Elites parlamentares e a dupla arte de representar

A pesquisa apresentada na obra de Igor Gastal Grill e Eliana Tavares dos Reis, Elites parlamentares e a dupla arte de representar, tem como problemática mais ampla a existência de intersecções entre diferentes lógicas e domínios do mundo social. Tais intersecções vêm sendo examinadas como resultantes e viabilizadoras dos potenciais de afirmação e de trânsito de vários segmentos de “elites”. Agentes, portadores de determinadas características sociais e empreendedores em certas atividades, inseridos em configurações históricas nas quais as fronteiras são fluidas e porosas, contam com condições propícias à ocupação de posições relativamente bem situadas e ao acúmulo de multinotabilidades. Os autores dão ênfase particularmente a intercruzamentos entre “política” e “cultura”, explorando distintos universos empíricos, períodos históricos e níveis de análises.

Confira parte da introdução da obra:

No Brasil, há muitas discussões sobre as interferências da “política” no trabalho intelectual que, não raro, são posicionamentos que ora as percebem pela falta (assumindo o caráter reivindicatório de uma “missão histórica”), ora pelo excesso (expressando o cunho denunciativo de um lamento cientificista). Porém, algumas pesquisas recentes têm privilegiado abordagens mais sócio-históricas para considerar os períodos de menor ou maior (in)distinção entre os domínios e registros políticos e culturais. A ênfase, nesse caso, geralmente recai, em um plano, sobre os processos históricos e os condicionantes sociais de maior ou menor diversificação e autonomização (sempre relativa) entre eles, e, em outro plano, sobre as lógicas de seleção e de hierarquização dos seus agentes.
Esta última foi a trilha inicial seguida nas investigações que originaram os capítulos deste livro. No entanto, levando em conta que poucas são as pesquisas que têm aportado sobre a importância das inscrições culturais no trabalho político, invertemos o ponto de partida dominante. Isso se justifica pela constatação de que, não somente como estratégia de apropriação de produtos concebidos nos mundos culturais (literatura, ciência, filosofia, religião etc.), na luta pela conquista ou manutenção de posições relativamente bem alocadas no espaço público, a produção mesma de bens culturais e o reconhecimento como “intelectual” são dimensões significativas da própria atividade política e funcionam como trunfos de distinção contundentes.
Há uma extensa bibliografia produzida por cientistas sociais brasileiros nas últimas décadas sobre carreiras e perfis de políticos. Grosso modo, a literatura — a despeito das divergências entre os autores que adotam perspectivas mais societais, organizacionais, de caráter mais objetivista ou perspectivista — lança luzes sobre os padrões de institucionalização das organizações políticas brasileiras, as clivagens partidárias e o recrutamento do pessoal político. Para o que está em pauta nos textos que compõem esta coletânea, desejamos esclarecer a primordialidade da noção de carreira política para abarcar os desdobramentos das apostas feitas por agentes desde suas entradas na política, nos termos apresentados por Michel Offerlé (1996). Ou seja, procurando apreender as modificações nos princípios de aferição de excelência humana e sua reconversão em critérios de hierarquização política e intelectual, bem como as gramáticas que fixam complementaridades entre os domínios políticos e culturais em diferentes conjunturas.
Nesse caso, é importante realçar pelo menos quatro eixos analíticos, construídos ao longo das pesquisas realizadas, portanto, que estão na base das reflexões subsequentemente apresentadas. O primeiro se refere à verificação de um duplo e indissociável reconhecimento conquistado por agentes que se afirmam como porta-vozes de “causas” legítimas, contando com a notoriedade como “intelectual” e de estima por sua carreira política — sinalizando para as fronteiras fluidas, os princípios amalgamados, os perfis híbridos e os trânsitos possíveis de serem operados. O segundo diz respeito às modalidades de intersecção entre domínios políticos e domínios culturais orquestradas por agentes empenhados no trabalho de politização de bens culturais e de intelectualização das lógicas e práticas de intervenção política. O terceiro concerne mais diretamente às teorizações nativas acerca de regras, papéis e definições concorrentes nos jogos políticos e culturais, e que não raro deixam perceber a construção consagradora ou detratora de “etiquetas políticas”, de eventos e personagens, de códigos de conduta etc. E o último eixo trata do trabalho simbólico de autoapresentação e de administração de identidades estratégicas, levado a cabo por agentes com mandatos para gerir os bens políticos, com certificações para participar da disputa pela prescrição de princípios de visão e divisão do mundo social e dispostos a fabricar ou gerenciar imagens de si — conforme as posições ocupadas em determinados estágios das lutas políticas e culturais nas quais se encontram envolvidos.
Tais aspectos convergem na percepção de que, no espaço social mais amplo, o acesso a determinados conhecimentos e ao trabalho de formulação intelectual (em oposição ao mundo prático, não reflexivo, pragmático, ordinário) legitima posições de poder, sedimentando reputações distintivas em e entre diversos segmentos de grupos dominantes (jurídicos, midiáticos, religiosos, universitários etc.). Particularmente no universo político, a capacidade de uso da “palavra” escrita e oral, certificada na mobilização de recursos multifacetados que sustentam a força ilocucionária dos discursos (Bourdieu, 1996a), deve ser investigada como condição e condicionante das entradas e como trunfo contundente para a construção de carreiras políticas reconhecidas como singulares.

Elites parlamentares e a dupla arte de representar: Intersecções entre "política" e "cultura" no Brasil

Igor Gastal Grill e Eliana tavares dos Reis

R$35,00

Este conteúdo foi postado em 20/10/2016 - 08:46 categorizado como: sem categorias. Você pode deixar um comentário abaixo.

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