a democracia contemporânea: o papel do Estado na garantia das liberdades de expressão e de imprensa.

    Confira a introdução da obra a seguir: 

    A liberdade de expressão está entre nossos mais estimados direitos, porém ela tem sido o foco de constantes polêmicas. Durante a maior parte deste século, a liberdade de expressão esteve sujeita a inúmeras batalhas judiciais e dividiu profundamente a Suprema Corte. Com efeito, o caso Pentagon Papers, do início dos anos 1970, foi um dos episódios mais contenciosos da história da Suprema Corte, envolvendo uma disputa entre o Attorney General dos Estados Unidos e dois jornais altamente respeitados, o New York Times e o Washington Post, e deixando os juízes em conflito uns com os outros. A liberdade de expressão também foi intensamente debatida em círculos políticos, nos campi da nação e mesmo em torno de mesas de jantar — em contextos que variam desde o julgamento de Sacco e Vanzetti em 1921 à cruzada anticomunista dos anos 1950.

    Para alguns observadores, as controvérsias atuais sobre a liberdade de expressão podem não parecer especialmente relevantes; elas podem até mesmo ser um pouco cansativas. As questões podem ter mudado — ao invés da subversão e da alegada ameaça comunista, nós estamos agora preocupados com tópicos como discurso de ódio (hate speech)* - * a expressão “hate speech” no original será sempre traduzida como “discurso de ódio”. (N. do R.)e financiamento de campanha — mas as divisões e paixões que elas suscitam são todas bastante familiares. Eu acredito, contudo, que tal perspectiva sobre as controvérsias atuais em torno da liberdade de expressão — vendo-as como nada além de uma repetição do passado — é equivocada. Alguma coisa muito mais profunda e muito mais significativa está acontecendo. Nós estamos sendo convidados, ou mesmo intimados, a reexaminar a natureza do Estado moderno e verificar se ele possui algum papel na preservação das nossas liberdades mais básicas.

    Os debates do passado foram baseados na visão de que o Estado era um inimigo natural da liberdade. Era o Estado que estava procurando silenciar o orador (speaker) individual e era o Estado que deveria ser controlado. Há muita sabedoria nesta visão, mas ela representa apenas meia verdade. Certamente, o Estado pode ser um opressor, mas ele pode ser também uma fonte de liberdade. Por meio da consideração de uma ampla variedade de controvérsias sobre liberdade de expressão nas manchetes atuais — discurso de ódio, pornografia, financiamento de campanha, financiamento público das artes e o esforço para ganhar acesso aos meios de comunicação de massa —, eu procurarei explicar por que a tradicional presunção contra o Estado é enganosa e como o Estado poderia se tornar o amigo, ao invés do inimigo, da liberdade.

    Essa visão — inquietante para alguns — está calcada em várias premissas. Uma é o impacto que a concentração de poder privado tem sobre a nossa liberdade; algumas vezes o Estado é necessário apenas para contrapor essas forças. Fundamentalmente, essa visão é predicada em uma teoria da Primeira Emenda e de sua garantia de liberdade de expressão que enfatiza valores sociais ao invés de valores individualistas. A liberdade que o Estado pode ser chamado a promover é uma liberdade pública. Apesar de alguns verem a Primeira Emenda como uma proteção ao interesse individual de autoexpressão, uma teoria muito mais plausível, formulada inicialmente por Alexander Meiklejohn1 e agora abraçada por todo o espectro político, de Robert Bork a Willam Brennan, vê a Primeira Emenda como uma proteção da soberania popular. A intenção da lei é ampliar os termos da discussão pública de forma a possibilitar que cidadãos comuns tomem conhecimento das questões à sua frente e dos argumentos de todos os lados, e, então, persigam seus objetivos com liberdade e plenitude. Uma distinção, portanto, é traçada entre uma teoria libertária e uma teoria democrática da expressão, sendo esta última a que impulsiona meu questionamento sobre os caminhos por meio dos quais o Estado pode potencializar nossa liberdade.

    A visão libertária — de que a Primeira Emenda é uma proteção da autoexpressão — faz um apelo para o éthos individualista que tanto domina nossa cultura popular e nossa cultura política. A liberdade de expressão é vista como análoga à liberdade de religião, que também é protegida pela Primeira Emenda. Todavia, essa teoria não consegue explicar por que os interesses daqueles que produzem o discurso deveriam ter prioridade sobre os interesses dos indivíduos objeto do discurso, ou dos indivíduos que devem escutar o discurso, quando esses dois conjuntos de interesses conflitam. Ela também não consegue explicar por que o direito de liberdade de expressão deveria ser estendido para várias instituições e organizações — CBS, NAACP, ACLU, First National Bank of Boston, Pacific Gas & Electric, Turner Broadcast System, VFW — que são rotineiramente protegidas pela Primeira Emenda, apesar do fato de essas entidades não representarem o interesse individual de autoexpressão. O discurso é tão valorizado pela Constituição, eu sustento, não porque ele é uma forma de autoexpressão ou autorrealização, mas porque ele é essencial para a autodeterminação coletiva. A democracia permite que as pessoas escolham a forma de vida que desejam viver e pressupõe que essa escolha seja feita em um contexto no qual o debate público seja, para usar a agora famosa fórmula do Juiz Brennan, “desinibido, robusto e amplamente aberto”. No original, uninhibited, robust, and wide open. (N. do T.).

    Em algumas instâncias, instrumentos do Estado tentarão inibir o debate livre e aberto, e a Primeira Emenda é o mecanismo testadoe aprovado que impede e previne tais abusos do poder estatal. Em outras instâncias, contudo, o Estado pode ter que agir para promover a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos — distribuir megafones — para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes, simplesmente não há outra forma. O ônus deste livro é explorar quando tais exercícios do poder estatal para alocar e regular são necessários, e como eles podem ser reconciliados com, ou mesmo sustentados por, a Primeira Emenda.

