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  • Postado por editora em em 03/02/2022 - 18:37

    Este não pretende ser mais um livro sobre relações raciais, lutas indígenas ou o movimento de consciência negra no Brasil; sua preocupação é fundamentalmente com a forma como cada uma dessas questões se inter-relaciona com - e pode até reformular - a lei e seus efeitos sobre a vida de pessoas como as que habitam as margens do rio São Francisco no Mocambo e a ilha de São Pedro.

    Confira o prefácio da obra Tornar-se negro ou índio: a legalização das identidades no Nordeste brasileiro de Jan Hoffman French:

     

    No sertão nordestino assolado pela pobreza, grupos de camponeses têm sido reconhecidos como tribos indígenas ou descendentes de antigas comunidades de quilombo pelo governo brasileiro desde a década de 1970. Neste livro, explico como dois desses grupos, vizinhos e aparentados, passaram a se autoidentificar como distintos do ponto de vista etnorracial e recorreram a leis federais diferentes em sua luta por reconhecimento e terra. Fui apresentada à área que se tornaria meu campo de pesquisa pelo Centro Dom José Brandão de Castro, organização não governamental que se vinculara à Igreja Católica há poucos anos. Sabendo de meu interesse por índios afrodescendentes nos Estados Unidos, um amigo brasileiro havia mencionado que conhecia alguns “negros” em Sergipe que havia recebido cartões da Funai, agência de proteção ao índio brasileira, que os identificava como membros da tribo indígena dos Xocó1. Quando esse amigo me colocou em contato com a equipe do Centro e expressei meu interesse em saber mais sobre os Xocó, explicaram-me que a maior parte de seu trabalho estava naquele momento sendo realizado no povoado vizinho, Mocambo. A maior parte dos moradores do Mocambo, dos quais a maioria tinha parentes entre os Xocó, era de trabalhadores rurais; eles haviam sido reconhecidos como uma comunidade de remanescentes de quilombo pelo governo brasileiro no ano anterior (1997) com base no art. 68 da Constituição de 1988, primeira constituição democrática desde a tomada do poder pelo regime militar em 1964. Assim, criaram-se as condições para uma situação inimaginável pelos padrões norte-americanos: duas comunidades vizinhas e aparentadas, cujos destinos estiveram completamente imbricados durante gerações, estavam agora separadas do ponto de vista da etnicidade, da raça, da política e da terra. Cada comunidade foi reconhecida por um órgão do governo federal distinto; uma é considerada índia e a outra, negra, embora todos descendam de africanos, índios e europeus.

    Intrigada por essa configuração etnorracial e demográfica, viajei pela primeira vez a Sergipe em maio de 19982. Ao chegar ao aeroporto de uma única pista na capital de Sergipe, Aracaju, a primeira coisa que notei foi um mural de azulejos amarelos na área de restituição de bagagens. Ele retratava um grupo de índios dançando com lanças, saiotes de pena, cabelos compridos e padrões geométricos pintados sobre a pele3. Com base em pesquisa prévia, eu já sabia que o mural não era representativo dos habitantes da área, embora isso fosse parte importante do discurso sobre o legado e a história de Sergipe. Fui levada às pressas pela equipe do Centro para uma reunião envolvendo moradores do Mocambo, membros de outras comunidades negras rurais, um antropólogo brasileiro e membros da equipe de uma organização local do movimento de consciência negra. Sentada no chão com os líderes da comunidade, jovens e velhos, mulheres e homens, fui apresentada ao primeiro quilombo a obter reconhecimento pelo governo federal em Sergipe. Assisti-os desenhar mapas da organização espacial de seu povoado e fui informada sobre os trabalhos disponíveis, a terra e os serviços de que necessitavam. Alguns dias mais tarde, tomei um ônibus e viajei por estradas esburacadas até chegar ao interior do estado, onde estabeleceria contato com uma aldeia e 

    um povoado localizados às margens do rio São Francisco: Mocambo, o quilombo reconhecido, e a ilha de São Pedro, onde viviam os Xocó. Durante essa primeira viagem de ônibus de quatro horas, minha mente foi tomada por todas as imagens que eu vira, a música que ouvira e as histórias que lera sobre o Nordeste e seu rústico sertão semiárido. Observei como a paisagem mudava: dos campos verdes para as vastas extensões de terra empoeirada salpicada de vacas, das palmeiras para os cactos.

    Ao longo dos anos que se seguiram a minha primeira visita, realizei amplas pesquisas etnográficas, históricas e legais tendo essas duas comunidades como foco. Aprendi sobre direito, raça, etnicidade, política e relações socioeconômicas no Brasil. Além da observação participante, realizei mais de uma centena de entrevistas (50 das quais foram gravadas e transcritas) com moradores, antigos proprietários de terra, advogados, antropólogos, ativistas, políticos e autoridades governamentais; analisei processos judiciais atuais e históricos; e realizei pesquisa documental em tribunais, junto ao governo, sobre a Igreja Católica, em jornais e arquivos pessoais. Contudo, uma metodologia é mais do que a mera forma como os dados são reunidos. Ela envolve a análise e revisão constante do entendimento que se tem sobre as pessoas e os lugares experienciados. Nesse caso, minha abordagem analítica permitiu-me desenvolver um modelo teórico com base em cada interação, em cada fração de conhecimento obtida. Esse modelo, que denominei “legalização das identidades”, explica a inter-relação entre práticas culturais, disposições legais e formação identitária.

    Conforme realizava a pesquisa, descobri que no início da década de 1970 um grupo de trabalhadores rurais de ascendência mista – africana, indígena, portuguesa e holandesa – que vivia às margens do rio São Francisco havia procurado obter direitos sobre a terra e proteção contra os proprietários de terra locais, de lendária violência. Essa reivindicação de direitos foi facilitada pela chegada de um padre franciscano, o qual, incentivado por seu bispo, falou às pessoas sobre a potencial importância de sua ascendência indígena. Em 1973, a recém-articulada reivindicação de identidade indígena por parte dessas pessoas foi facilitada pela promulgação de uma nova lei nacional para reger os povos indígenas e seus direitos. Explico nesta obra como essa lei abriu inadvertidamente as portas para o reconhecimento de muitos grupos pelo governo no Nordeste, os quais eram antes considerados completamente assimilados pela sociedade dominante. A despeito do ceticismo local nos primeiros anos de luta, essas pessoas, que passaram a se chamar Xocó, obtiveram o reconhecimento oficial como tribo em 1979 e direito total à terra em 1991. Os Xocó são o único grupo indígena oficialmente reconhecido no Sergipe e a única comunidade a reivindicar a identidade indígena. O reconhecimento foi a culminância de encontros com proprietários de terra, policiais, juízes e advogados, e da ocupação ilegal da ilha de São Pedro. Este livro conta sua história.

    Mais de duas décadas após o início da luta por reconhecimento xocó, os moradores do povoado ribeirinho vizinho do Mocambo, geralmente referidos como os “negros do Mocambo”, foram reconhecidos pelo governo como comunidade remanescente de quilombo. O reconhecimento foi acompanhado de uma mudança de atitude em relação a sua identidade como comunidade negra, bem como da propriedade da terra em que haviam trabalhado durante gerações. Isso se deu com base no art. 68, incluído na Constituição de 1988 em resposta à pressão por parte dos representantes do movimento negro e como desejo de lidar com o pluralismo na sociedade brasileira em um momento em que a ideologia nacional da democracia racial estava sendo cada vez mais posta em xeque. Esta obra explica e analisa o tortuoso caminho de revisão identitária percorrido pelos moradores do Mocambo.

    Antes do advento da primeira das lutas, os indivíduos da área se identificavam como meeiros dos proprietários de terra para os quais trabalhavam e a cujos interesses serviam, em um sistema tradicional de clientelismo. As duas lutas, que obtiveram o auxílio de gerações 

    sucessivas de partidários da teologia da libertação católica (padres, bispos, freiras e clero secular), resultaram em uma revisão drástica da identificação etnorracial e política coletiva de cada comunidade, bem como da dinâmica do poder político na região. Os paralelos entre as duas gerações de agentes pastorais inspiradas pela teologia da libertação ficarão evidentes no decorrer da narrativa sobre as lutas do Xocó e do Mocambo. As histórias são diferentes em parte porque a luta xocó ocorreu durante a ditadura militar com uma igreja forte, orientada pela teologia da libertação, ao passo que a comunidade do Mocambo travou sua luta em um ambiente democrático, com uma hierarquia eclesiástica que procurava se afastar de seu legado progressista. Conforme o país se democratizava, as pessoas de cor em todo o mundo remoldavam e afirmavam suas respectivas identidades para obter terra, recursos e poder. No próprio Brasil tivera início um diálogo nacional sério sobre raça e cor. Essas mudanças refletem na vida dessas pessoas, as quais escolheram um modo de luta e sobrevivência que transformou sua identidade etnorracial e levou a reconfigurações de suas práticas culturais.

    Os membros das comunidades do Xocó e do Mocambo partilham relações de parentesco e uma história comum como sertanejos e vaqueiros. Eles sempre estiveram profundamente envolvidos uns na vida dos outros, e essa relação prosseguiu a despeito de terem revisado e recontado novas e velhas histórias de luta. Em outras palavras, pessoas que não se distinguiam de outros camponeses sertanejos tiveram sucesso ao reivindicar uma identidade indígena ou quilombola, obtendo o reconhecimento do governo e o direito à terra e deslocando os proprietários de terra da elite. Isso ocorreu a despeito de os antropólogos que avaliaram a validade de suas reivindicações reconhecerem que as identidades etnorraciais afirmadas eram “construídas”, o que demonstra que a “autenticidade” não é um requisito da identidade por definição. Em uma reviravolta incomum, a noção de que raça e etnicidade são construções sociais reforçou, e não solapou, as reivindicações de diferença do Xocó e do Mocambo (ver Clifford, 1988).

    Por meio dos esforços governamentais em prol das comunidades indígenas e negras rurais, o Estado assumiu inadvertidamente o papel de instigador, se não de criador, de novas identidades indígenas e quilombolas. Admiti-lo não atrapalhou o andamento dos reconhecimentos e da redistribuição de terra. A autoidentificação como índio ou quilombola alimenta-se de narrativas históricas imbricadas com a solidariedade social forjada nas lutas recentes por reconhecimento e terra. Entretanto, o sucesso dessas lutas depende de leis que foram promulgadas para reconhecer – mas obtiveram sucesso em criar – minorias etnorraciais dotadas de direitos. As fronteiras desse processo foram moldadas pelas crescentes divisões políticas e diferenças culturais entre os índios xocó e os quilombolas do Mocambo, que se estabeleceram conforme cada grupo procurava afirmar sua unidade interna. Embora relações familiares e uma história comum conectem as duas comunidades, as especificidades da luta pela terra de cada grupo e as expectativas associadas a ser índio ou negro levaram-nas a se distinguir. Hoje as pessoas dessas duas comunidadies se veem como diferentes, mas relacionadas. A diferenciação é mantida principalmente por corpos de leis distintos, instituições governamentais diversas, diferenças políticas, competição por recursos e desentendimentos familiares.

    As lutas sucessivas das comunidades do Xocó e do Mocambo são ideais para se considerar como essa diferenciação opera tanto na realidade quanto nas práticas discursivas e culturais das pessoas que assumiram e viveram essas novas identidades – em outras palavras, como a legalização das identidades opera para modificar sua experiência vivida. No Brasil, que aboliu a escravidão somente em 1888, camponeses descendentes de africanos e indígenas mantiveram relações próximas durante séculos. Foi apenas com a aprovação e aplicação das leis que essas descendências começaram a se desintrincar, por vezes com consequências imbricadas. Como demonstro nesta obra, a 

    da identificação etnorracial e política coletiva de cada comunidade, bem como da dinâmica do poder político na região. Os paralelos entre as duas gerações de agentes pastorais inspiradas pela teologia da libertação ficarão evidentes no decorrer da narrativa sobre as lutas do Xocó e do Mocambo. As histórias são diferentes em parte porque a luta xocó ocorreu durante a ditadura militar com uma igreja forte, orientada pela teologia da libertação, ao passo que a comunidade do Mocambo travou sua luta em um ambiente democrático, com uma hierarquia eclesiástica que procurava se afastar de seu legado progressista. Conforme o país se democratizava, as pessoas de cor em todo o mundo remoldavam e afirmavam suas respectivas identidades para obter terra, recursos e poder. No próprio Brasil tivera início um diálogo nacional sério sobre raça e cor. Essas mudanças refletem na vida dessas pessoas, as quais escolheram um modo de luta e sobrevivência que transformou sua identidade etnorracial e levou a reconfigurações de suas práticas culturais.