     

    A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública

    Autor: Owen M. Fiss

  • Postado por editora em em 28/04/2022 - 09:20

    Em 1950, o imigrante letão Herberts Cukurs, então proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, foi acusado de ter cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. O "caso Cukurs" logo se tornou conhecido no Brasil e no exterior e mobilizou governos, entidades judaicas e não judaicas, parlamentares e opinião pública. Percorrendo documentos inéditos, disponíveis no Brasil e no exterior, este livro examina a complexa construção do histórico "caso Cukurs", sobretudo a posição das autoridades brasileiras diante dele.

    Confira a seguir o prefácio de Fabio Koifman, professor adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde leciona nas graduações de história e de relações internacionais.

    UMA DAS HISTÓRIAS QUE ME RECORDO de ouvir em casa durante minha juventude era a que meu pai contava relacionada a uma tarde na qual ele e um grupo de amigos foram à Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro “andar de pedalinhos”. Os pedalinhos eram pequenas embarcações para dois passageiros que, por meio do acionamento de pedais, faziam girar um conjunto de pás que produziam movimento sob a água. De acordo com o relato, sem saber ao certo como, logo que o grupo chegou ao píer um senhor estrangeiro que cuidava da atração os recebeu e rapidamente os identificou como judeus. Em seguida, apontou para eles uma jovem moça que estava em companhia dele, informando que ela também era judia. Durante o passeio, parte do grupo acabou atravessando uma parte do espelho d’água repleto de folhagens que se prenderam ao sistema que produzia o movimento da pequena embarcação, fazendo com que os pedalinhos ficassem parados, sem a possibilidade de movimento, a uma distância razoável da margem. Como outra parte dos membros do grupo não sofreu o mesmo contratempo, alguns dos jovens alertaram o responsável para o fato, esperando que ele tratasse de resgatá-los. A mesma situação ocorria eventualmente com outros usuários e, fazendo uso de um pequeno barco, aquele senhor prontamente se dirigia ao local e soltava os pedalinhos presos nas plantas submersas. O tempo foi passando e, para a surpresa do grupo, o “homem dos pedalinhos” ignorou a desagradável situação dos que permaneciam imóveis em um canto um pouco mais remoto da lagoa sem poder se mexer e não providenciou o resgate.

    Na ausência de ajuda, os jovens buscaram então, eles mesmos, se desprender, e depois de algum esforço obtiveram sucesso sem compreender a razão de terem sido negligenciados. Aborrecidos com o ocorrido, decidiram nunca mais voltar ao lugar. Tempos depois, acreditaram ter lido nos jornais a razão do estranho comportamento do homem e compreendido o tratamento que ele destinou ao grupo: aquele era Herberts Cukurs, um “criminoso de guerra nazista”. Não há dúvida de que a situação pudesse ter decorrido da maneira que foi por mero acaso ou coincidência. Mas em que contexto estavam esses jovens para compreender os atos de um homem acusado de ter sido um cruel assassino?

    Na virada dos anos 1940 para 1950, entre os jovens da comunidade israelita do Rio de Janeiro, o genocídio de que foram vítimas os judeus – que passaria nas décadas seguintes a ser conhecido em português como Holocausto e em hebraico como Shoah (calamidade) – não era considerado um “assunto de criança” ou de jovens adolescentes na faixa de idade deles. Mas foi muitas vezes evidenciado por notícias do desaparecimento de avós, tios e primos que, diferentemente dos pais que imigraram para o Brasil, haviam permanecido na Europa. Depois da Segunda Guerra Mundial, a chegada de alguns parentes ou de pessoas circulando nos espaços comunitários, mesmo que não dividindo com os demais suas histórias e memórias – conforme o mais usual –, menos ainda com os jovens, tinham suas experiências em muitos casos denunciadas pelos estranhos números tatuados nos braços, trazendo para um pouco mais perto ou tornando um pouco mais claras as conversas dos adultos eventualmente escutadas pela metade. A descrição do Holocausto para os mais jovens, de modo geral, era reduzida à informação de que parte da família acabou morta, contabilizada entre os milhões que foram assassinados pelos nazistas.

    Com a revelação de que estaria ali tão próximo na Lagoa Rodrigo de Freitas um homem apontado como um dos responsáveis pela tragédia, era natural que o fato produzisse a reação que suscitou entre alguns dos judeus residentes na cidade. Para o público, assim como para o grupo deixado à deriva nos pedalinhos naquele dia, as versões que apareciam nos jornais já esclareciam e materializavam a figura de um criminoso de guerra.

    Um tema tão sensível e carregado de emoções como esse se prestava e se presta a atrair o público e vender publicações – a incidência do rosto de Hitler em bancas de jornal supera a de Jesus, sendo os dois rostos os mais recorrentes nas capas de revistas, em especial, as que exploram curiosidades –, não necessariamente zelosas com a precisão histórica dos fatos. Já o enfrentamento do assunto por um historiador de ofício, de modo diferente, requer extremo cuidado, boa metodologia, minuciosa e criteriosa pesquisa, complementados por esforço contínuo de estabelecer o necessário distanciamento pessoal e emocional do objeto de estudo. Muitas são as tensões, tentações e os potenciais desvios e influências quando se enfrenta temáticas dessa natureza e complexidade.

    Com tanto interesse do público no assunto, alguns jornalistas se ocuparam dos temas relacionados ao nazismo ou da presença de nazistas no Brasil.

    Não somente eles, como também parte dos historiadores – no mais das vezes, não em textos acadêmicos, mas em entrevistas concedidas aos meios de comunicação – deixou-se seduzir pelo canto da sereia dos holofotes da mídia e lançou mão de um viés denunciativo que, não raro, parece transformar o pesquisador em uma espécie de justiceiro e a História em um tribunal.

    O tema do pós-Segunda Guerra Mundial e a atribuída fuga de expressivo número de criminosos nazistas para o Brasil, talvez pela recorrência com que surgiu também na literatura ficcional e no cinema, não atraiu por muito tempo os historiadores de ofício e acadêmicos. Nas últimas décadas, quando abordado, o objeto atraiu uma prática historiográfica considerada menor, a chamada história denunciativa. Talvez por esse motivo, o tema não tenha feito produzir um número significativo de trabalhos acadêmicos. O risco de terem seus nomes associados à história denunciativa possivelmente desestimulou e afugentou potenciais investigadores que cogitaram debruçar em pesquisas dentro desse assunto.