    Os membros das comunidades do Xocó e do Mocambo partilham relações de parentesco e uma história comum como sertanejos e vaqueiros. Eles sempre estiveram profundamente envolvidos uns na vida dos outros, e essa relação prosseguiu a despeito de terem revisado e recontado novas e velhas histórias de luta. Em outras palavras, pessoas que não se distinguiam de outros camponeses sertanejos tiveram sucesso ao reivindicar uma identidade indígena ou quilombola, obtendo o reconhecimento do governo e o direito à terra e deslocando os proprietários de terra da elite. Isso ocorreu a despeito de os antropólogos que avaliaram a validade de suas reivindicações reconhecerem que as identidades etnorraciais afirmadas eram “construídas”, o que demonstra que a “autenticidade” não é um requisito da identidade por definição. Em uma reviravolta incomum, a noção de que raça e etnicidade são construções sociais reforçou, e não solapou, as reivindicações de diferença do Xocó e do Mocambo (ver Clifford, 1988).

    Por meio dos esforços governamentais em prol das comunidades indígenas e negras rurais, o Estado assumiu inadvertidamente o papel de instigador, se não de criador, de novas identidades indígenas e quilombolas. Admiti-lo não atrapalhou o andamento dos reconhecimentos e da redistribuição de terra. A autoidentificação como índio ou quilombola alimenta-se de narrativas históricas imbricadas com a solidariedade social forjada nas lutas recentes por reconhecimento e terra. Entretanto, o sucesso dessas lutas depende de leis que foram promulgadas para reconhecer – mas obtiveram sucesso em criar – minorias etnorraciais dotadas de direitos. As fronteiras desse processo foram moldadas pelas crescentes divisões políticas e diferenças culturais entre os índios xocó e os quilombolas do Mocambo, que se estabeleceram conforme cada grupo procurava afirmar sua unidade interna. Embora relações familiares e uma história comum conectem as duas comunidades, as especificidades da luta pela terra de cada grupo e as expectativas associadas a ser índio ou negro levaram-nas a se distinguir. Hoje as pessoas dessas duas comunidadies se veem como diferentes, mas relacionadas. A diferenciação é mantida principalmente por corpos de leis distintos, instituições governamentais diversas, diferenças políticas, competição por recursos e desentendimentos familiares.

    As lutas sucessivas das comunidades do Xocó e do Mocambo são ideais para se considerar como essa diferenciação opera tanto na realidade quanto nas práticas discursivas e culturais das pessoas que assumiram e viveram essas novas identidades – em outras palavras, como a legalização das identidades opera para modificar sua experiência vivida. No Brasil, que aboliu a escravidão somente em 1888, camponeses descendentes de africanos e indígenas mantiveram relações próximas durante séculos. Foi apenas com a aprovação e aplicação das leis que essas descendências começaram a se desintrincar, por vezes com consequências imbricadas. Como demonstro nesta obra, a busca por justiça social envolve conflitos interpessoais, inimizades e alianças cambiantes, invenções e reinterpretações, além de contingências históricas.

    As histórias aqui contadas e analisadas lançam luz sobre como pessoas que habitam um local relativamente isolado foram atores e criadores dessas histórias. Contudo, não se trata aqui apenas de histórias que revelam a lógica da transformação identitária em um contexto local. Mais do que isso, este livro investiga uma série de fenômenos que estão transformando o Brasil e o hemisfério ocidental. O continente americano foi assolado por movimentos por reconhecimento etnorracial e justiça redistributiva, muitos dos quais tiveram início na década de 1970. Os exemplos e explicações apresentados nesta obra elucidam um processo em curso em muitas partes do mundo em termos das relações entre direito, raça/etnicidade, desigualdade econômica e práticas culturais. Trata-se, portanto, não só de direito, identidade, direitos à terra e movimentos sociais, mas também da transformação da vida das pessoas e dos efeitos, ao longo de gerações, das mudanças de perspectivas ideológicas e do engajamento com novas leis. Conforme o reconhecimento da diferença cultural afirmada e a distribuição de terra e recursos adquirem proeminência na agenda de muitas nações no hemisfério ocidental como resultado de pressões vindas de cima e de baixo, a lógica dos direitos sobre a propriedade também se transforma. Por meio de uma nova conceitualização da “legalização das identidades”, podemos começar a compreender os processos colocados em movimento como parte da reação mundial à Guerra do Vietnã, à derrota dos Estados Unidos nessa guerra, à afirmação de direitos civis no primeiro mundo, aos regimes militares seguidos de redemocratização na América Latina, ao sucesso das lutas anticoloniais no terceiro mundo e à globalização de direitos. Conforme as demandas pela distribuição equitativa de terra e recursos ganharam força, elas passaram a ser refratadas através do prisma do reconhecimento identitário de índios e negros; assim surgiu uma nova forma de empoderamento, a partir da qual as pessoas passaram a ter voz sobre sua própria vida. O objetivo desta obra é compreender as fontes e os efeitos dessas lutas, seus sucessos e fracassos.

    Tornar-se negro ou índio: a legalização das identidades no Nordeste brasileiro | Jan Hoffman French

  • Postado por editora em em 20/10/2021 - 12:06

    Em ‘O cavalo de troia digital: a quarta revolução industrial’, publicada pela FGV Editora, o professor Luiz Roberto Nascimento Silva analisa as principais revoluções industriais e seus impactos na geração de empregos. Nesta obra ele descreve as ideias vivas de dois dos maiores economistas já mortos; expõe que com a pandemia o mapa da pobreza no país precisa ser refeito; afirma que mesmo passada a crise de saúde o mundo não será o mesmo, e que o desemprego gerado pela revolução digital obrigará o Brasil e os demais países a terem programas de transferência de renda de maneira permanente.

    Confira a seguir a introdução da obra:

    Estamos como estiveram os troianos ao receber o cavalo de Troia dos gregos. Aceitaram felicíssimos aquele presente maravilhoso que chegou de forma gratuita e graciosa. O enorme cavalo de madeira foi entendido pelos troianos como um signo de vitória e assim foi carregado para dentro das muralhas fortificadas. À noite, os soldados inimigos saíram do cavalo, dominaram as sentinelas e abriram os portões permitindo a entrada do Exército grego, levando a cidade à derrota e à ruína.
    A história da guerra foi contada primeiro na Ilíada, de Homero, ainda que sem referência específica ao episódio do cavalo, e depois na Odisseia, em que aparece brevemente numa passagem pequena. Vários escritores depois ampliaram e detalharam a guerra e a artimanha. O cavalo é geralmente entendido como uma criação literária, ainda que vários estudiosos acreditem que possa ter existido ao menos como uma máquina de guerra transfigurada ao longo do tempo pelos cronistas.
    Do ponto de vista documental, os dois poemas, fundadores da literatura ocidental com seus mais de 27.000 versos, não são propriamente um relato da Guerra de Troia porque Homero teria vivido no século VIII a.C. e a guerra em questão se deu no século XIII a.C. Homero não foi testemunha dos combates na planície de Troia, nem pôde ouvir testemunhos de seus combatentes.
    Homero era um aedo, um portador da palavra poética que declamava esses versos em cantos que reconstituíam aos ouvintes os acontecimentos originais numa perspectiva diversa da que se tem hoje de um escritor. Ambos os poemas só vieram a ser fixados na linguagem escrita muitos anos depois, pois no período em que foram encenados e declamados a escrita não era ainda usada no mundo grego.

    De qualquer forma, o episódio da Guerra de Troia e o estratagema do cavalo permaneceram como símbolos contínuos e populares na literatura, cinema e teatro. Diversas expressões idiomáticas se formaram em torno do episódio, fazendo com que “cavalo de Troia” significasse um engodo destrutivo, “presente de grego” como alguma coisa que é recebida de forma agradável, mas que acarreta péssimas consequências. Serve também para designar um potente e conhecido malware que é a expressão para software malicioso usado por hackers ou criminosos para obter acesso aos sistemas dos usuários, roubando seus dados confidenciais e assim desviando recursos da vítima, danificando depois seus computadores. Normalmente ele vem disfarçado de um software legítimo; por isso é tão perigoso.
    Por isso, recorri a essa alegoria enraizada na nossa cultura para debater uma situação em tudo semelhante ao que vem ocorrendo com o mundo agora. Aceitamos de bom grado, felizes, a internet em nossas vidas. Ela nos chegou também gratuitamente, uma vez que o físico Tim Berners-Lee, em 1989, quando a criou, não a patenteou, permitindo que pudesse ser utilizada sem custos financeiros pelos futuros usuários. Nos primeiros anos, a internet e a revolução digital trouxeram avanços inegáveis largamente superiores aos problemas que depois geraram. Abaixamos a guarda e fomos sendo seduzidos pelas facilidades e comodidades que a digitalização e a internet nos traziam e quando acordamos estava tudo ocupado. Tornamo-nos prisioneiros de nossa própria esperteza. Estávamos escravizados como os dependentes químicos. Tínhamos perdido a guerra, perdido a linha divisória, a fronteira que preservava nossa intimidade e estávamos condenados a servir a esse novo senhor.
    Nessa nova ordem mundial, a destruição de empregos formais na economia é superior à criação de novos no setor de tecnologia e computação. O crescimento das empresas tem se feito pela maior digitalização de suas cadeias produtivas, acarretando redução de funcionários. O setor musical foi devastado em sua formação anterior. Os jornais sentem diariamente os efeitos dela. O mercado de livros não sabe como irá se redesenhar. O ganho inequívoco de eficiência se fez pelo desemprego maciço de mão de obra em inúmeros setores.
    O mundo virtual criou um universo fraturado, imediato, instantâneo. Como observa Jean Baudrillard: existe uma espécie de metabolismo diabólico do sistema que, ao fractalizar tudo, procedeu à integração de toda dimensão crítica, irônica, contraditória. Tudo está on-line; ora nada pode ser contraposto a um acontecimento on-line.

    Hoje está tudo dominado. Todo o sistema bancário depende integralmente da informática. O Poder Judiciário funciona crescentemente por meio da rede. A Secretaria da Receita Federal trabalha apenas pela internet e não existem mais declarações de tributos federais que não sejam informatizadas. O sistema de reservas de passagens e de hotelaria é feito pela rede. Todas as operações das bolsas de valores são feitas em tempo real, eletronicamente. O percentual do comércio interno e internacional que é feito pela internet aumenta continuamente.
    Não é só isso. Nenhum ramo do conhecimento ficou indiferente a essa revolução. O que se avançou na área médica é incomensurável, tanto na parte preventiva, como na própria pesquisa e no avanço na execução de cirurgias. Na arquitetura, urbanismo e paisagismo o uso do computador é uma constante. No direito, na economia, enfim em todos os campos do conhecimento a informação é mais rápida, universal e gratuita.
    Além dos impactos que já abordamos, a internet acabou por intervir na forma de fazer política. A eleição da Barack Obama só se tornou possível pela estruturação de sua campanha nas redes sociais, o que assegurou a ele votos e recursos financeiros, primeiro para vencer a senadora Hillary Clinton na indicação do partido democrata e depois a própria eleição presidencial.

    Movimentos sociais de massa como a “Primavera Árabe” inundando a praça Thair e todos outros que ocorreram na Espanha, Portugal, Suécia, Grã-Bretanha e no Brasil só foram possíveis pela velocidade e surpresa que a internet proporciona por meio das redes sociais. Entretanto pouco depois a internet passou a ser amplamente utilizada na eleição de uma série de políticos autoritários com o exercício de um discurso de antagonismo permanente capaz de ganhar uma eleição, mas incapaz de unir um país. Após a eleição, frequentemente eles continuam a conduzir seus países como se estivessem em campanha e houvesse sempre um inimigo a ser combatido.

    A internet alterou completamente a política. As estruturas anteriores dos partidos políticos terão de ser repensadas. Toda a democracia direta, construída em plenários de sindicatos e de partidos, conselhos deliberativos, associações de moradores, está perdendo força e expressão. Passamos de um estágio de sociedade civil organizada para outro de sociedade civil mobilizada. Como as redes sociais são horizontais, elas retiraram parte da hierarquia que presidiu o processo político durante muitos longos anos.
    As novas tecnologias de comunicação estão afetando e transformando o processo cognitivo do cérebro humano. O conhecimento estruturou-se pela linearidade e vem sendo substituído pela reticularidade, que é a disposição em rede das matérias. Os jornais na internet são lidos em colunas e não mais de maneira linear como ocorria na sua plataforma papel. O leitor não se fixa mais na ordem cronológica das colunas e da própria organização que o veículo estruturou para o grande público. Ele salta, alterna, modifica o processo de leitura da mesma forma que o controle remoto permitiu o zapeamento dos canais de televisão. Nada obedece a ordem antes estabelecida. À medida que o próprio cérebro humano vem sendo alterado e modificado, habilidades e horizontes vão sendo demarcados de forma inteiramente distinta. Um novo mapeamento está sendo descoberto e nele algumas fronteiras estão sendo descobertas e antigas fronteiras estão sendo esquecidas. Estamos formando – mesmo sem o saber – uma nova cartografia.
    A revolução digital é irreversível. Não haverá vida nem civilização sem ela. Ao contrário das revoluções econômicas anteriores, essa está claramente reduzindo vagas de trabalho, por meio de um abrupto e não uniforme aumento da produtividade de alguns, gerando mais desemprego mesmo que, em alguns setores, com aumento de produção. O combate e a resistência deverão ser feitos dentro desse ambiente digital, pois nações que não se conectarem rapidamente aumentarão o fosso de distanciamento em relação às nações com conectividade plena. A discussão terá que ser on-line.