    Do mesmo modo, enfrentar matéria a respeito da qual a opinião pública já possuía tantas certezas construídas por mitos – como o de que o então governo brasileiro teria atuado premeditadamente no sentido de receber e esconder no país criminosos de guerra nazistas foragidos – demanda trabalho dobrado por parte do pesquisador. Primeiro, é necessário demonstrar as inconsistências e a falta de lastro das versões ficcionais construídas que se repetiram e passaram a constituir o senso comum. A partir disso, efetivamente, narrar e explicar o que, efetivamente, as evidências apontam. Um tema absolutamente inédito ou pouco conhecido não demandaria esse duplo esforço. Tampouco encontraria a resistência de parte do público, que muitas vezes prefere acreditar na versão que lhe parece mais lógica e palatável, mesmo quando essa não possui amparo na investigação de natureza acadêmica.

    Por essa razão, é com entusiasmo que os estudiosos da história do Brasil desse período e demais interessados no tema recebem o trabalho de Bruno Leal, fruto de uma brilhante tese de doutorado em história. Com muita perseverança, disposição, seriedade, rigor e fôlego, o autor encarou o que foi necessário enfrentar em termos de pesquisa documental e fontes. Com um texto objetivo e uma narrativa que não buscou atalhos menos pedregosos nem produziu digressões, apresenta um livro no qual relata, interpreta e explica exclusivamente o que as evidências coletadas em extensa pesquisa respaldam.

    A criatividade é, sem dúvida, uma qualidade humana, do mesmo modo que o são a honestidade intelectual e o rigor científico. O leitor merece sempre ser informado de maneira clara se seus olhos percorrem obras que misturam realidade com ficção ou se, de fato, está lendo um texto historiográfico.

    O presente livro é trabalho de historiador... e dos bons.

     

    O homem dos pedalinhos: Herberts Cukurs - a história de um alegado nazista no Brasil do pós-guerra

    Autor: Bruno Leal Pastor De Carvalho

  • Postado por editora em em 10/02/2022 - 13:31

    Dentro das celebrações do centenário da Semana de Arte Moderna de 22, lançamos a segunda edição do livro Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo, da professora Angela de Castro Gomes.

    Confira um trecho da introdução da obra a seguir:

    Este trabalho insere-se em um conjunto muito amplo e diversificado de estudos voltados para o acompanhamento da atuação dos intelectuais brasileiros nas primeiras décadas do século, destacando sua relevância na proposição e implementação de projetos de “Brasil moderno”. O tema de fundo em todos eles — a questão dos marcos culturais da identidade nacional — vem sendo tratado tanto no âmbito da história e das ciências sociais, quanto no da crítica literária e da medicina social.1 A amplitude de tal composição é reveladora não só da importância que o tema da cultura ganhou nas últimas duas décadas, especialmente para a historiografia, como do reconhecimento da necessidade de se trabalhar com novos atores, como os intelectuais, para se compreender os rumos dos complexos processos de transformação social.
    No caso deste estudo, procurou-se privilegiar os intelectuais cariocas, entendidos como os que viviam e teciam suas redes de sociabilidade na cidade do Rio de Janeiro, permanecendo-se fiel ao período das primeiras décadas do século, mas nelas destacando os anos 1930, menos explorados que os “frenéticos” anos 1910 e 1920.
    A contribuição que se busca trazer, portanto, diz respeito menos ao espaço e aos atores sob análise, e mais à abordagem escolhida. Ela procura captar a ambiência social, política e cultural da cidade, para então mapear a dinâmica de articulação de seus vários grupos de intelectuais, reunidos em lugares de sociabilidade por eles legitimados, para o debate e a propagação de ideias, indissociáveis de formas de intervenção na sociedade. Ou seja, a pesquisa está situada na interseção da história política e cultural, que é sempre social, assumindo uma vertente teórico-metodológica que, na França, vem recebendo a designação de “história de intelectuais”.
    Tal approach procura uma estratégia de análise distinta de outras, também integrantes do campo da história cultural, como a “história das ideias” e o estudo das trajetórias de conceitos, bem como a “história da leitura” ou a “análise de discursos”, sejam estes tomados como recursos de poder, sejam tratados no âmbito da linguística.
    Como se vê, o campo é rico e multifacetado, permitindo especificidades e interseções. A opção pela “história de intelectuais” não buscou, portanto, um aprisionamento conceitual, fundando-se na crença de ser uma possibilidade útil para o exercício de um tipo de análise histórico-sociológica. Tal análise, sem abandonar o interesse pelo conteúdo e forma da produção dos intelectuais, concentra sua atenção na lógica de constituição de seus grupos, postulando a interdependência entre a formação de redes organizacionais e os tipos de sensibilidade aí desenvolvidos, o que necessariamente iluminaria o desenho e as características de quaisquer projetos culturais.
    Esta abordagem seria segura e profícua para o historiador, por permitir uma aproximação das obras dos intelectuais, através do privilegiamento das condições sociais em que foram produzidas, enquanto constitutivas de um certo campo político-cultural. Sendo mais precisa, não se trata fundamentalmente de uma contextualização histórica, muito frequente e proveitosa, mas do reconhecimento da existência de um campo intelectual com vinculações amplas, porém com uma autonomia relativa que precisa ser reconhecida e conhecida. Isto poderia ser alcançado com uma investigação que acompanhasse as trajetórias de indivíduos e grupos; que caracterizasse seus esforços de reunião e de demarcação de identidades em determinados momentos; e que associasse tais eventos às características-projetos de sua produção intelectual.
    Por essa razão, a opção pela abordagem acaba por enfatizar — como objeto e fonte, simultaneamente —, o trabalho com periódicos, correspondências, casas editoras, cafés, livrarias e associações culturais, enfim, com diversificados “lugares de sociabilidade” onde os intelectuais se organizariam, mais ou menos formalmente, para construir e divulgar suas propostas. Pelo mesmo fato, tais pesquisas enfrentam sempre questões polêmicas, pelas quais os intelectuais, ao mesmo tempo, inserem-se no campo cultural mais abrangente do qual são contemporâneos, e nele procuram demarcar fronteiras capazes de lhes assegurar identidades individuais e coletivas. De maneira mais operacional, a abordagem procura mapear as ideias, valores e comportamentos que alicerçam a formação de grupos intelectuais, objetivando compreender as genealogias que inventam, os formatos organizacionais que elegem e as características estéticas e políticas de seus projetos.
    Como neste estudo se escolheu trabalhar com os intelectuais cariocas ao longo das primeiras décadas do século XX, o ponto de partida necessário foi a problematização dos conceitos de modernidade e modernismo, conforme o que vem sendo feito por estudos recentes nas ciências sociais e na literatura. sensual, eles tendem a apontar para as conjunções e disjunções existentes entre os dois termos em momentos e espaços diferenciados e, como desdobramento, para a multiplicidade de modernidades e modernismos que podem ser pensados. Isto é, para a possibilidade de uma variedade de projetos de modernização que se expressariam por numerosas, mas não arbitrárias, estéticas modernistas.
    Dessa forma, as assinaladas relações entre intelectuais, nacionalismo e modernismo ganham renovado interesse, por abandonarem completamente a premissa de um certo modelo de nação moderna que pudesse ser utilizado como parâmetro para todo o campo político-intelectual do país. Como decorrência, tornam- se objeto de reflexões questões como a da própria centralidade que os modernistas paulistas atribuíram a si mesmos e a da duração da memória que construíram sobre seu papel de vanguarda intelectual hegemônica.
    Se esta experiência foi, sem qualquer sombra de dúvida, fundamental para a construção de uma nova concepção de arte e cultura no país, seu impacto vem sendo reinterpretado, mais como um efeito das iniciativas agressivas e contestatórias de que lançaram mão naquele
    momento do que do próprio caráter formal de inovação que seus trabalhos apresentavam. O que se assinala, portanto, é que a “estratégia do escândalo”, a que recorreram os “paulistas” da Semana, foi recebida pelo público como um sinal de mudança radical, afirmando-se como um paradigma de modernismo e modernidade nacionais. Tal paradigma seria retomado e consolidado, cuidadosamente, pelo trabalho de muitos intelectuais, entre os quais os próprios modernistas paulistas e vários críticos literários atuantes nas décadas de 1950 e 1960, que estabeleceram uma história-memória do movimento modernista para todo o país.
    Em vinculação com esse tipo análise, cresceu o interesse pela pesquisa de “outros” projetos de modernidade, assim como pela problematização de categorias como “pré” e “pós”-modernismo. No caso dos estudos sobre o “pré-modernismo”, tem-se operado um recuo à produção cultural da virada do século XX, destacando-se a construção de circuitos alternativos para o debate e circulação de ideias, em especial no Rio de Janeiro. Tais experimentos, marcados pela recusa ao já estabelecido em termos artísticos, bem como pela aceitação de novas práticas comunicativas e uso de tecnologias, impactavam tanto as formas quanto os conteúdos do que se desejava transmitir a um público urbano, crescente e diversificado.
    Neste sentido preciso é que se pontua que a modernidade cultural brasileira não poderia ser pensada como restrita a uma súbita e original descoberta, devendo ser analisada de forma processual e em íntima conexão com as ambiências urbanas e regionais que demarcavam as trajetórias individuais e coletivas dos intelectuais do país.
    O intelectual e, no caso, o intelectual-artista, que experimentava uma especialização e profissionalização acentuadas, precisaria ser pensado sempre como um doublé de teórico da cultura e de produtor de arte, inaugurando formas de expressão e refletindo sobre as funções e desdobramentos sociais que tais formas guardariam. O esforço de inovação e a consciência explicitada desse esforço eram, inclusive, muito grandes nesses inícios do século XX. Suas relações com o aparecimento de um público e de meios de comunicação “de massa” são evidentes, donde a importância de ações que estreitassem esses vínculos, quer através do uso de “outras” linguagens (como a caricatura, a propaganda, o rádio e até o cinema), quer através do “ensino” da arte, que não deveria ser monopólio de escolas, academias ou júris de salões. Esse novo público abria perspectivas para uma gradual libertação de estilos e práticas, como a do mecenato, apontando para a criação de um mercado maior e mais aberto, com as presenças de editores e marchands, bem como para uma dinâmica entre mecenato e mercado de arte, até então não experimentada.
    Diante de tantas transformações, não é casual a existência de polêmicas que ora aproximassem ora distanciassem os intelectuais, situando-os em “grupos” que se reorganizavam continuamente com o passar dos anos e dos eventos estéticos e políticos. Unindo ou opondo lideranças e/ou instituições, tais disputas estão longe de ser indicadores de meras vaidades individuais ou coletivas, ou de competições “regionais”. Elas exprimem, em sua duração e sofisticação, a intensidade e a dificuldade das questões então enfrentadas pelo país, em busca de uma modernidade sentida como necessária e iminente no período do entreguerras.
    Seria impossível, nesses parâmetros, imaginar um afastamento da intelectualidade carioca de tais enfrentamentos. O Rio encontrava-se no “centro” da própria polêmica, não só por ser o polo de atração e civilização de toda a nação, como, por isso mesmo, por encarnar os estigmas do “passado e atraso” a serem por todos vencidos.
     

     

    Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo

    Autora: Angela Maria de Castro Gomes

  • Postado por editora em em 03/02/2022 - 19:20

    Webinar de lançamento em 22/2/2022 | Inscrições AQUI

    Ao organizar a obra Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais, o professor Celso Castro teve como objetivo ampliar o campo de possibilidades do cânone, sugerindo
    novas perspectivas para a compreensão da realidade social. Os textos reunidos nesta coletânea, bem como suas autoras e autores, devem ser mais lidos e conhecidos. "Teremos, assim, ciências sociais mais abrangentes, diversas e renovadas."