    Sabemos todos que uma revolução dessa proporção não terá retorno. Não temos caminho de volta. Isso, no entanto, não nos impede de formular ideias e dividir informações sobre o que vem ocorrendo. Um dos objetivos deste ensaio é permitir que, com maior reflexão e informação sobre o que vem ocorrendo, cada cidadão individualmente possa reconstruir parte de sua geografia pessoal, que foi invadida com sua autorização à semelhança dos troianos quando autorizaram a entrada daquele cavalo em sua cidade.
     

    O cavalo de troia digital: a quarta revolução industrial

    Luiz Roberto Nascimento Silva

     

  • Postado por editora em em 20/10/2021 - 11:45

    "Uma mulher que precisa de cirurgia para tratar um câncer, mas foi rejeitada nos hospitais por não ter documentos. Outra que, à procura de sua certidão de nascimento, encontra a irmã de quem fora separada havia mais de vinte anos. Histórias assim emergem desta etnografia ao mesmo tempo avassaladora e delicada, que mergulha no cotidiano de exclusão de brasileiros indocumentados, ilegíveis pelo Estado, invisíveis em seu próprio país. O livro narra como a certidão de nascimento se torna um passo imprescindível no longo caminho da cidadania."

    Em Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento, a jornalista e professora universitária Fernanda da Escóssia apresenta o resultado de sua tese de doutorado sobre as trajetórias de brasileiros adultos sem certidão de nascimento. Durante dois anos, a autora mergulhou no cotidiano de um serviço público e gratuito de emissão de certidões instalado num ônibus na Praça Onze, no Centro do Rio de Janeiro.

    Confira um trecho da introdução da obra:

    Toda sexta-feira, o ônibus azul e branco estacionado no pátio da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, na região da Praça Onze de Junho, Centro do Rio, sacoleja com o entra e sai de gente a partir das 9h. Do lado de fora, nunca menos de 50 pessoas, todas pobres ou muito pobres, quase todas negras, cercam o veículo, perguntam, sentam e levantam, perguntam de novo e esperam sem reclamar o tempo que for preciso. Adultos, velhos e crianças estão ali para conseguir o que, no Brasil, é oficialmente reconhecido como o primeiro documento da vida — a certidão de nascimento.
    Resultado de uma parceria entre dois projetos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), a Justiça Itinerante e o Serviço de Promoção à Erradicação do Sub-registro de Nascimento e à Busca de Certidões (Sepec), o ônibus da Praça Onze é o coração de um trabalho realizado pelo TJRJ com a finalidade de reduzir o chamado sub-registro, a proporção de pessoas sem certidão de nascimento. É também o objeto deste livro, uma versão reduzida de minha tese de doutorado. Inspirada pela indagação de Peirano (2006) — de que serve um documento? —, analiso como o processo de obtenção da certidão de nascimento traz à tona concepções de direitos e cidadania expressadas pelas pessoas que procuram o serviço da Justiça Itinerante no Centro do Rio de Janeiro e problematizo de que forma, nesse processo, tais concepções vividas e relatadas por elas também se transformam.
    A fim de valorizar a experiência e as vivências das pessoas sem documento, construí metodologicamente a pesquisa como uma etnografia, com observação participante no ônibus da Praça Onze. Também no livro, optei por destacar as histórias e as respostas dessas pessoas às minhas perguntas. Como um adulto vive sem documentos numa sociedade documentada? Como se vê sem documentos? Que papel atribui ao registro de nascimento?
    “Quero o registro de nascimento para receber o Bolsa Família”, dizia um. “Quero o registro de nascimento para tirar a carteira de trabalho”, afirmava outro. “Quero dar entrada na aposentadoria”, esclarecia o terceiro. “Quero o registro para colocar meu filho na escola”, ressaltava o quarto. As respostas de quem chegava ao ônibus indicavam inicialmente que o registro de nascimento teria finalidade imediata, pois os entrevistados afirmavam que buscavam o documento para conseguir alguma coisa, muitas vezes outro documento (carteira de trabalho), acesso a políticas públicas e benefícios sociais (inclusão no Bolsa Família, aposentadoria) ou serviços (vaga em escola, atendimento médico).
    Etnografar o adulto sem documento é mergulhar no que Das e Poole (2004) categorizam como “margens do Estado”, práticas, lugares e linguagens em espaços que parecem estar nos limites do funcionamento regulamentado do Estado-nação. O desafio trazido pela reflexão de Das e Poole, e que tento incorporar a esta pesquisa, é refletir sobre que relações se desenrolam nessas margens, tradicionalmente percebidas como áreas nas quais o Estado parece não estar presente — mas está, ainda que de modo não regular nem regulamentado. E perceber que margens do Estado também constituem o que chamamos Estado, pois o Estado também se faz nas margens (Das e Poole, 2004). Outra reflexão necessária é sobre como tais margens, muitas vezes entendidas como áreas nas quais o Estado foi inábil para impor sua ordem e como lugares onde haveria apenas exclusão e desordem, reorganizam continuamente suas práticas e experiências, numa construção que não é monolítica, mas sim processual e dinâmica. Nas margens do Estado, a observação etnográfica dessas práticas e vivências mostra que exclusão e desordem convivem com resistência e pluralidade.
    A chegada das pessoas sem documento ao ônibus é um encontro, com agentes do Estado, de indivíduos que sempre viveram nas margens desse Estado. Quem não tem registro de nascimento não pode tirar nenhum outro documento, não vota, não tem emprego formal, conta em banco ou bens em seu nome. Só consegue atendimento médico de emergência e não pode ser incluído em políticas sociais. O acesso à educação é limitado, pois as escolas exigem documentação para matricular crianças. Durante a pesquisa de campo, pude observar uma dupla operação: (1) a reconstituição, pelas pessoas atendidas no ônibus da Praça Onze, de suas existências nas margens do Estado e (2) o encontro dessas pessoas com agentes do Estado e, mais do que isso, com a ideia que elas construíram de Estado, aqui representado pela Justiça Itinerante.
    A observação cotidiana do atendimento no ônibus foi me indicando que o registro de nascimento tinha finalidade imediata, mas não apenas isso. Os relatos permitiram inferir que, no processo de obtenção do documento, muitas das pessoas atendidas buscavam reconstruir a própria história e recuperar laços familiares, no processo que Schritzmeyer (2015) nomeia como recuperação dos “fios de suas vidas”. Elaborei então a hipótese de que, na busca pela documentação, a dimensão imediata e inegável de “para que serve o registro de nascimento” se junta a outra, que remete a outra busca, agora por direitos, acesso à cidadania e recuperação da própria história familiar. A busca pelo registro de nascimento, com os direitos que ele garante, é parte de um processo maior de construção da própria identidade.

    Documentação, controle e cidadania

    O Estado-sistema, tal como definido por Abrams (2006), tem entre suas práticas fundamentais a identificação de pessoas, e registrar os indivíduos foi uma atividade constitutiva da formação dos Estados nacionais (Bourdieu, 2011). A prática hoje corriqueira de registrar e contar pessoas sofreu diversas transformações ao longo do tempo. Nas sociedades antigas, segundo DaMatta (2002), os censos populacionais e de animais domésticos serviam como instrumento de cobrança de impostos, de controle da produção, dos movimentos da população e da identificação de pessoas potencialmente perigosas. Brasileiro (2008) relata que, pelo menos dois séculos antes de Cristo, havia um sistema de registro civil na China, e os antigos incas tinham um método de anotações de nascimentos e óbitos.
    A Igreja Católica também tinha o hábito de manter registros eclesiásticos sobre batizados de seus fiéis, passando posteriormente a fazer o mesmo quanto a casamentos e óbitos (Makrakis, 2000). No século XVI, o Concílio de Trento tornou obrigatória a prática já corrente na Igreja Católica de fazer e conservar registros paroquiais com dados sobre batismos, nascimentos e casamentos (Almeida, 1966). Álvaro Júdice (1927), oficial do registro civil de Portugal, historia como, em paralelo aos registros eclesiásticos, o registro civil laico vai sendo introduzido lentamente, extinguindo-se o caráter eminentemente religioso e consolidando-se a figura do escrivão, responsável pelos registros e assentos.
    A Revolução Francesa é listada por variados autores como marco no aprofundamento da necessidade de inventariar as populações e seus movimentos (Foucault, 2015; DaMatta, 2002; Makrakis, 2000; Júdice, 1927). Foucault (2015) auxilia a compreender tanto o sentido da vigilância do poder público, na qual o documento é peça-chave, quanto o poder disseminado nas relações cotidianas. A partir do diálogo com Foucault, é possível entender o registro de nascimento como um mecanismo de controle, que possibilita a realização de estatísticas, o planejamento de ações de políticas públicas e a maior vigilância das populações. Documentos, censos, estatísticas, registros são práticas do Estado-sistema que tornam as pessoas legíveis e localizáveis dentro de determinado grupo populacional. O registro passa a ser entendido pelo Estado como ferramenta para o monitoramento contínuo das populações. DaMatta (2002:51) explicita o papel dos documentos, em qualquer lugar do mundo, como forma de controle do Estado nacional sobre os cidadãos diante da “necessidade de inventariar os recursos humanos disponíveis na sociedade, pela contagem e classificação de seus habitantes”.
    Sem refutar a dimensão de controle levantada por Foucault, Peirano (2006), Santos (1979) e DaMatta (2002) desenvolvem a noção da documentação como garantidora de direitos. Santos (1979) analisa como, no Brasil, a cidadania foi historicamente regulada pelo Estado e como outro documento, a carteira de trabalho, se tornou, a partir de 1930, passaporte para o mundo dos direitos.
    DaMatta (2002) afirma que o sistema de documentação brasileiro é todo encadeado, e para se obter um documento é sempre exigido um anterior. Cita como documento fundador o registro de nascimento, que origina a certidão de nascimento. Carvalho (2001, 2008) cunha a ideia de “estadania”, entendida como uma relação clientelista do cidadão com o Estado, ou uma cidadania construída de cima para baixo, com fortíssima presença do Estado e sem a consequente garantia de direitos de todos. Em Cidadania insurgente, estudo etnográfico e político ambientado em bairros populares de São Paulo, Holston (2013) recupera o conceito de “cidadania regulada” de Santos (1979) e traz outro, que muito ajuda a analisar a condição dos sem-documento. Para Holston (2013:258), a partir de dois pilares — a incorporação da cidadania pelo Estado e a distribuição de direitos para os que são considerados cidadãos — o Brasil construiu historicamente um tipo peculiar de cidadania, que o autor define como “cidadania diferenciada”: “uma cidadania que desde o início foi universalmente includente na afiliação e maciçamente desigual na distribuição de seus direitos”. Em outras palavras, a cidadania brasileira, tecnicamente, é universal e oferece direitos a toda a população, mas é de fato desigual na distribuição desses direitos.
    O diálogo dessa investigação com a obra de Holston ocorre a partir do conceito de cidadania diferenciada, ideia que salta aos olhos na pesquisa sobre os sem-documento. Tecnicamente, nada nunca lhes foi negado, já que o registro de nascimento é um direito garantido em lei e gratuito a qualquer cidadão. Na prática, observo como, para uma parcela da sociedade brasileira, o processo de cidadania diferenciada se reflete na ausência de vários direitos — e como, no processo de busca pela regularização daquele direito, ressurgem os conceitos de cidadania universal e do documento como direito de todos, permitindo discutir as implicações de sua ausência e os motivos para obtê-lo.
    Documentos ainda hoje são a chave para o acesso a políticas públicas e projetos sociais no Brasil. Peirano (1986, 2006) também discorre sobre a ausência de documentos e afirma que o contraponto à exigência de documentação é a punição de quem não a possui. DaMatta (2002) analisa o receio difuso dos brasileiros de serem interpelados sem que estejam de posse de seus documentos — rotina com a qual os invisíveis, tema deste projeto, convivem; Peirano (2006) destaca o temor do brasileiro de perder documentos, lembrando casos em que ladrões devolvem os documentos de pessoas assaltadas, tal a importância dos papéis como chae de acesso para obtenção de direitos.

     

    Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento

    Fernanda da Escóssia

  • Postado por editora em em 19/07/2021 - 11:44

    Esta obra de Matheron, publicada pela primeira vez em 1968 e reeditada em 1988 pela Éditions de Minuit de Paris, chega agora em português ao público brasileiro exclusivamente no formato digital.

    A riqueza do livro que estão prestes a abordar alicerça-se num paradoxo. Pois, sem sombra de dúvida, lida-se aqui com uma obra-prima que satisfaz aos mais exigentes parâmetros objetivistas e racionalistas da disciplina austera à qual pertence: a História da Filosofia. No entanto, a esses parâmetros Matheron acrescenta outros, cujo objetivismo e cujo racionalismo radicais fogem a boa parte dos preceitos que costumam imperar sobre as práticas da simples interpretação de textos.

    A obra tem traduação de Martha de Aratanha; do prof. Baptiste Grasset e do professor Emanuel Rocha Fragoso, com a participação de Carlos Benevides Gomes e Alex Leite

    Confira o prefácio à edição brasileira:

    "Em pouco menos de 15 meses, entre o início de 1968 e o início de 1969, ocorreu uma guinada inconteste no comentário da obra de Spinoza: neste intervalo, pois, foram publicados três grandes livros que, até hoje, constituem referências incontornáveis para quem pretende estudar a filosofia do pensador holandês. Com efeito, em janeiro de 1968 foi publicado o primeiro volume da suma de Martial Guéroult sobre a Ética,1 que se debruça especificamente sobre a metafísica espinosana. Em novembro do mesmo ano foi a vez de Spinoza e o problema da expressão, de Gilles Deleuze.2 Enfim, em março de 1969 foi lançado Indivíduo e comunidade em Spinoza, de Alexandre Matheron.

    Esses comentários irromperam, de modo quase simultâneo, num deserto. É dificílimo, quase impossível, imaginar a escassez que caracterizava a pesquisa francesa sobre a obra de Spinoza até o final da década de 1960. O próprio Martial Guéroult, quando indagado naqueles anos pelo seu então orientando de pesquisas no CNRS, Alexandre Matheron, acerca da bibliografia spinozista disponível em língua francesa, lhe respondeu em tom categórico, e até abrupto: “Não há bibliografia! São todos asnos!” Nas palavras mais comedidas, porém convergentes, do próprio Matheron: “O estado dos estudos spinozistas na França, naquele momento, era quase zero... Lembro-me de ter sido convidado para uma reunião preparatória na casa de Althusser, com vista a um seminário sobre Spinoza (que, afinal, acabaria não acontecendo)... Lá estavam Macherey e também Badiou... Ora bem, aquele dia, como bibliografia, Althusser só nos indicou Delbos e Darbon... Havia também o curso policopiado de Alquié, um artigo de Misrahi sobre a política em Spinoza, e que eu lembre, era apenas isso.”De fato, faltam alguns nomes nessa lista: na mesma entrevista, Matheron, refletindo melhor, ainda acrescenta a tese de doutorado de Zac e certos trechos do comentário, já antigo, de Lachièze-Rey. Mesmo assim, nada que possa se comparar, nem de longe, com a densidade e a riqueza que os estudos spinozistas têm acumulado ao longo das pouco mais de cinco décadas que nos separam da primeira edição do livro de Matheron.

    Este livro foi o resultado de um caminho reflexivo pertinaz de mais de 20 anos. Nascido em 1926 em Paris numa família em que se destacam vários pesquisadores proeminentes, Alexandre Matheron escolheu o tema “Espinosa e a política” na hora de redigir sua monografia de graduação em Filosofia, em 1949. Conquanto este primeiro trabalho tenha sido, conforme salientou o interessado, deveras medíocre, é sugestivo o fato de que ele já apontava para a direção geral da leitura do Matheron da maturidade, a qual, duas décadas depois, iria identificar o núcleo do sistema de Spinoza numa teoria dos afetos e das paixões compreendida como alicerce da teoria política. Ademais, cabe observar que a adoção precoce de tal direção geral denotava certa coragem filosófica, na medida em que, tradicionalmente na França (como em boa parte do mundo, aliás), a academia negligenciava a vertente política da obra de Spinoza, considerando-a ora meramente redundante com o contratualismo de Hobbes, ora como inacabada e, por isso mesmo, muito inferior em relação à sua vertente teórico-metafísico-cognitiva. Depois de se formar como professor, em 1956, Matheron ensinou em Argel (então cidade colonial francesa). Neste período, ele, que fora um stalinista fervoroso, deixou o Partido Comunista Francês depois de um decênio de militantismo. Em 1963, voltou para Paris e logo ingressou no CNRS, onde apresentou e defendeu sua tese de doutorado em Filosofia em 1968. Um ano depois, publicou Indivíduo e comunidade em Spinoza. O livro, além de manifestar virtudes estruturais, por renovar a leitura da Ética e a apreensão da economia interna do sistema do filósofo holandês, também apresentava outras virtudes, mais conjunturais, uma vez que abriu um horizonte de emancipação intelectual durável para muitos jovens comunistas naqueles meses que seguiram Maio de 68 e foram teatro de intensas reconfigurações e radicalizações no seio da esquerda ocidental. Por esses motivos, Indivíduo e comunidade... tem logrado influenciar profundamente duas gerações de intérpretes.

    Talvez seja o caso de avisar os leitores: a riqueza do livro que estão prestes a abordar alicerça-se num paradoxo. Pois, sem sombra de dúvida, lida-se aqui com uma obra-prima que satisfaz aos mais exigentes parâmetros objetivistas e racionalistas da disciplina austera à qual pertence: a História da Filosofia. No entanto, a esses parâmetros Matheron acrescenta outros, cujo objetivismo e cujo racionalismo radicais fogem a boa parte dos preceitos que costumam imperar sobre as práticas da simples interpretação de textos. Com efeito, de praxe, o historiador da Filosofia se vê levado pelas necessidades metodológicas de sua tarefa a zelar por certa neutralidade, quiçá por certa passividade, ante o objeto de seus estudos. Espera-se dele que ele abra mão do calor do protagonismo filosófico que só seria suscetível de parasitar, e até de distorcer, a restituição fidedigna da lógica e do conteúdo da reflexão por ele analisada. Para explicar, ele não deve tomar 

    partido. Para ser historiador, ele não pode atuar como filósofo. Comprometido com um distanciamento crítico (supostamente) imparcial que o obriga a permanecer dialeticamente às margens das questões, das discussões e dos debates que mobilizam os textos sobre os quais ele se debruça, sua perspectiva é a, sobranceira e (postula-se) desengajada, da investigação friamente racional, devidamente documentada, quase clínica. Só assim ele consegue fazer bom uso das fontes, reconstituir os alicerces culturais e antropológicos, descrever o contexto socioeconômico ou político, detectar as influências e divergências, diagnosticar as inflexões e variações, aquilatar os múltiplos matizes da recepção do texto etc. Sobre tais bases, se realmente o historiador da Filosofia é um conhecedor metódico dos grandes textos, de seu sentido conceitual e das diversas condições de sua emergência, é inegável que Alexandre Matheron foi um imenso historiador da Filosofia. Se o historiador da Filosofia nunca deve ser ele mesmo um filósofo, se é verdade que ele não deve praticar Filosofia em primeira pessoa para preservar e garantir a idoneidade técnica de suas análises, então seria ledo engano rotular Alexandre Matheron como um historiador da Filosofia na acepção clássica desta expressão. Pois, na obra dele, a verdade filosófica e a enquete histórico-conceitual nunca entram em contradição. Muito pelo contrário, esta permanece sempre a serviço daquela.

    Como Guéroult e Deleuze, Matheron pratica uma leitura genética da obra de Spinoza. Contra a tendência ensaística demasiado frequente entre os intérpretes (sobretudo na época), trata-se de partir do texto e de decifrar os recursos próprios do texto para lograr elucidar o sentido do texto. As intuições subjetivas, as hipóteses aventadas a esmo, os hábitos de leitura exclusivamente consolidados pela autoridade da tradição do comentário são rechaçados. Sobre tais bases, cada qual à sua maneira, esses três grandes filósofos-comentadores, muito mais do que leituras informadas e sistemáticas, se empenham em reconstituir paulatina e pacientemente totalidades argumentativas orgânicas, cujas chaves respectivas de compreensão da obra de Spinoza pretendem operar a partir da verdade interna do pensamento que nesta obra se desdobra. Visam entender a lógica própria do pensamento para explicar a obra. Detalhe surpreendente: se Guéroult já aplicava um método genético e estrutural de leitura dos textos filosóficos desde os anos 1930, e se os métodos respectivos de Deleuze e de Matheron foram influenciados de modo decisivo pelo de Guéroult, entretanto, essas três leituras “totais” do spinozismo, elaboradas ao longo do mesmo período (a segunda metade dos anos 1960), foram maturadas de forma separada e independente umas das outras. Assim, para quem lê o Spinoza monumental e, infelizmente, inacabado, de Guéroult, é claro que, nele, a reconstituição da coerência dos argumentos e das demonstrações da Ética se dá pela aplicação meticulosa de um crivo racional, a análise objetiva da estrutura, que já demonstrara sua eficácia explicativa anos antes a respeito do pensamento de Descartes. O que é a estrutura segundo Guéroult? Ela consiste em uma certa relação das partes ao todo, sendo que o conjunto se apresenta, afinal, sob a forma de um sistema vivente e lógico. Sobre tais bases, trata-se de explicar o teor e o sentido de cada etapa da demonstração justificando a necessidade lógica da emergência desse teor e desse sentido na precisa etapa analisada e não noutra. Matheron concorda com esta abordagem metódica que, outrossim, no caso de Spinoza, tem o mérito de fazer jus ao destaque que sua Filosofia confere ao método sintético, intimamente ligado à concepção ativa e produtiva da verdade. O que não quer dizer, evidentemente, que Matheron endosse o cerne da tese que nutre a leitura que Guéroult faz da Ética: de fato, este, contra aquilo que chama de “lenda” do spinozismo, situa a verdadeira pedra de toque da primeira parte da Ética nas inflexões dedutivas que regem a articulação entre substância e atributo – e, ao tecer toda a rede de conexões lógicas que, em torno desse polo explicativo, solidarizam e fazem surgir as proposições fundamentais da metafísica de Spinoza umas das outras, Guéroult enuncia sua famosa teoria das substâncias de um só atributo, cuja recepção pelo leitorado tem sido, digamos, persistentemente morna, deveras comedida, em todo caso às antípodas da admiração sem ressalvas suscitada pela acribia da metodologia estrutural que ele promove. De forma mais ampla, Matheron não concorda com seu orientador no CNRS no que diz respeito ao centro de gravidade do sistema de Spinoza, localizado por Guéroult na metafísica, ou seja, nitidamente na primeira parte da Ética. Aqui, Matheron antes vai ao encontro da economia do texto enfatizada por Deleuze. De fato, Spinoza e o problema da expressão situa o referido centro de gravidade no meio da Ética, nas suas segunda e terceira partes (em verdade, como logo veremos, Matheron ainda é mais radical do que Deleuze, e o situa estritamente no “tronco” conativo do livro, ou seja, na terceira parte). É claro, enquanto Deleuze faz girar sua análise genética do sistema espinosano em torno das declinações da noção de expressão, que modelizam a articulação entre finito e infinito de acordo com diversos esquemas de produtividade intensiva e diferencial, Matheron prefere se abster de recorrer a conceitos que, por mais estimulantes que sejam, padecem o defeito lastimável de serem “multiuso” ou, mais exatamente, de serem passíveis de servir – nem que seja com tato e cautela – para analisar as obras de vários autores (no caso da expressão: Leibniz, entre outros). Aliás, por motivos semelhantes, ao invés daquilo que fazem a dianoemática de Guéroult e a teoria antidialética da criação de conceitos em Deleuze, Matheron se recusa insistentemente a classificar os pensadores em grandes clãs ou tribos. Afinal, se me incumbisse a temível tarefa de apontar para aquilo que distingue de forma cabal esses três grandes historiadores da Filosofia, eu diria que, decerto, todos podem ser rotulados como spinozistas, ou pelo menos como pensadores para quem Spinoza desempenha o papel de filósofo primordial e incomparável; e que, a esse título, eles envidam 

    intensos esforços analíticos e argumentativos, em tom não raro imperativo, para proteger o leitor contra os riscos da má interpretação do texto, isso em nome da integridade lógico-orgânica do pensamento analisado; entretanto, acrescentaria uma ressalva importante: ao passo que Guéroult ou Deleuze buscam a verdade da obra de Spinoza tal como se apresenta nos textos do filósofo holandês, o que Matheron busca nesses mesmos textos é... a própria verdade. Ou, como Pierre-François Moreau escreveu certa feita: “Para Matheron, a filosofia spinozista não é uma filosofia entre outras: ela explica verdadeiramente o real.”