    Conheça a apresentação da obra a seguir e também as autoras, os autores e seus textos:

    Esta não é uma coletânea contra o cânone tradicional das ciências sociais, nem que pretenda ser alternativa. Os autores tradicionalmente considerados clássicos têm seus motivos e méritos para tal. São fundamentais para qualquer aprendizado sério das ciências sociais. Gosto muito deles e já organizei duas seleções de “textos básicos” de sociologia e antropologia seguindo essa tradição.1 Eles não são, contudo, os únicos autores que podemos e devemos conhecer hoje, se quisermos ter uma visão mais abrangente e diversificada das ciências sociais.
    Quando comecei minha formação como cientista social, em 1981, os cursos de introdução incluíam obrigatoriamente, porém exclusivamente, três “pais fundadores”: Marx, Durkheim e Weber. Mais tarde, um quarto autor, Simmel, de quem gosto em particular, passou a ser com frequência incluído nesse seleto grupo. Acho equivocado reduzir o fato de eles terem se tornado clássicos — bem como vários outros autores fundamentais, como Mauss, Malinowski, Lévi-Strauss, Bourdieu, Goffman, Elias etc. — à condição de serem todos, sem exceção, homens, europeus ou norte-americanos e brancos. Sem dúvida, a institucionalização das ciências sociais seguiu as condições sociais e os privilégios mais gerais das sociedades patriarcais e europeias ou norte-americana no seio das quais se desenvolveu. Mas hoje podemos, e devemos, perguntar: onde estão, na tradição das ciências sociais, as mães fundadoras, ou as autoras e autores não ocidentais, ou não brancos?
    Busquei, nesta coletânea, ir além do cânone tradicional, incluindo outros textos, de 16 autoras e autores, a maioria inéditos no Brasil e aqui traduzidos pela primeira vez para o português. Eles foram selecionados a partir de três critérios.

    O primeiro, de não estarem presentes nas coletâneas tradicionais dos principais cientistas sociais. Pode-se argumentar de início que algumas das escolhas aqui feitas não se referem a autoras ou autores que se insiram estritamente ou “a rigor” no campo específico das ciências sociais, tal como ele se institucionalizou na Europa ou na América do Norte. Ou, então, que não seriam suficientemente “teóricos” (portanto, generalizáveis). Respondo chamando a atenção para o fato histórico de que a definição estrita (e estreita) desse campo científico é justamente parte do problema, sobre o qual devemos ter uma visão crítica, não eurocêntrica e desnaturalizadora.

    Grande parte das autoras e autores aqui reunidos podem aparecer em coletâneas específicas sobre cientistas sociais, organizadas sob diferentes rótulos: “mulheres”, “feministas”, “negros”, “não ocidentais”, “decoloniais”, “do Sul” etc. Dificilmente, por exemplo, Du Bois deixaria de aparecer em uma coletânea sobre sociólogos negros, ou Jane Addams em uma sobre sociólogas mulheres. Minha seleção, contudo, sem desconhecer a relevância de iniciativas específicas a cada um desses recortes, buscou ser “ecumênica”. O que se perde em profundidade, espero ganhar em diversidade.

    O segundo critério foi o do pioneirismo ou do impacto que tiveram em seus contextos nacionais ou regionais. Alguns textos são importantes por terem sido dos primeiros a tratar de algum tema, ou pela recepção que tiveram. Harriet Martineau é, a meu ver, a primeira cientista social, independentemente do gênero. Ela publicou um notável manual sobre “como observar a moral e os costumes” em 1838, nada menos de 57 anos antes de Durkheim publicar suas regras do método sociológico. O antropólogo negro haitiano Anténor Firmin desafiou a pretensão científica do racismo do conde de Gobineau em 1885. O texto de Manuel Gamio, criticando os preconceitos contra os indígenas mexicanos, pode parecer trivial hoje, mas não o era quando foi publicado, no México de 1916. Ou o impacto, ainda forte, do  texto de 1960 de Takeuchi Yoshimi sobre a “Ásia como método”. Além de europeus e americanos, há aqui textos de autoras ou autores de Haiti, Índia, Japão, Turquia, Irã e México. Vejo em todas e todos qualidades suficientes, por si sós, para fazer parte de um repertório mais alargado. Trata-se, a meu ver, de ampliar o campo de possibilidades do cânone.

    O terceiro critério é o da beleza que atribuo aos textos selecionados. Aqui, assumo plenamente minhas preferências pessoais e a subjetividade de minhas escolhas. Em cada texto de apresentação indico os motivos da seleção, mas devo desde já dizer que gosto de todos eles, cada qual com seu estilo e em seu contexto histórico. Algumas escolhas podem obedecer a dois dos critérios acima mencionados. Jane Addams, por exemplo, é “mulher” e “pioneira”, mas a meu ver também compartilha, com todas e todos os demais, a beleza de seu texto. Louise Varga, por outro lado, dificilmente seria incluída em coletâneas organizadas sob esses mesmos critérios. Aqui, foi incluída pela impressionante força e beleza que vejo em sua etnografia do nazismo, publicada em 1937, quando esse movimento ainda estava em seu início.

    Acima de tudo, acho que os textos aqui reunidos, bem como suas autoras e autores, deveriam ser mais lidos e conhecidos. Conhecê-los representou um alargamento da percepção de minha própria ignorância em relação ao mundo, vasto mundo, das ciências sociais. Isso não é pouco. Espero que a seleção aqui feita ajude a formar uma geração de cientistas sociais que estudem a realidade social a partir de perspectivas mais amplas, diversas e coloridas do que aquelas que presidiram minha formação. Teremos assim ciências sociais mais abrangentes, diversas e renovadas. O alargamento do cânone ajudará a estimular a “imaginação sociológica” de que nos fala C. Wright Mills, num texto de 1959: a “capacidade de mudar de uma perspectiva para outra, e, nesse processo, consolidar uma visão adequada de uma sociedade total e de seus componentes”.