    O que significa e como se manifesta isso? Para Matheron, o sistema filosófico elaborado por Spinoza e a verdade descoberta aos poucos pelo seu pensamento, à medida que vem intensificando a compreensão que ele tem de si mesmo, são duas coisas distintas. Ora, o método de Matheron almeja dar voz e prioridade sistemática a este Spinoza que se torna spinozista. A verdade spinozista, isto é, o pensamento de Spinoza geneticamente compreendido e perfeitamente desenvolvido do ponto de vista da unidade orgânica, ou seja, da densidade demonstrativa, tem um valor que, para Matheron, ultrapassa, e muito, o simples interesse filológico ou histórico: tal verdade é a própria chave de decifragem da realidade. Em virtude deste princípio geral de análise, o comentador reorganiza a estrutura fatual do texto segundo a ordem genética de suas razões e diretrizes, e não hesita em emendar demonstrações que, a seu ver, permaneceram incompletas, ou em preencher o que, de acordo com a lógica do pensamento spinozista enquanto unidade orgânica total perfeita, parece ser uma falha pontual ou uma lacuna anormal nas demonstrações efetivamente produzidas no texto. Concretamente, ao invés de explicar o texto sob a batuta de sua ordem fatual e, portanto, ao invés de partir da metafísica de Spinoza, Matheron, em nome da verdade do pensamento acabado e completo do filósofo, parte do conatus. Decerto, ele lista de forma sucinta os pressupostos metafísicos da noção de conatus, porém privilegia constantemente uma ordem de exposição e reconstrução das demonstrações que desposa uma lógica – intensamente spinozista, convenhamos – de produtividade das ideias e de auto manifestação da verdade. Uma vez que, para explicar, é preciso compreender, uma vez que compreender é compreender geneticamente, e uma vez que o ser e o conhecer são, em suma, a mesmíssima coisa, então o conhecimento é conhecimento do ser enquanto gênese e produtividade. Sobre tais bases, Matheron vê na proposição 6 da terceira parte da Ética, segundo a qual cada coisa, tanto quanto está em si, esforça-se por perseverar em seu ser, o ponto verdadeiro de emergência estrutural da teoria das paixões, de toda a política que desta teoria decorre, e, enfim, de toda a problemática moral em Spinoza. Assim procedendo, em Indivíduo e comunidade em Spinoza, Matheron, sem nunca romper o fio da meada que a individualidade representa, acompanha e descreve meticulosamente a formação dos coletivos. Por esse motivo, à esquerda, certos leitores, sensíveis a renovações teóricas concernentes à potência das multidões e à radicalização política, acreditaram reconhecer – aliás, com o aval de Matheron – ecos da Crítica da razão dialética de Sartre nesta interpretação da Ética que foca metodicamente no devir comum da individualidade, e no devir social e político das paixões viscerais dos homens. Entretanto, embora Matheron tivesse sabidamente começado a se interessar pela obra de Spinoza na medida em que esta lhe parecera ser prenunciativa da de Marx, a partir dos anos 1980 ele confessou com frequência ter mudado de concepção aos poucos para passar a aquilatar o pensamento de Marx como uma das extensões possíveis do pensamento de Spinoza.

    Em todo caso, Matheron faz da perseverança dinâmica, competitiva e produtora dos indivíduos na totalidade o nexo da Ética. Ponto de partida biológico, afetivo e racional da política segundo a ordem da dedução geométrica das paixões, o conatus também é o ponto de chegada biológico, afetivo e racional da metafisica e da física em virtude da reconstituição genética, pelo comentador, da ordem das razões filosóficas do spinozismo. Melhor dizendo, a lógica que vigora neste pensamento explica verdadeiramente a metafisica e a física das duas primeiras partes da Ética a partir de seu ponto de chegada: o conatus. Cabe a essas duas primeiras partes elucidarem porque toda coisa se caracteriza pela produção de efeitos que a conservam e como tal atividade produtora, ao esbarrar com obstáculos, chega a produzir um esforço mais ou menos potente. Por exemplo, os integrantes de uma sociedade política comunicam certa quantia precisa de movimentos uns aos outros, e o resultado desta comunicação de movimentos é a reprodução da referida sociedade política. Neste âmbito, um indivíduo é um conjunto de corpos que estão em interação uns com os outros de acordo com um certo sistema de leis diferente dos demais sistemas. Conatus limitados por outros conatus, e imersos em diversas redes de relações concretas de diferenciações quantitativas de potências, os homens não são senão indivíduos, isto é, modos entre muitíssimos outros da substância divina. Nó górdio das razões que regem as demonstrações do sistema de Spinoza, o conatus é o operador conceitual que possibilita, segundo Matheron, a funcionalidade orgânica do pensamento que vigora e tenta pensar sua verdade nesse sistema. Somente graças ao conatus consegue-se superar o falso dualismo filosófico-conceitual do panteísmo e do individualismo. Somente graças a ele, em Spinoza, o panteísmo logra fundamentar o individualismo metafísico, o qual por sua vez permite compreender geneticamente o individualismo ético-social e político.

    Depois da publicação de Indivíduo e comunidade em Spinoza, Matheron ensinou na Universidade de Nanterre e na École Normale Supérieure de Fontenay-Saint-Cloud. Ele seguiria aplicando o método estrutural que marcou seu grande livro inaugural em seu segundo trabalho importante, Le Christ et le salut des Ignorants chez Spinoza (Aubier-Montaigne, 1971), assim como em cada um dos artigos que compõem Études sur Spinoza et les philosophes de l’Âge Classique (Éditions ENS, 1985, 2011). Ele nunca deixaria de aprofundar os rumos metodicamente delineados em Indivíduo e comunidade... Graças ao concurso da Fundação Getúlio Vargas e da Maison de France, os leitores lusófonos têm a possibilidade, pouco mais de um ano após o falecimento de Alexandre Matheron, de consultar uma tradução em língua portuguesa desta obra crucial que testemunha de que os melhores exemplos de História da Filosofia adotam a forma da Filosofia vivaz, vivente e viva, bem longe do catecismo acadêmico monótono, feito de truísmos e de conformismos fantasiados de perícia, que, não raro, desqualifica essa disciplina na consciência comum. Antes de concluir e de deixar esses leitores se inteirarem de um comentário estrutural cuja autoridade ainda faz jus à rejeição contumaz, por Matheron, da noção de interpretação, que ele julgava ser demasiado subjetivista, demasiado opinativa, sobremodo propensa ao cometimento de improvisos dúbios, não posso me furtar a confessar a alegria e a satisfação que tomam conta de mim ao me representar a espantosa iluminação filosófica prestes a recompensar quem vai cruzar pela primeira vez com as análises respeitantes à árvore sefirótica ou à natureza ambivalente (e predominantemente negativa, apesar de tudo) da indignação. Só me resta lhes desejar uma excelente (re)descoberta de Spinoza."

    Indivíduo e comunidade em Spinoza

    Autor: Alexandre Matheron

     

     

  • Postado por editora em em 19/07/2021 - 11:20

    No momento em que este livro é lançado em português pela FGV Editora em parceria com a Escola de Relações Públicas e Internacionais (SIPA) da Universidade de Columbia e o Columbia Global Centers do Rio de Janeiro, a estrutura institucional da Lava Jato no Brasil está perdendo o impulso, com a extinção deste modelo de força-tarefa por determinação da Procuradoria-Geral da República (PGR).

    Em 'Corrupção e o escândalo da Lava Jato na América Latina', a maior investigação contra a corrupção no mundo, a Lava Jato, é analisada sob diferentes perspectivas. O tempo presente parece apropriado para dar um passo atrás e avaliar o real significado de tudo o que aconteceu. Cada um dos 15 capítulos escritos por 19 autores brasileiros e de outros países é uma análise distanciada dos acalorados debates políticos e inclui ainda entrevistas com alguns de seus principais atores, como Sergio Moro, Deltan Dallagnol e Glenn Greenwald.

     

    Confira o Prefácio da edição brasileira:

    "É um prazer apresentar aos leitores brasileiros este brilhante conjunto de artigos sobre as múltiplas dimensões do escândalo de corrupção da Lava Jato — seu contexto histórico, sua complexidade jurídica e política e seu legado incerto para o futuro da democracia no Brasil. Organizado de forma talentosa por Fernanda Odilla e dois dos meus colegas da Universidade Columbia, os professores Paul Lagunes e Jan Svejnar, este livro consiste em 15 capítulos de 19 autores advindos do próprio Brasil e de outros países. É a melhor análise contemporânea da Lava Jato disponível na língua inglesa hoje e, por isso, é com particular orgulho que o Columbia Global Center no Rio agora o disponibiliza para um público mais amplo no Brasil.
    O livro é um testemunho do valor de trabalhos acadêmicos que lidam com as questões públicas mais urgentes de nosso tempo. Cada capítulo é uma análise que conta com evidências como base e distanciamento acadêmico dos acalorados debates políticos do momento. Ao mesmo tempo, os autores dos capítulos estão plenamente engajados com o mundo em que tais debates acontecem, cientes de que a corrupção revelada pelo escândalo da Lava Jato é uma das duras realidades dos nossos tempos no Brasil (e na América Latina) que exige uma análise mais cuidadosa e equilibrada. É isso que o volume oferece para nossa consideração.
    Para ser claro, este é um livro que também exige dos leitores. Cada capítulo é escrito em linguagem clara e acessível. Somos desafiados a deixar de lado nossas inclinações políticas para olhar novamente para este doloroso episódio chamado Lava Jato. Os capítulos deste livro consideram a questão da corrupção de uma forma que vai muito além de uma exegese de procedimentos criminais e minúcias da aplicação da lei. É um chamado à luta, para que cidadãos preocupados exijam transparência e responsabilidade daqueles que nos governam com propósitos corruptos. Se não for controlada, a corrupção gera cinismo em relação a políticos e à política. Se todos eles são corruptos, o que importa quem é eleito para cargos públicos? Se os cidadãos são essencialmente impotentes para fazer qualquer coisa contra a corrupção, por que se preocupar em monitorar o que o governo está fazendo na escuridão?
    No momento em que este livro é lançado em português, a estrutura institucional da Lava Jato no Brasil está perdendo força. O modelo de força-tarefa para a Lava Jato foi extinto por determinação da Procuradoria-Geral da República (PGR). As personalidades jurídicas mais conhecidas desde os primeiros dias em Curitiba, o juiz Sergio Moro e o promotor-chefe Deltan Dallagnol, deixaram a investigação. O tempo presente parece apropriado para dar um passo atrás e avaliar o real significado de tudo o que aconteceu. O livro contribui para o nosso entendimento ao separar as dimensões políticas do escândalo que abalou o Brasil das menos aparentes, porém mais importantes, “lições aprendidas” da Lava Jato sobre o combate à corrupção. Vamos considerar cada uma delas separadamente.
    Polarização política e a Lava Jato
    Sobre os aspectos políticos, o livro traça um quadro de clivagem profunda e talvez duradoura da sociedade brasileira. O Brasil foi dividido em campos de guerra, cada um com interpretações radicalmente diferentes do que era o escândalo da Lava Jato.
    Para muitos da direita no Brasil, a Lava Jato é uma pura história de bem contra o mal, de promotores e juízes corajosos que usam instrumentos legais inovadores para exigir a responsabilização e, pela primeira vez na história do Brasil, impor duras penas de prisão a políticos e executivos corruptos. Evitando esforços repetidos para limitar ou encerrar totalmente as investigações, os promotores em Curitiba ofereceram quase 500 denúncias enquanto a Lava Jato contabilizava 73 fases ao longo de seis anos. Muitos brasileiros se maravilharam ao ver políticos que já foram todo-poderosos, como Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados, e poderosos líderes empresariais, como Marcelo Odebrecht, cumprindo pena na prisão.
    Acima de tudo, para a direita política, a Lava Jato revelou o Partido dos Trabalhadores (PT) como uma organização criminosa corrupta com tentáculos espalhados pelos cofres públicos, a começar pela Petrobras, mas se estendendo por outras áreas de governo. O ponto alto dessa versão dos acontecimentos foi a queda dos dois líderes mais proeminentes do PT. O impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 foi um destes momentos, embora as acusações contra ela fossem de natureza obscura e administrativa. A prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em abril de 2018, poucos meses antes de uma eleição presidencial em que era o principal candidato nas pesquisas de opinião, foi a outra.
    A esquerda no Brasil vê esses mesmos eventos sob uma luz radicalmente diferente e, portanto, temos o profundo abismo que existe na sociedade brasileira hoje. A esquerda sempre pode estar convencida de que todo o processo Lava Jato foi muito além de sua investigação inicial (e bem-vinda) de corrupção grave na estatal de petróleo. A investigação tornou-se uma forma de manipular a lei para lograr fins políticos (em inglês, lawfare), nada menos do que uma vingança, primeiro, para retirar o PT do poder e, segundo, para impedir o partido de retornar ao poder, eliminando as perspectivas eleitorais de Lula e manipulando uma mídia complacente para manchar a imagem pública do PT.
    Os desdobramentos subsequentes, registrados após a prisão de Lula em 2018, pareceram fortalecer esta versão dos eventos que considera os próprios guardiões da lei e responsáveis pela fiscalização e controle agindo em busca de propósitos políticos corruptos. As revelações da “Vaza Jato” indicam uma cooperação antiética entre os promotores e uma perda de imparcialidade judicial. Mais seriamente, os investigadores da Lava Jato pavimentaram o caminho para a eleição em 2018 de Jair Bolsonaro, inaugurando uma agenda nacionalista e populista que, em suas raízes, é profundamente antidemocrática. Como que para enfatizar a perturbadora travessia de fronteiras, o juiz Moro aceitou um cargo no primeiro escalão do novo governo, agregando prestígio e legitimidade ao governo Bolsonaro e a sua agenda. O fato de Moro ter renunciado em 2020 em protesto contra a fraca postura de Bolsonaro em relação às medidas anticorrupção e à reforma criminal fez pouco para colocar a polarização da era Lava Jato sob uma luz mais branda.

    Dimensões institucionais
    Este livro nos desafia a responder as principais questões institucionais sobre a Lava Jato. Era tudo uma questão de política, suscetível de esvanecer com o passar do tempo, tanto quanto o escândalo do Mensalão no início dos anos 2000 parece ter se dissipado da memória pública? Ou a Lava Jato, por toda a polêmica política que gerou, também contribuiu para os movimentos anticorrupção no Brasil e na América Latina?
    Nesse sentido, vários capítulos deste livro oferecem algum otimismo. O escândalo Lava Jato jogou luz na máquina anticorrupção do governo federal, que vai muito além da base da investigação em Curitiba. Um grande número de agências federais brasileiras trabalhou de uma maneira coordenada de forma que, realmente, não tem precedentes recentes. Entre eles, a Polícia Federal, a Advocacia-Geral da União (AGU), a Controladoria-Geral da União (CGU), o Ministério Público Federal, o Tribunal de Contas da União (TCU), bem como o sistema judiciário da primeira instância federal até o Supremo Tribunal Federal (STF). Pode-se ter esperança de que a experiência da Lava Jato fortalecerá esse tipo de aprendizado entre instituições e o compartilhamento de informações no futuro, conforme novas investigações contra casos de corrupção se desdobram.
    A Lava Jato também chamou a atenção para uma série de mudanças nos processos penais no Brasil e inovações nos instrumentos legais, mas só o tempo dirá quão permanentes serão. Os procedimentos judiciais resultaram no cumprimento de significativas penas de prisão para políticos e líderes empresariais que não conseguiram reverter as decisões iniciais com recursos na segunda instância do Judiciário. Essa mudança, depois revertida pelo STF, deve-se dizer, pôs fim à tradição latino-americana de autoridades e empresários corruptos escaparem de duras sentenças por meio de intermináveis recursos. Por um tempo, essa inovação pareceu desafiar a noção de que no Brasil apenas os pobres vão para a cadeia.
    O instrumento legal mais inovador a evoluir a partir do escândalo é o uso pesado de negociação de pena (“delação premiada”) para extrair informações incriminatórias de cúmplices sobre o envolvimento criminoso de funcionários de alto escalão, políticos e líderes empresariais. Esse procedimento é naturalmente controverso pois cria incentivos para falsas acusações e campanhas de difamação à medida que indivíduos de escalões inferiores procuram desesperadamente evitar a prisão. O tempo dirá se as salvaguardas estabelecidas no sistema de justiça brasileiro para proteger os direitos dos acusados realmente funcionam como desejado. Algum ceticismo nesse ponto certamente é válido, já que acordos de barganha não comprovados geram danos à reputação do acusado.
    Por fim, o escândalo da Lava Jato ocorrido nos tribunais representou um grande avanço, se comparado a práticas anteriores, em termos de transparência e abertura. Câmeras filmaram depoimentos que foram prontamente informados à imprensa e amplamente divulgados na grande mídia. Os próprios tribunais aceleraram esse processo de divulgação pública por meio também de vazamentos de materiais seletivos. É provavelmente justo dizer que as deliberações judiciais ocorreram em público no Brasil de uma forma muito mais aberta do que em qualquer procedimento desse nível já conduzido antes.

    Lições para a sociedade civil
    Pode-se encarar este conjunto de artigos como um apelo à ação da sociedade civil. Na verdade, as próprias origens da investigação Lava Jato vieram da sociedade civil. Em uma visão geral magistral, por exemplo, Albert Fishlow explica como o crescimento econômico lento, a crescente demanda por melhores serviços sociais, as queixas da elite e os erros na política econômica criaram na sociedade civil um clima favorável à análise severa dos funcionários públicos corruptos.
    A lição para a sociedade civil é evitar a conclusão prematura de que a Lava Jato realmente virou uma página. Márcia R. G. Sanzovo e Karla Y. Ganley lembram que a Lava Jato foi apenas um episódio de um longo processo de combate à corrupção. Suas análises das evidências dos Jogos Olímpicos do Rio em 2016 mostram que a corrupção e o suborno continuarão a ocorrer onde quer que governos e empresas possam manter o processo de compras públicas fora dos holofotes. Desdobramentos mais recentes no Brasil em 2020 incluem casos verdadeiramente horríveis de corrupção descarada e cinismo oficial em licitações públicas relacionadas com o estado de calamidade na saúde causado pela Covid-19.
    Uma imprensa livre deve ser parte fundamental de uma sociedade civil saudável. Seu papel no escândalo da Lava Jato é debatido neste livro a partir de vários pontos de vista. Daniella Campello e suas coautoras encontram evidências de um viés antiesquerdista na cobertura da mídia, que demonizou um partido político inteiro. A entrevista de Paul Lagunes e Karla Y. Ganley com o jornalista Glenn Greenwald aumenta nosso entendimento do papel e da importância de uma imprensa livre, mesmo quando Greenwald critica a manipulação da mídia pelos promotores. Mas o papel da imprensa na Lava Jato pode e deve ser analisado de forma mais ampla. Beatriz Bulla e Cortney Newell fazem exatamente isso ao fornecer evidências que contestam o viés sistêmico da mídia na cobertura de Lava Jato. Em vez disso, elas chamam a  atenção para o trabalho rápido de jornalistas profissionais dedicados à simples proposição de que “a luz do sol é o melhor desinfetante”.
    Deixo para o leitor descobrir as muitas outras lições para a sociedade civil no Brasil contidas nos capítulos deste volume único. Inspirando-nos no excelente texto de Susan Rose-Ackerman e Raquel de Mattos Pimenta, podemos concordar que o combate à corrupção é muito mais do que uma questão de aplicação da lei. No caso do Brasil, uma vasta agenda de reformas políticas aguarda o apoio popular e a aprovação legislativa. Os legisladores no Brasil devem se aproximar de seus eleitores. O número de partidos políticos é muito grande, criando um ambiente propício para o tráfico de influência. A falta de transparência em tantas esferas de governo cria um terreno fértil para subornos e corrupção. O financiamento das campanhas precisa ser reformulado para conter a influência do dinheiro na política. A lista continua. A questão é que em qualquer democracia tudo depende da determinação dos cidadãos em exigir reformas.
    O escândalo Lava Jato será lembrado e analisado por muito tempo. Quando, em algum momento no futuro, chegar a hora de avaliar as contribuições dos estudiosos para o nosso entendimento, este livro assumirá seu lugar como um dos melhores esforços iniciais para iluminar as questões mais importantes.
    É um grande privilégio apresentar esta obra aos leitores brasileiros."

    Thomas J. Trebat
    Columbia Global Centers | Rio de Janeiro
    22 de novembro de 2020

     

    Corrupção e o escândalo da Lava Jato na América Latina

    Organizadores: Paul Lagunes, Fernanda Odilla, Jan Svejnar

  • Postado por editora em em 15/06/2021 - 15:14

    Lançamento em 21/6, às 18h.

    Inscreva-se AQUI

     

    A obra Estratégia militar aplicada: metodologia de emprego aborda a temática estratégica militar aplicável aos conflitos, sejam interestatais ou intraestatais, destinando-se a apresentar os principais aspectos desses enfrentamentos, bem como explicitar os fundamentos do planejamento estratégico na solução de controvérsias por intermédio do poder militar do Estado.
    Os conflitos tratados no corrente trabalho referem-se a fenômenos sociais ocasionados pelo choque de interesses antagônicos de Estados ou grupos sociais politicamente organizados, em que há possibilidade de enfrentamento intencional entre as partes, de forma violenta ou não, em contexto internacional ou na esfera nacional.

    Confira um trecho do prefácio assinado pelo diplomata João Paulo Alsina Jr.

    "(...) Em um país assolado por gravíssima crise da inteligência, fato tanto mais inquietante quanto se constate que a ignorância ignora antes de tudo a si mesma, não espanta que os estudos estratégicos sejam relegados a plano residual de importância. Enquanto a atenção da intelectualidade pátria oscila entre o último pronunciamento solene dessa ou daquela “funkeira” e o mais recente escândalo de violação do catecismo identitário politicamente canalha, quase nenhuma energia é dedicada aos assuntos de Estado – sim, àqueles temas fastidiosos, corpulentos, “chatos”, que dizem respeito ao futuro da coletividade. Essa lúgubre realidade apenas empresta sentido de oportunidade ao trabalho de Ferreira e Teixeira Jr. Oportunidade amplificada pela prevalência hodierna de dois elementos estruturais que, diga-se de
    passagem, poderão cobrar no futuro preço extremamente elevado da sociedade brasileira.

    Faço referência ao primeiro, ou seja, ao ambiente estratégico global, caracterizado por enorme complexidade e tendências centrífugas a cada dia mais alarmantes. Não caberia aqui descrever em detalhe o cenário estratégico que se apresenta aos nossos olhos, mas faz-se mister acenar com uma de suas características essenciais. Parece razoável supor que a humanidade caminha para situação próxima daquilo que foi previsto por Samuel Huntington há mais de duas décadas: um choque de civilizações em que fatores de ordem econômica exercerão papel não mais do que secundário. Apanágio de marxistas e liberais, a visão economicista do mundo pouco tem a nos oferecer como base explicativa para os conflitos que se delineiam no horizonte. De relevância incomensuravelmente maior apresenta-se a disjuntiva entre nações do Ocidente, ainda razoavelmente apegadas aos valores que tutelam a liberdade legados pela herança greco-judaico-cristã, e nações não ocidentais, caudatárias de coletivismos totalitários em que o indivíduo nada representa diante do peso esmagador do Leviatã pós-moderno.

    Essa perspectiva, agravada pelas fragilidades seculares das sociedades “do sol poente”, exploradas ativamente por seus contendores iliberais, permite antever níveis crescentes de conflitividade doméstica e internacional. Em vista do confronto titânico que parece avizinhar-se, elementos como coesão social e poder militar robusto desempenharão papel transcendental para a sobrevivência e a prosperidade dos grupos humanos organizados conhecidos como nações. Diante disso, poder-se-ia indagar: em face da compressão espaço-temporal suscitada pelos armamentos contemporâneos e da filiação brasileira à hereditariedade ocidental, restará ao país a opção do não alinhamento nesse contexto? Se quisermos reformular a pergunta: teremos a liberdade de optar pelo não alinhamento caso estejamos totalmente desprovidos de Forças Armadas poderosas e de sociedade razoavelmente coesa? Eventual opção pelo alinhamento poderia concretizar-se, em bases aceitáveis para nossa soberania, sem que a nação possuísse forças combatentes relevantes? Acredito serem as respostas a essas perguntas por demais óbvias para merecerem elaboração.

    O segundo elemento estrutural, intimamente ligado ao anterior, diz respeito à aparente incapacidade nacional de construir relações civis-militares produtivas e fluidas, voltadas não somente à saudável inserção da caserna na pólis, mas também à edificação de um Ministério da Defesa (MD) forte e atuante, habilitado a liderar o imprescindível e inadiável fortalecimento do poder de dissuasão de Marinha, Exército e Aeronáutica. Rui Barbosa, em Cartas de Inglaterra, publicado em 1896, alertava para o fato de que a nulificação de nossas forças de defesa representaria um verdadeiro projeto de suicídio coletivo. Quase 125 anos depois, como não ver na angustiante fragilidade do MD exatamente o mesmo projeto? Do ponto de vista de qualquer analista sério, como não se preocupar com a lentidão dos programas militares, a falta de ambição desses programas, sem falar na sua notória insuficiência em termos de interoperabilidade? Indagações do gênero poderiam reproduzir-se ao infinito. Em resumo, enquanto outros povos voam ao ritmo de mísseis hipersônicos, nós andamos na cadência de um carrinho de pedreiro repleto de sacos de cimento… (...)"

     

    Estratégia militar aplicada: metodologia de emprego

    Autores: Walter Da Costa Ferreira, Augusto W. M. Teixeira Júnior

     

     

  • Postado por editora em em 11/05/2021 - 16:29

    Dia 18 de maio será o lançamento da obra 'Universidade e ensino de história', que obra apresenta trabalhos com enfoque em diferentes conjunturas e regiões que pretendem estimular uma reflexão para o enfrentamento dos desafios na renovação da formação dos professores. Visa ainda levar o conhecimento histórico para um público mais amplo. O formato das licenciaturas e o papel do docente, tendo em vista a desvalorização da carreira e a pouca atratividade que o magistério oferece também é um ponto de reflexão. Este livro sobre o ensino de história nas universidades visa contribuir para o entendimento do percurso das graduações de história em diferentes universidades, em diferentes momentos e regiões. Busca também focalizar os embates produzidos no campo da historiografia e das memórias produzidas em torno de momentos fundadores dos respectivos cursos e seus professores.

    Inscreva-se para o webinar de lançamento no dia 18/5, às 18h, AQUI.

    Confira a introdução assinada pela organizadora da obra, Marieta de Moraes Ferreira.