    Sobre a imagem da capa:

    O desenho do artista uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949), conhecido como “América invertida”, representa um mapa invertido da América do Sul. Torres García viveu no exterior entre 1891 e 1934 – Barcelona, Nova York, Paris e Madri. De volta ao Uruguai, criou em 1935 a Asociación de Arte Constructivo e em 1936 a revista Circulo y Cuadrado, em cujo primeiro número aparece a representação invertida da América do Sul, aqui reproduzida.3 A versão que foi utilizada na capa, contudo, foi a de 1943, mais limpa de elementos, e que se tornou sua obra mais conhecida.
    Torres García não rejeita a tradição artística europeia, com a qual afirma termos muito a aprender. Rejeita, porém, a submissão a um único cânone artístico hegemônico e homogeneizante, a orientação a partir de uma única bússola. Defende a necessidade de termos perspectivas diferentes de nossa posição no mundo, e para tal incorpora e reinventa em sua arte a tradição indígena sul-americana.
    É esse o sentido que quis transmitir ao livro, indicando essa imagem para a capa. Que os textos e autores aqui reunidos nos ajudem a ver o mundo de uma maneira mais complexa e diversa – e, por isso mesmo, ecumênica.

     

    A coletânea traz os textos indicados a seguir, antecedidos pelas apresentações de suas autoras e seus autores:

    Como observar a moral e os costumes, de 1838, da inglesa Harriet Martineau, britânica e que o organizador considera a fundadora das ciências sociais;

    Hierarquização fictícia das raças humanas, de 1885, do haitiano Anténor Firmin; Infância, de 1887, da indiana Pandita Ramabai;

    Preconceito de cor, de 1899, do norte-americano e pioneiro da sociologia urbana W. E. B. Du Bois

    Autoridade e autonomia no casamento, de 1912, da alemã Marianne Weber; o escrito de 1916,

    Preconceitos sobre a raça indígena e sua história, do mexicano Manuel Gamio;

    Memórias de mulheres: transmitindo o passado, como ilustrado pela história do Bebê Diabo, de 1916, da americana e segunda mulher a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, Jane Addams;

    A gênese do nacional-socialismo: notas de análise social, texto de 1937, da austríaca Lucie Varga

    Contradições culturais e papéis sexuais, de 1946, da russa Mirra Komarovsky;

    Teoria e psicologia do ultranacionalismo, de 1946, do japonês Masao Maruyama;

    Uma aristocracia africana, do ano de 1947, da antropóloga sul-africana Hilda Kuper;

    Burguesia negra, de 1955, do americano E. F. Frazier;

    Nota sobre sanscritização e ocidentalização, de 1956, do indiano M. N. Srinivas;

    Ásia como método, de 1961, do japonês Yoshimi Takeuchi;

    Ocidentose: uma praga do Ocidente. Diagnosticando uma doença, de 1962, do iraniano Jalāl Āl-e Ah.mad;

    Relações centro-periferia: uma chave para a política turca?, do turco Şerif Mardin, do ano de 1973.

     

    Além do cânone: para ampliar e diversificar as ciências sociais | Organizador: Celso Castro

     

  • Postado por editora em em 03/02/2022 - 19:03

    Esta viagem guiada por Lucia Lippi trata das reformas urbanas de Barcelona, Viena, Paris e Londres explorando a relação entre reforma, preservação e diferentes vertentes de restauração. No caso do Brasil, explora o nacionalismo arquitetônico representado pelo estilo Neocolonial, que teve na Exposição Internacional no Centenário em 1922 seu apogeu. Faz um contraponto entre antigas e novas capitais tais como Belo Horizonte e Ouro Preto e Brasília e Rio de Janeiro do início do século XX e do XXI.

    Conheça a apresentação da obra, mas antes, confira duas indicações importantes registradas na orelha do livro:

    "A cidade é o maior artefato da cultura. E a cidade contemporânea é um fenômeno em dimensões tais que supera todas as experiências sociais precedentes". Sérgio Magalhães

    "Preservar não é tombar, renovar não é pôr tudo abaixo". Carlos Nelson Ferreira dos Santos

     