    Licenciatura e formação de professores: debates atuais
    Em 2013, lancei o livro A história como ofício, que tinha o objetivo de acompanhar e discutir o processo de profissionalização dos historiadores no Brasil por meio da criação dos primeiros cursos universitários de história com foco na Universidade do Distrito Federal (UDF) (1935-1939) e na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1939-1968). Na ocasião, estava em pauta no Brasil o debate sobre a regulamentação da profissão do historiador em função do projeto de lei aprovado no Senado no ano anterior, e pesquisas sobre o percurso do campo do conhecimento da história se tornavam mais que oportunas.
    O avanço do processo de profissionalização suscitou muitas críticas, dividindo as opiniões a favor e contra, e colocou com mais intensidade discussões acerca do lugar do ofício do historiador na sociedade e da própria relevância das graduações e pós-graduações em história como requisito para o exercício da pesquisa e ensino da disciplina.
    Com concessões que levaram a mudanças no projeto anterior foi finalmente aprovada a Lei no 14.038/2020, que regulamenta a profissão do historiador. Novamente, essa iniciativa, somada à própria conjuntura atual, produz debates importantes acerca do lugar da história e qual o papel do historiador diante de um sem-número de narrativas negacionistas que distorcem e omitem eventos e interpretações já consagrados pelas diferentes correntes historiográficas.
    A esse elenco de temas e desafios colocados para os profissionais de história, somam-se as últimas reformas educacionais, que põem em tela a questão da formação dos professores e o próprio formato das licenciaturas de maneira geral e das de história em particular.
    Nos últimos tempos, as discussões concernentes à formação de professores voltaram ao centro das atenções com a aprovação da lei da Reforma do Ensino Médio, em 2017, a Nova Base Nacional Curricular (BNCC) e as resoluções que se seguiram. Um ponto que emerge a partir dessas novas iniciativas é a questão do formato das licenciaturas e o papel do docente, tendo em vista a desvalorização da carreira e a pouca atratividade que o magistério oferece.
    Nesse sentido, os cursos de licenciatura no interior das instituições de ensino superior tornaram-se objeto de debates e reformulações “visando superar as dicotomias referentes aos binômios bacharelado-licenciatura” (Fernandes, Ferreira e Nogueira, 2020:18-19).
    Diante disso, produzir uma reflexão acerca das licenciaturas com o objetivo de repensar e valorizar a formação dos professores torna-se uma questão urgente. O diagnóstico dominante consiste numa crítica ao perfil atual das licenciaturas que não estimula uma reflexão sobre a prática docente, mas, ao contrário, concentra todas as atenções nas atividades de pesquisa e na preparação para uma pós-graduação acadêmica, indo na contramão do que, de fato, a maioria dos discentes fará após a conclusão de seus estudos: lecionar em escolas, públicas e privadas, do ensino básico.
    Por outro lado, os licenciandos em geral se sentem pouco preparados para as tarefas que imaginam serem as suas no futuro: deslocar o que aprenderam na graduação para a complexa sala de aula de colégios, lidar com crianças e adolescentes e dialogar e se expressar diante desse público específico.
    No caso particular das graduações de história, as questões em torno do formato do curso têm provocado acirrados debates e resistência à implementação da separação das entradas para o bacharelado e para a licenciatura, o aumento da carga horária e criação de disciplinas voltadas para o ensino de história.
    Contudo, se a importância de pensar a licenciatura como o foco central da graduação em história está na ordem do dia e uma maior atenção na preparação dos licenciandos para a atividade docente tem se mostrado mais frequente, os professores de ensino superior que estão à frente das reformas associadas aos cursos da área parecem ignorar os debates que correm por fora do âmbito universitário.
    Assim, a BNCC e as discussões relativas à reestruturação do ensino médio estão distantes das preocupações que norteiam as tentativas de reformulação das licenciaturas nas universidades, ficando as decisões concentradas nos gestores municipais e estaduais e representantes da rede pública de ensino básico.
    Nesse quadro se coloca a pergunta: como nossas universidades se confrontarão com essa nova realidade se nossos cursos não estiverem preparados para essa desafiadora tarefa? Frente a isso, é urgente que as licenciaturas estejam aptas a dar conta das mudanças que deverão ser implementadas nos próximos anos para atender às novas necessidades do ensino básico e do atual perfil de seus estudantes.
    Diante desse quadro de enormes desafios e de imprevisibilidades das mudanças em curso nas licenciaturas em geral e na de história em particular, e no lugar do ensino de história na educação básica, este livro sobre o ensino de história nas universidades visa contribuir para o entendimento do percurso das graduações de história em diferentes universidades, em diferentes momentos e regiões. É objetivo também desta obra focalizar os embates produzidos no campo da historiografia e das memórias produzidas em torno de momentos fundadores dos respectivos cursos e seus professores.
    Assim, este trabalho reúne 10 textos que analisam a trajetória de cursos de graduação em história em oito diferentes instituições de ensino superior: a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a Faculdade de Ciências e Letras do Instituto Lafayette, a Universidade Federal do Paraná, a Universidade Federal de Minas Gerais, a Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil e o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
    Uma questão importante que emerge desse conjunto de textos é a constatação das dicotomias referentes aos binômios bacharelado-licenciatura, teoria-prática e escola-universidade. Tendo como objetivo maior formar professores para o nível secundário, as licenciaturas não proporcionavam uma preparação pedagógica capaz de habilitar os licenciandos para lecionar nas reais condições da escola básica. Por outro lado, os cursos de bacharelado também não ofereciam as ferramentas adequadas para o ofício de pesquisador.
    Ao longo no tempo, medidas foram sendo implementadas para alterar esse quadro, mas essas tentativas de mudanças estiveram longe de atingir plenamente seus objetivos, pois até os tempos atuais as licenciaturas continuam sob fogo cruzado por não solucionarem as insuficiências na preparação para as atividades docentes.
    O primeiro capítulo, de autoria de Aryana Costa intitulado “Ha ainda algo de novo a dizer sobre o curso de história da USP?”, analisa os primeiros momentos de criação do curso de história da Universidade de São Paulo, chamando atenção para a importância dos intelectuais paulistas, e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo na formulação da estrutura e do currículo do que seria o novo curso. Partindo dessa análise, a autora problematiza e relativiza uma memória que atribui aos professores franceses, em especial Fernand Braudel, uma importância fundamental para o formato, a implantação e o funcionamento do curso de história, destacando a proeminência de outros atores.
    O segundo texto, de Lidiane Rodrigues, “Eles e elas na gênese da institucionalização do curso de história da USP”, apresenta uma discussão que envolve a questão de gênero e origem social no processo de recrutamento dos primeiros professores do curso de história da USP, estabelecendo uma comparação com o curso de sociologia. As análises produzidas demonstram como as professoras que eram oriundas das escolas normais foram preteridas em favor dos colegas do gênero masculino provenientes das escolas de direito. Com essa orientação, ficavam secundarizadas as experiências com a docência em favor das práticas jurídicas.
    O texto de Mara Cristina de Matos Rodrigues focaliza a formação em história na UFRGS enfatizando as relações entre o bacharelado e a licenciatura no período de 1947 a 1968. O argumento principal da autora é que, embora as faculdades de filosofia devessem formar professores para o nível secundário, não havia uma preparação pedagógica para esse exercício, nem uma formação eficiente para o exercício do ofício de pesquisador. Nos anos 1970, mudanças significativas começaram a ser implementadas com a distribuição das disciplinas pedagógicas ao longo do curso no intuito de promover uma maior integração dos conteúdos de formação histórica com as práticas pedagógicas. Também foram buscadas mudanças no bacharelado com a introdução da monografia e a ampliação das disciplinas optativas no intuito de estimular a pesquisa.
    O capítulo de Alessandra Soares Santos focaliza a Faculdade de Filosofia da atual Universidade Federal de Minas Gerais, o contexto de criação do seu curso de história e geografia e sua posterior evolução. Um ponto importante do texto é a análise das transformações do currículo do curso com ênfase nos desafios e dificuldades de articular a formação de professores e o desenvolvimento das habilidades para pesquisa dos alunos.
    O texto seguinte, de Leonardo Cazes, analisa a criação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras do Instituto Lafayette em 1941, no Rio de Janeiro, com foco no curso de história. O ponto que merece destaque é a demonstração da importãncia da instituição, pouco conhecida e estudada, para o entendimento dos embates educacionais travados nos anos 1930-1940, por setores progressistas frente às imposições do ministério de Capanema e grupos católicos. A tese central do autor é demonstrar a criação da faculdade como um espaço de resistência ao Ministério da Educação no fechamento da Universidade do Distrito Federal (UDF) e no processo de esvaziamento do Colégio Pedro II, até então escola modelo que ditava as diretrizes para todas as escolas secundárias brasileiras.
    O capítulo de Bruno Lontra tem como objeto de análise o curso de história da atual Universidade Federal do Paraná (UFPR) e, em especial, a criação de seu mestrado em história em 1971. O argumento que norteia o texto é o de que o curso de história da UFPR, diferentemente das outras licenciaturas voltadas para a formação de professores para a educação básica, já em 1971 desenvolvia atividades de pesquisa, buscando se colocar como espaço de produção científica e formação de professores para a universidade. De acordo com esse argumento, desde os anos 1960, ja se desenvolviam projetos de pesquisa voltados para a história do Paraná e a localização e a organização de documentos e arquivos que dessem sustentação à criação de um curso de mestrado. O sucesso dessas iniciativas deveu-se a uma sintonia de suas lideranças intelectuais com as novas políticas educacionais do regime militar implantado.
    O capítulo de Patrícia Aranha, focado no curso de história e geografia da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) da Universidade do Brasil, tem como objeto de análise os conflitos e as disputas em torno da separação das duas disciplinas em dois cursos distintos. Debate já antigo desde o momento da criação da FNFi, o tema volta à tona em 1955, colocando em campos opostos aqueles que defendiam a importância de manter as duas disciplinas num único curso voltado para a formação de professores (posição defendida especialmente pelos professores da USP) e aqueles que advogavam a separação e viam o curso de geografia voltado para a formação de geógrafos que pudessem atuar em órgãos técnicos. Esse processo de discussão passou por várias etapas e acabou sendo definido na Câmara dos Deputados, em 1956, por meio de uma lei que separou definitivamente os dois cursos.
    O texto de Marieta de Moraes Ferreira dedica-se ao acompanhamento da trajetória do curso de história do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, recriado em 1968 com o desmembramento da antiga Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi). O foco é analisar o processo de repressão que se abateu sobre o curso e sua consequente desestruturação com a cassação de seus principais professores.
    O texto seguinte, de autoria de Margarida Oliveira e Wendell de Oliveira Souza, dedica-se à trajetória do curso de história da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Partindo de um balanço dos trabalhos dedicados ao desenvolvimento da área de estudos de ensino de história, os autores defendem a ideia de que foi construída uma memória dos cursos de história no Brasil que prioriza especialmente o curso da USP, silenciando sobre outras expêriencias universitárias. O caso exemplar enfocado é a tentativa de recuperar a trajetória da licenciatura da UFRN por meio de publicações dos eventos comemorativos. Na análise dessas conjunturas, destacam a ausência de uma memória consolidada e de pesquisas que valorizassem as experiências locais e regionais, e defendem a urgência de trabalhos que priorizem outras realidades brasileiras.
    O último texto deste livro, de Tiago Alinor Benfica, traça um quadro da criação das universidades e centros universitários nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, demostrando o processo de expansão de ensino universitário durante o regime militar. Seu foco principal é a criação dos cursos de história e estudos sociais voltados para a formação de professores e os embates que envolveram esse processo.
    Neste momento de grandes transformações e crise na educação brasileira e de discussão do lugar da história e do papel dos historiadores, revisitar o percurso dos cursos de história pode trazer contribuições importantes. A proposta deste livro com tal conjunto de trabalhos enfocando diferentes conjunturas e regiões é estimular uma reflexão para o enfrentamento dos desafios na renovação da formacão dos professores, assim como levar o conhecimento histórico para um público mais amplo."

     

  • Postado por editora em em 11/05/2021 - 16:22
  • Postado por editora em em 11/05/2021 - 15:59

    Este livro, de enorme repercussão na mídia, é resultado de aproximadamente 13 horas de entrevistas com o general Villas Bôas, realizadas em agosto e setembro de 2019. A entrevista seguiu o modelo de uma história-de-vida, indo desde as origens familiares até o tempo presente. Está aqui registrado o que o general Villas Bôas quis deixar como suas memórias a respeito de sua trajetória de vida, de suas ideias sobre a realidade nacional e de como vivenciou eventos políticos decisivos, com atenção especial ao período em que foi comandante do Exército Brasileiro (5 de fevereiro de 2015 a 11 de janeiro de 2019). O livro, como uma fonte documental inédita, contribui para uma melhor compreensão sobre a história recente do Brasil, na visão do comandante de uma de suas instituições mais importantes.

    Confira a apresentação da obra.

    "Antes de sua realização, já conhecia o general, porém havia me encontrado rapidamente com ele em apenas três ocasiões, por motivos diversos. Nunca havíamos conversado a sós, nem sobre a possibilidade de uma entrevista. A notícia de que ele estava disposto a me conceder uma entrevista me foi transmitida pelo presidente da FGV, Carlos Ivan Simonsen Leal, cerca de uma semana antes de realizarmos a primeira sessão. Embora o general conhecesse alguns de meus livros e soubesse de minha longa experiência de pesquisa sobre a instituição militar no Brasil, a ideia da entrevista e a concordância em fazê-la seguiram uma via institucional. A entrevista, desde o início, foi vista como uma iniciativa da FGV para registrar suas memórias, a exemplo de tantas outras já feitas pelo seu CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), no qual trabalho há mais de três décadas.
    Um aspecto importante a ser destacado refere-se às condições em que a entrevista foi realizada. Como é público, o general sofre de esclerose lateral amiotrófica (ELA), grave doença degenerativa, ainda sem cura e de causa desconhecida, que afeta o sistema nervoso, levando a uma paralisia motora progressiva e irreversível. Quando a entrevista foi realizada, a doença já lhe havia tirado a capacidade de movimentar-se. Além disso, ele necessitava de um equipamento de respiração permanentemente ligado, o que dificultava sua fala. Por esse motivo, ocasionalmente tínhamos de fazer breves interrupções durante as sessões, e os dias, horários e duração das entrevistas tiveram de se ajustar à agenda de cuidados médicos do general.
    Apesar dessa severa limitação física, o general estava com sua capacidade intelectual totalmente preservada e muito disposto a falar sobre sua vida. A dedicação que deu à entrevista, apesar das limitações
    físicas, foi impressionante. Um dos desdobramentos futuros da doença seria justamente a perda da capacidade de falar. Isso explica a urgência da entrevista: o curtíssimo tempo que tive entre a notícia
    de que ele gostaria de dar seu depoimento, o preparo do roteiro, as gravações, a transcrição e a edição em livro.
    A entrevista seguiu o modelo de uma história de vida, indo desde as origens familiares até o presente. Havia um interesse óbvio de falarmos sobre o período de quase quatro anos em que o general Villas Bôas foi comandante do Exército Brasileiro (5 de fevereiro de 2015 a 11 de janeiro de 2019), marcado por eventos decisivos e definidores da atual conjuntura política, como o segundo governo de Dilma Rousseff, seu impeachment, a assunção de Michel Temer à presidência, a prisão do ex-presidente Lula, as eleições de 2018, a eleição e o início de governo de Jair Bolsonaro. Decidi, contudo, não deixar de lado a narrativa de meu entrevistado a respeito de seus anos de formação, das experiências que teve ao longo da carreira militar e de suas ideias sobre o Exército e o país em geral, pois creio que são importantes para a compreensão mais densa de sua trajetória de vida e de suas ações.
    Diante das limitações já mencionadas, e de opções que tive de assumir durante o processo de entrevista, algumas passagens de sua vida foram tratadas de maneira mais rápida do que mereceriam. Ao
    final, contudo, ficamos com a sensação de que cobrimos de forma razoável os principais temas e conversamos sobre o que de mais relevante o general quis registrar como suas memórias.
    Desde o início já se pensava em transformar a entrevista em livro.
    Por esse motivo, a gravação foi transcrita e, em seguida, editada por mim em formato de livro. Na edição, procurei preservar a oralidade do texto, fruto de uma longa conversa. Busquei apenas tornar a leitura mais fluente, basicamente com a supressão de alguns vícios de linguagem e a junção de trechos que desenvolvessem, separadamente, as mesmas ideias. A ordem e o conteúdo das entrevistas, todavia, foram preservadas no que tinham de essencial, mantendo fidelidade ao que o entrevistado quis dizer.
    A versão por mim editada da entrevista foi enviada ao general Villas Bôas no final de setembro de 2019. Ele havia pedido para revê-la antes que déssemos continuidade ao processo editorial. Recebi de volta a versão revista no dia 5 de maio de 2020. Nesse intervalo de sete meses, encontrei-me com o general apenas uma vez, brevemente, no lançamento do Instituto Villas Bôas, em Brasília, dia 4 de dezembro de 2019. Ele já havia perdido a capacidade de falar, porém seus familiares e amigos mais próximos disseram que ele estava se dedicando com prioridade total à revisão do livro. De fato, observando a versão revista, e tendo em conta que todo o trabalho teve de ser feito por meio de tecnologias assistivas, às quais ele teve de se adaptar rapidamente, é possível constatar quão grande foi essa dedicação.
    Como resultado, o texto cresceu cerca de 30% em tamanho. O general incluiu a menção a vários casos e personagens de sua vida, principalmente na primeira metade do livro. Foram mantidas minhas perguntas, a estrutura de capítulos que eu havia montado e as notas explicativas, porém a revisão diminuiu a dose de oralidade característica das entrevistas, tornando o texto em geral mais formal.
    O livro, em sua versão final, deve ser visto, portanto, menos como uma transcrição literal da entrevista do que como um texto desenvolvido a partir dela. Contudo, o essencial de seu depoimento original foi preservado, acrescido da menção a alguns eventos e personagens, além de ter passado por alterações que buscaram, muitas vezes, desenvolver ideias que estavam apenas esboçadas.
    O mais importante é que temos, afinal, o que o general Villas Bôas quis deixar registrado como suas memórias a respeito de sua trajetória de vida, de suas ideias sobre a realidade nacional e de como vivenciou eventos políticos decisivos. Espero que o livro, enquanto uma fonte documental inédita, contribua para uma melhor compreensão sobre a história recente do Brasil, na visão do comandante de uma de suas instituições mais importantes."

     

  • Postado por editora em em 11/05/2021 - 15:46

    Confira parte da introdução do livro O elo perdido, organizado por Carmen Migueles e Marco Tulio Zanini.

    "Este livro, de muitas maneiras, é o resultado da busca por compreender e desvendar o enigma da baixa competitividade do Brasil no cenário global e a dificuldade de resolver problemas internos às nossas organizações que se apresentam como entraves à prosperidade. É a “busca pelo elo perdido” que possa conectar nosso potencial como nação a nossa capacidade de produzir riquezas com resultados desejados por todos. Há uma grande interrogação sobre o país: temos abundantes riquezas naturais, uma grande quantidade de pessoas com excelente qualificação, mas amargamos posições ruins nos rankings globais de competitividade, produtividade e inovação.

    Vivemos nos perguntando sobre a razão, sobre as causas, em busca de explicações e saídas. Recentemente, a ideia de que o problema estaria na qualidade da educação e nos baixos investimentos em infraestrutura dominaram e ainda dominam nossa imaginação, e parecemos tão convencidos disso que não investigamos outras possibilidades. Mas o fato é que outros países, com menos gente qualificada, menos recursos para investimentos e com desafios climáticos e geográficos muito maiores que os nossos, vêm avançando mais rapidamente. Uma breve olhada nos rankings globais de inovação e de competitividade revela isso.

    Na última edição do ranking global de inovação 2018, o Brasil aparece em 66o lugar no índice de eficiência da inovação em um comparativo de 129 países, ou seja, bem no meio da tabela. Mas temos uma população educada muito maior do que muitos que estão em nossa frente, uma economia com mais recursos e uma infraestrutura de pesquisa maior. Temos um grande número de mestres e doutores e uma grande parcela da população com educação de nível superior. Apenas cursando a graduação no Brasil, em 2018 tínhamos 8,3 milhões de estudantes, o que corresponde a uma vez e meia a população da Finlândia, que aparece em 11o lugar no ranking, com um número absoluto de registros de patentes aprovadas muito maior do que o nosso. Comparado com esse pequeno país, nosso número de mestres e doutores equivale a mais de 20% de sua população total. Como pode um país com uma população de 5.513.000 habitantes, ou seja, menor do que o município do Rio de Janeiro, produzir mais patentes do que um país com quase 210 milhões de pessoas e com muito mais cientistas? Ficamos atrás de países como Grécia, Rússia, Chile, Índia, México, Irã, Uruguai e África do Sul.

    De 2017 para 2018, o Brasil não avançou. Ficamos em 21o lugar em número absoluto de patentes. Na comparação com os países de renda média para alta, ficamos em 16o lugar, atrás da China, Índia e Rússia; 5o na região da América Latina e Caribe, atrás do Uruguai, México, Costa Rica e Chile.

    No ranking de competitividade, estamos em 8o lugar na América Latina. Sim! Oitavo na América Latina e na 71a posição global. O primeiro lugar no continente é do Chile, na 33a posição. O que mais nos mantém nessa posição é a baixa qualidade das nossas instituições. A pergunta que não quer calar é: por quê? Seguida de: o que podemos fazer sobre isso? O índice compara países por meio de vários indicadores, que são: instituições, capital humano, infraestrutura, sofisticação do mercado, sofisticação dos negócios, resultados de conhecimento e tecnologia e resultados criativos. O Brasil vai bem em sofisticação de negócios e no capital humano, mal em instituições, sofisticação do mercado e em produção de criatividade (marcas registradas e produtos culturais). O índice de eficiência mostra que gastamos muito dinheiro para produzir pouco conhecimento. Há ilhas de excelência: a USP é uma das 10 universidades mundiais que mais registram patentes. Por que não aprender com o que dá certo com ela?

    Há algum tempo, correu um texto na internet: uma piada daquelas que fazemos sobre nós mesmos. Era sobre o que aconteceria com o Brasil se trocássemos de território com os japoneses. Na brincadeira, a conclusão era a de que em pouco tempo o Brasil seria um país riquíssimo. Mas o Japão andaria para trás. A “graça” da piada está no fato de que muitos concordam. Temos isso de bom: somos capazes de rir dos nossos problemas. Esse exemplo é uma evidência de que reconhecemos, formal e informalmente, a relevância “dos fatores humanos” e da “cultura” como determinantes do sucesso das nações e das organizações dentro delas. De alguma forma, reconhecemos que há algo na forma como pensamos e trabalhamos que traz resultados indesejáveis. Mas não investimos tempo e esforço em compreender isso melhor. E esse talvez seja o fator que mais nos prenda nessa posição. Se entendermos claramente o que nos prende, poderemos agir sobre isso. Este livro pretende ser uma contribuição nessa direção.

    Ora, se há fatores dessa natureza que têm o poder de manter uma nação inteira presa a círculos viciosos que impedem os avanços, precisamos compreendê-los! Poucos esforços nos parecem mais relevantes do que esse. Ganhos de produtividade, competitividade e inovação significam mais dinheiro para resolver nossos problemas de pobreza persistente, da falta de acesso à saúde, da exclusão de milhões de crianças de uma educação de qualidade e da redução da degradação do meio ambiente, que demanda investimentos no tratamento de esgotos e efluentes e novas tecnologias, abrindo espaço para o futuro que desejamos. Ao compreender de forma objetiva a natureza desses fatores, podemos ver como superá-los.

    Sabemos que cultura faz diferença. Sabemos que japoneses, alemães, ingleses, mexicanos e brasileiros são muito diferentes entre si. Sabemos que há uma relação direta, inegável, entre cultura, instituições e desenvolvimento econômico. Mas avançamos pouco em entender as relações de causalidade. Há uma série de paradigmas de pensamento em pesquisa que dificultam esse avanço. E há também o fato de que países que estão indo melhor estão convencidos de que têm a cultura certa e que, se melhorar a comunicação entre indivíduos, os poucos problemas restantes se resolverão. Há uma relação entre cultura e identidade muito grande. E, se as coisas estão dando certo, é fácil desenvolver certo tipo de “narcisismo cultural”, muito próximo da ideia de superioridade cultural e que dá uma sensação confortável de pertencer ao time certo. Mas um livro como este, voltado para o público em geral, de diferentes profissões e formações, com maior ou menor interesse acadêmico, não é o lugar para discutir esses paradigmas. Há um número muito grande de estudos sobre cultura, suas definições e os desafios da pesquisa aplicada sobre o tema. Para quem tiver interesse em um mergulho conceitual, disponibilizo aqui esses outros textos e completo com referências no fim deste capítulo (Migueles, 2004).

    A nossa proposta aqui é construir um texto não para o especialista em estudos culturais, mas para os especialistas e interessados em gestão. Pensamos em algo análogo ao que fez o Yuval Noah Harari (2017) com seu livro Sapiens e demais trabalhos: compartilhar a macrovisão sobre o desafio da antropologia aplicada que, embora ancorada em pesquisas, se desprende desta para permitir um olhar mais geral. Aqui, proponho mergulhar naquilo que consideramos o maior desafio de cultura para ganhos de produtividade, competitividade, inovação e segurança: garantir o alinhamento necessário, dentro das organizações, que permita que a comunicação e a colaboração sejam efetivas, de modo que as pessoas possam, de fato, fazer o que é necessário para que o conjunto das ações traga mais resultados. E de modo que seja possível desenvolver o sentimento de pertencimento, que garanta o engajamento e comprometimento, e a clareza de que há ganhos para todos nos arranjos econômicos que impulsionam a cooperação para resultados melhores. Isso é fundamental para a capacidade de formular e agir de acordo com uma visão de médio e longo prazos, que é pré-requisito para a meritocracia que gera valor sustentável e melhor gestão de riscos, e que é também a base para o desenvolvimento das organizações e dos arranjos produtivos. Em síntese, a essa capacidade de gerar alinhamento pela formulação de uma visão comum no tempo, abrindo espaços para uma comunicação efetiva, e a subsequente capacidade de implementar as ações de forma eficiente, somando inteligências e esforços, chamamos de coordenação informal. Muitos chamam de cultura. Mas preferimos esse nome para dar foco no que realmente importa."
     

    Encontre o livro AQUI

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