    O presente livro resulta de uma dupla paixão. Paixão por viagens e paixão pelas cidades do Velho e do Novo Mundo. E foi pensado como a oportunidade de interligar estes dois amores.
    Desde que organizei o seminário “Cidade: urbanismo, patrimônio e cidadania” em 2001, em que foram apresentadas contribuições de importantes especialistas sobre o tema publicadas no livro Cidade: história e desafios (2002), meu interesse pelo tema só tem aumentado. Logo a seguir tive a oportunidade de ser convidada por Américo Freire a participar de dois projetos de entrevistas. Foi quando pudemos ouvir e aprender muito com os depoimentos de arquitetos e urbanistas que atuaram e pesquisaram o campo do urbanismo no espaço da cidade do Rio de Janeiro. Tais entrevistas deram ocasião a dois livros: Memórias do urbanismo carioca (2002) e Novas memórias do urbanismo carioca (2008).
    Motivada por tudo isto, montei um curso intitulado “Cidade e Patrimônio” que tive a oportunidade de ministrar para três turmas do mestrado profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais, do mestrado acadêmico e do doutorado em História, Política e Bens Culturais no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV) em 2014, 2016 e 2018. Apresentar e discutir os temas sobre reforma urbana e patrimônio em sala de aula, selecionar em uma imensa bibliografia textos que possam nos ajudar a compreender o assunto, tentar transmitir às novas gerações tais paixões é igualmente estimulante. A orientação de dissertações e teses a respeito também apresenta desafios particulares.
    A pesquisa realizada para a elaboração do livro envolveu basicamente o levantamento, a leitura e a seleção de artigos, livros, teses que apresentam argumentos pertinentes ao tema de cada um dos capítulos do livro. Isto teve que ser feito em um universo bibliográfico enorme que se origina em múltiplos campos do saber — urbanismo, arquitetura, geografia, sociologia, antropologia, ciência política — e que cresce continuamente. Esta atividade contou com a ajuda de uma bolsa de produtividade do CNPq durante os anos de 2014 até 2018.
    Sei que há na academia certa “má vontade” com o que é considerado divulgação de um conhecimento. Por outro lado, é muito gratificante poder repassar para um público mais amplo as descobertas, as conexões que puderam ser feitas ao longo da leitura da enorme bibliografia que existe a respeito de cidade e que, como já mencionei, está sendo continuadamente alimentada. Assim, o livro está voltado para um público universitário e para todos os interessados na história as reformas urbanas de algumas cidades nos séculos XIX e XX e nos desafios
    e soluções atualmente em voga.
    Este é o livro que gostaria de ter lido quando comecei a me interessar intelectualmente sobre o tema. Já disse isto a propósito de um livro anterior, Cultura é patrimônio: um guia (2008), publicado com a mesma finalidade — divulgação de um saber.
    No mais, só tenho a agradecer aos alunos que foram os primeiros a tomar conhecimento dos temas e das questões apresentadas no curso e a responder aos desafios que a literatura sobre cidade apresenta ao leitor. E aos colegas e amigos que leram capítulos e, partilhando de paixão similar, deram sugestões a respeito.
    Entre eles quero mencionar Bernardo Buarque de Hollanda, Helena Bomeny e Lucia Klein que aceitaram ler e fazer comentários pertinentes às primeiras versões de alguns dos capítulos. Lucia Klein pôde atualizar inúmeras informações a respeito de muitas cidades que visitamos juntas. Acima de tudo, tenho que agradecer àqueles que pesquisaram, escreveram e publicaram sobre as cidades. Sem eles não teria sido possível fazer o que fiz, ou seja, eu não teria o que “traduzir”.
    Não foi nem é possível tratar de todas as transformações sofridas pelas cidades nos séculos XIX e XX. Tive que fazer escolhas entre aquelas que passaram por importantes reformas urbanas no século XIX. Escolhi algumas que a literatura já consagrou, como os casos de Barcelona, Viena e Paris. Tratei também o caso de Londres que seguiu trajetória particular. Simultâneo ao processo de reforma, se apresentou o dilema sobre o que preservar e o que destruir. Procurei apresentar também os diferentes modelos de restauração e suas conexões com a restauração praticada na Inglaterra e na França.
    Ao chegar às cidades brasileiras tive também que fazer escolhas. Tratei de Belo Horizonte e de Ouro Preto como verso e reverso da decisão de transferir a capital e de construir uma nova capital para o estado de Minas Gerais. Aproximei a reforma da Pampulha em Belo Horizonte à construção de Brasília, cidade do futuro que confrontei com o que aconteceu com o Rio de Janeiro nos anos seguintes à transferência da capital. E assim cheguei ao Rio de Janeiro, cidade que passou por extensa reforma no início do século XX e no início do XXI, quando teve sua zona portuária como objeto de renovação.
    Ouvi muitas vezes a demanda pela inclusão do caso do Recife. Não tenho conhecimento suficiente que permita me sentir segura a respeito. Também gostaria muito de ter incluído um capítulo sobre São Paulo; entretanto, a quantidade e a qualidade das pesquisas existentes a respeito desta cidade me desencorajaram.
    Ao procurar associar cidade e patrimônio, pude apresentar questões relacionadas com a história da constituição do campo do patrimônio no Brasil e pude destacar o neocolonial como primeira proposta de valorização do passado colonial.
    O desenho de cada capítulo foi pensado como um artigo com relativa autonomia, daí o livro poder ser lido em qualquer ordem. Pode-se ver que há alguns temas que estão presentes em um momento e que retornam em outros. Não é necessário ler o capítulo anterior para compreender o que está sendo apresentado a seguir.
    Se esta é a história acadêmica deste livro, há uma outra motivação que se relaciona com a minha vida. Nascida no interior do estado do Rio, cresci tendo um fascínio pela cidade grande mesmo avisada desde muito cedo sobre “os perigos da metrópole”.
    Visitei a praia de Copacabana pela primeira vez em 1954. Cheguei a pé atravessando o túnel Novo. Fiquei encantada. Visitei a Barra da Tijuca quando para se chegar lá era necessário subir pela estrada do Joá e lá do alto ver ao longe aquele imenso espaço de mar, de praia e de vazio, rasgado pela presença de umas barraquinhas onde se comprava milho cozido e caldo de cana.
    Vim morar no Rio nos anos 1960, quando a cidade não era mais a capital do país. Vivenciei os engarrafamentos derivados das imensas obras que o governo Lacerda realizava no estado da Guanabara. Assim pude compreender de perto o que diz a música: “Rio de Janeiro, cidade que me seduz/ De dia falta água, de noite falta luz”.
    Tive por longo tempo um encantamento por esta cidade intercalado por momentos de descrença diante do que vem acontecendo desde os anos 1990. 
    Posso dizer que, consciente e inconscientemente, o que estudei e li sobre cidades tem a ver com esta paixão originária pelo Rio.
    Por outro lado, nunca pude imaginar que escreveria sobre cidade em um momento em que estamos afastados da vida nas ruas da cidade! A quarentena que a Covid-19 me (nos) obrigou a enfrentar ficou menos pesada já que pude viajar virtualmente por cidades que visitei no passado ou pelas que ainda sonho visitar.
    O enfrentamento da pandemia que atingiu o mundo em 2020 se apresentou como uma experiência nova no mundo atual. Isto se contrapõe às demandas de mobilidade e de consagração da interação social nos espaços públicos enquanto arena fundamental da sociedade humana.
    O isolamento e o distanciamento social forçam as pessoas a trabalhar, a comprar, a estudar e a se divertir em casa. Alterações na vida cotidiana com o trabalho remoto virtual alterando ritmo e horário de trabalho, assim como a maior atenção aos hábitos sanitários incorporando o álcool gel e o lavar as mãos, isto só para mencionar experiências individuais no espaço do cotidiano.
    O uso da máscara também se apresenta como desafio já que a máscara esconde, desfigura o rosto. Seu uso positivo se contrapõe ao ditado “tire a máscara da face”. O rosto aparece, ou melhor, aparecia como lugar de reconhecimento mútuo permitindo a comunicação.
    A barreira ao fluxo de pessoas com a interrupção dos transportes e, consequentemente, do turismo despertou medos, preconceitos e paranoias. Por outro lado, também valorizou a produção, a agricultura e o comércio locais, assim como o fechamento da economia, das fronteiras, produzindo um certo tipo de desglobalização.
    Quando imaginava quais seriam as grandes questões do século XXI, eu pensava no lixo produzido pelo alto padrão de vida e na questão das novas migrações que atingem e ameaçam o mundo rico! Ainda que tais questões permaneçam, a pandemia criou outra ordem de problemas e de demandas.
    O vírus reduziu a circulação de automóveis, de aviões, de navios e, ao fazer isto, levou à diminuição da poluição ambiental, o que permitiu que animais, golfinhos e pássaros retomassem parte de seus espaços no planeta terra.
    Ou seja, estamos vivendo uma transmutação inimaginável!

     

    Cidade é patrimônio: uma viagem | Lúcia Lippi

     

  • Postado por editora em em 03/02/2022 - 18:46

    Este livro foi tema da redação da prova do Enem de 2021 e seráo assunto do bate-papo da autora, Fernanda da Escóssia, e a jornalista Cláudia Lamego, na Janela Livraria, sábado, dia 9/7/2022, às 16h.

    A obra apresenta histórias e lutas reais e muitas vezes comoventes de brasileiras e brasileiros que não têm documentos de registro de nascimento e, por isso, são impossibilitados de acessar serviços básicos do Estado por serem invisíveis.

    Confira a seguir parte da introdução da obra Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento, da jornalista Fernanda da Escóssia:

    Toda sexta-feira, o ônibus azul e branco estacionado no pátio da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, na região da Praça Onze de Junho, Centro do Rio, sacoleja com o entra e sai de gente a partir das 9h. Do lado de fora, nunca menos de 50 pessoas, todas pobres ou muito pobres, quase todas negras, cercam o veículo, perguntam, sentam e levantam, perguntam de novo e esperam sem reclamar o tempo que for preciso. Adultos, velhos e crianças estão ali para conseguir o que, no Brasil, é oficialmente reconhecido como o primeiro documento da vida — a certidão de nascimento.
    Resultado de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-registro de Nascimento e à Busca de Certidões (Sepec), o ônibus da Praça Onze é o coração de um trabalho realizado pelo TJRJ com a finalidade de reduzir o chamado sub-registro, a proporção de pessoas sem certidão de nascimento. É também o objeto deste livro, uma versão reduzida de minha tese de doutorado. Inspirada pela indagação de Peirano (2006) — de que serve um documento? —, analiso como o processo de obtenção da certidão de nascimento traz à tona concepções de direitos e cidadania expressadas pelas pessoas que procuram o serviço da Justiça Itinerante no Centro do Rio de Janeiro e problematizo de que forma, nesse processo, tais concepções vividas e relatadas por elas também se transformam.
    A fim de valorizar a experiência e as vivências das pessoas sem documento, construí metodologicamente a pesquisa como uma etnografia, com observação participante no ônibus da Praça Onze. Também no livro, optei por destacar as histórias e as respostas dessas pessoas às minhas perguntas. Como um adulto vive sem documentos numa sociedade documentada? Como se vê sem documentos? Que papel atribui ao registro de nascimento?
    “Quero o registro de nascimento para receber o Bolsa Família”, dizia um. “Quero o registro de nascimento para tirar a carteira de trabalho”, afirmava outro. “Quero dar entrada na aposentadoria”, esclarecia o terceiro. “Quero o registro para colocar meu filho na escola”, ressaltava o quarto. As respostas de quem chegava ao ônibus indicavam inicialmente que o registro de nascimento teria finalidade imediata, pois os entrevistados afirmavam que buscavam o documento para conseguir alguma coisa, muitas vezes outro documento (carteira de trabalho), acesso a políticas públicas e benefícios sociais (inclusão no Bolsa Família, aposentadoria) ou serviços (vaga em escola, atendimento médico).
    Etnografar o adulto sem documento é mergulhar no que Das e Poole (2004) categorizam como “margens do Estado”, práticas, lugares e linguagens em espaços que parecem estar nos limites do funcionamento regulamentado do Estado-nação. O desafio trazido pela reflexão de Das e Poole, e que tento incorporar a esta pesquisa, é refletir sobre que relações se desenrolam nessas margens, tradicionalmente percebidas como áreas nas quais o Estado parece não estar presente — mas está, ainda que de modo não regular nem regulamentado. E perceber que margens do Estado também constituem o que chamamos Estado, pois o Estado também se faz nas margens (Das e Poole, 2004). Outra reflexão necessária é sobre como tais margens, muitas vezes entendidas como áreas nas quais o Estado foi inábil para impor sua ordem e como lugares onde haveria apenas exclusão e desordem, reorganizam continuamente suas práticas e experiências, numa construção que não é monolítica, mas sim processual e dinâmica. Nas margens do Estado, a observação etnográfica dessas práticas e vivências mostra que exclusão e desordem convivem com resistência e pluralidade.
    A chegada das pessoas sem documento ao ônibus é um encontro, com agentes do Estado, de indivíduos que sempre viveram nas margens desse Estado. Quem não tem registro de nascimento não pode tirar nenhum outro documento, não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens em seu nome. Só consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas exigem documentação para matricular crianças. Durante a pesquisa de campo, pude observar uma dupla operação: (1) a reconstituição, pelas pessoas atendidas no ônibus da Praça Onze, de suas existências nas margens do Estado e (2) o encontro dessas pessoas com agentes do Estado e, mais do que isso, com a ideia que elas construíram de Estado, aqui representado pela Justiça Itinerante.
    A observação cotidiana do atendimento no ônibus foi me indicando que o registro de nascimento tinha finalidade imediata, mas não apenas isso. Os relatos permitiram inferir que, no processo de obtenção do documento, muitas das pessoas atendidas buscavam reconstruir a própria história e recuperar laços familiares, no processo que Schritzmeyer (2015) nomeia como recuperação dos “fios de suas vidas”. Elaborei então a hipótese de que, na busca pela documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de nascimento” se junta a outra, que remete a outra busca, agora por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história familiar. A busca pelo registro de nascimento, com os direitos que ele garante, é parte de um processo maior de construção da própria identidade.

    Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento | Fernanda da Escóssia

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